“O que é a realidade?”, a voz agoniada do meu amigo exclamava pelo telefone, às seis da manhã de um domingo, horário que eu considerava impróprio para qualquer coisa, até mesmo para a agonia. Escutei a sua pergunta com a audição dos sonhos, incapaz de decifrar se a sua voz vinha do lado de dentro ou de fora dos meus ouvidos. Mais incapaz ainda de respondê-la, se houvesse uma resposta, porque quando se está dormindo tudo que é real parece sonho, e tudo que é sonho, o mais real. Ao contrário de mim, meu amigo não havia pregado o olho a noite inteira. A insônia o atacou nas últimas horas do sábado, no exato instante em que ele deixou o computador, de onde saiu exausto, e encontrou a cama macia, que, ao contrário do que ele esperava, não o recebeu nada bem.
Além de insone, o meu amigo é escritor. E, como todo bom escritor, a causa da sua insônia só podia ser uma. Depois de passar o dia inteiro escrevendo, tudo o que ele havia feito com esforço lhe pareceu, ao se deitar, a maior porcaria do mundo grudada em suas retinas. Tinha se sentado na manhã de sábado diante do PC com a determinação de escrever sobre as nossas mazelas. A desumanização da sociedade refletida na violência urbana, no cotidiano sem gentilezas, na naturalização da falta de ética, os temas mais urgentes de nossos dias. No entanto, quando os seus dedos começaram a bater com fúria no teclado, as letras formaram palavras, que formaram frases, que narraram aventuras em mundos distantes, relações entre criaturas bizarras, enredos mirabolantes, de um encanto e graça que, para ele, nada tinham de reais.
“O que é a realidade?”, o meu amigo insistia, “é aquilo que nos acontece?”, se revirava na própria agonia, “mas como? Se também nos acontece o sonho, e sentimos alívio quando alguém nos acorda e diz, foi só um sonho, já passou?”. O meu amigo queria escrever sobre o que não passava. Para ele, as grandes questões sociais e humanas. A realidade da vida.
Ao contrário do que ele provavelmente desejava, desviei da palavra realidade, que já doía em meus ouvidos, dos grandes temas, que sempre me assustaram, e embiquei para outro assunto, o menor e mais simples possível. “Não discuta com os seus dedos”, disse, “é pura perda de tempo”. E diante da perplexidade do meu amigo, expliquei:
Em 1952, certo escritor nascido em Cuba, que se mudou para a Itália ainda menino, publicou um livro que marcaria para sempre o seu caminho na literatura. Antes deste livro, já havia escrito outros. Romances com influência neo-realista, temas e enredos voltados para a realidade social em que vivia. Este escritor era membro do Partido Comunista e colaborador do jornal do partido. Ele julgava que devia escrever sobre a dura realidade da época, mas sofria por não conseguir atingir a expressividade desejada. Por mais que escrevesse, nada parecia o suficiente diante do que a própria vida lhe mostrava diariamente. Além disso, os seus dedos doíam quando começava a escrever, como se quisessem ir para outro caminho. As articulações latejavam, em protesto contínuo. Era preciso um esforço sobre-humano para submeter as falanges às ordens de seu pensamento.
Próprio rumo
Um dia, exausto da própria insistência, Italo Calvino permitiu que os dedos seguissem o seu próprio rumo e escolhessem as teclas a serem batidas. As teclas formaram palavras que formaram frases diferentes das quais estava acostumado, e as frases seguidas umas das outras criaram um universo tão único, que ele não pôde nomear o livro de A revolta, Injustiças ou Anos sangrentos, como queria o idealista partidário, mas de O visconde partido ao meio, como queria o escritor.
A história de um homem que, atingido por uma bala de canhão, se divide em duas partes, uma boa, outra má, sendo as duas insuportáveis, teve uma receptividade inesperada, principalmente para o autor. O fato lhe serviu como o farol na noite mais escura. Naquele universo fabulesco, havia obtido uma consistência não alcançada nos romances anteriores. Descobrira que a fábula seria o seu modo de tocar a realidade.
“Os meus dedos também doem!”, o meu amigo arquejava. Estava exultante. É sempre um conforto encontrar nos escritores que admiramos uma sombra de nossas angústias. Interpretei o silêncio que pesou em seguida do outro lado da linha com uma imagem: o meu amigo, as mãos espalmadas, olhando, hipnotizado, os seus dez dedos. As pontas de cada um como pequenas montanhas de mistérios. Até aquele momento, lutara bravamente contra eles, e, apesar de ter sido vencido muitas vezes, nunca havia se rendido. Agora, olhava-os de forma diferente. Talvez, naquela manhã de domingo, meu amigo se curasse da insônia e da agonia. Talvez, ao voltar para o computador, não perguntasse mais o que é a realidade, mas qual é a minha realidade. E começasse a partir das palavras para o mundo, e não ao contrário. A diferença entre uma coisa e outra Calvino logo percebeu após O visconde partido ao meio: a segunda, registra e comprova, a primeira, imagina. Ao deixar-se levar pelas possibilidades imaginárias, fez mais do que escrever histórias comoventes e encantadoras: fez da sua literatura um universo particular. O lugar da imaginação. Tão real quanto qualquer outro.
“É verdade”, meu amigo murmurou antes de nos despedirmos, “se a realidade é aquilo que nos acontece, quantos livros nesta vida me aconteceram!”. Quando desliguei o telefone, lembrei do escritor argentino Jorge Luis Borges, a quem Calvino considerava seu mestre. Borges tinha como protagonistas espelhos e labirintos, jardins e livros, o tempo e o espaço. Ler a sua obra, assim como a de Calvino, é presenciar frase a frase a ruptura com o naturalismo e a redefinição do real em termos literários. Quase liguei de volta para o meu amigo, com uma frase borgeana exemplar para a sua agonia. Mas, àquela hora, se ele estava curado da insônia, já deveria estar dormindo, ou sonhando. Decidi ligar depois, às seis da tarde, em um cíclico retorno do seu telefonema às seis da manhã. Não me estenderia, apenas diria a frase que certamente ressoará o dia inteiro em meus ouvidos: “Em literatura, a realidade é o imaginado”.