Vôo maior

O poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas tem antologia publicada em Portugal
Iacyr Anderson Freitas: “assombro pela existência”.
01/10/2005

Depois de lançar em Lisboa, na Casa da América Latina, a mais exclusiva e importante antologia poética de sua obra, o escritor mineiro Iacyr Anderson Freitas realizou em Juiz de Fora, em 13 de setembro, no gabinete de arte Janelas Verdes, o único lançamento brasileiro previsto de Terra além mar, livro que integra a coleção Pasárgada da editora portuguesa Ardósia. O poeta já publicou 14 volumes de poesia e três de ensaio literário, além de uma coletânea de contos. Essa nova antologia, editada em Portugal, abrange 16 livros distintos, incluindo uma mostra significativa de poemas ainda inéditos, atualizando sua antologia anterior, Oceano coligido (publicada no Brasil, em 2000, com o apoio da Lei Municipal Murilo Mendes de Incentivo à Cultura). Detentora de duas premiações importantes, Oceano coligido conquistou o 1.º lugar no Prêmio Nacional Joaquim Norberto, promovido pela União Brasileira de Escritores, em 2001, e o 1.º lugar no Prêmio Internazionale Il Convívio de 2002, promovido pela Accademia Internazionale Il Convívio, sediada na Itália.

Esta primeira e única edição portuguesa de Terra além mar conta com 450 exemplares, sendo 400 numerados e assinados e 50 assinados e voltados para a divulgação em Portugal. De acordo com o diretor editorial da Ardósia Associação Cultural, o também poeta Ozias Filho, responsável pela seleção dos poemas da antologia, Terra além mar é um vôo maior, sem escalas, para algo inatingível, etéreo, a que conseguimos dar uma vida física. Até então, em Portugal, segundo Ozias Filho, os poemas de Iacyr haviam sido publicados em periódicos literários e em livros coletivos, tais como Reflexos da poesia contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal, organizado e traduzido para o francês por Jean-Paul Mestas, editado em 2000 pela Universitária Editora, e Quanta terra!!! — Poesia e prosa brasileira contemporânea, organizado pelo poeta português Amadeu Baptista e publicado pela Casa da Cerca (Centro de Arte Contemporânea), em 2001.

Todo poeta é influenciado pelas suas leituras e pela forma como as confronta com as suas vivências. As leituras dão um ângulo de visão, dão uma lente com que se observar o mundo. Iacyr Anderson Freitas é um leitor comprometido com a literatura de qualidade e uma das mais expressivas vozes poéticas brasileiras do final do século 20 e do início do século 21. Como leitor atento, conhece a fundo a literatura contemporânea e a clássica e, como poeta maior, sabe transitar entre a lírica e a ruptura com desenvoltura e aguçada sensibilidade.

O reconhecimento da força de sua obra poética é compartilhado por inúmeros escritores, poetas e críticos literários. O escritor Alexei Bueno revela que Iacyr é “um dos grandes representantes da lírica brasileira”. Já Ivo Barroso afirma que a poesia de Iacyr merece distinções e que ele domina (coisa rara entre os poetas jovens) as técnicas do verso, da métrica e da rima. “Iacyr faz poesia clara, direta, embora nada linear ou convencional. Seu domínio da métrica e da rima revela um leitor consciente de Bandeira”. E Andityas Soares de Moura destaca que os poemas de Iacyr “são como cantos rituais, onde a palavra existe em sua essencialidade; a significação alcança o máximo de concreção nos melhores momentos do poeta, onde as realidades pungentes do mundo se liquefazem”. Segundo Fábio Lucas “descobre-se o poeta em Iacyr Anderson Freitas pelo plano lingüístico com que se exprime. A disposição das palavras, as intenções ontológicas e a trama conteudística, em que ora se desvela, ora se esconde um largo território da experiência, denunciam uma forte presença lírica”.

O poeta Fabrício Carpinejar, outro expoente da poética contemporânea brasileira, garante que “aproveitando a visibilidade dada a um estado literalmente poético, que desde os árcades ao profundo Guimarães Rosa alcançou os cumes da originalidade, descobre-se um poeta contemporâneo, Iacyr Anderson Freitas, que representa uma recente mina entre essas tantas de inesgotável minério”. Para Olga Savary, “a sóbria e ao mesmo tempo ardorosa poesia de Iacyr Anderson Freitas representa o que de mais vigoroso é criado na poética mineira e brasileira”. Na mesma linha, Fernando Py afirma que “há muito, desde pelo menos seu Primeiro livro de chuvas, o poeta já se assenhorou de uma dicção própria, caminhando agora para a maturidade da expressão. (…) E o resultado é um avanço maior na qualidade e importância dessa poesia, tão avessa às facilidades, tão obstinada na pesquisa da linguagem poética, e, já agora, tão representativa da geração de poetas que principiou a afirmar-se no final dos anos 1980”. Na opinião de Xosé Lois García, Iacyr é outro dos grandes poetas nascidos nos anos 60, de fecunda e fascinante criação: “Na poesia deste já consagrado autor encontramos uma espiral em movimento perpétuo”.

E Luiz Ruffato reconhece que “poderíamos terminar brandindo o velho chavão: Iacyr é um poeta que veio para ficar, pena que não circule nacionalmente, etc., etc., etc., etc.. Mas prefiro terminar afirmando que Iacyr Anderson Freitas desponta como uma das vozes mais importantes da geração dos 80”.

Na verdade, em poesia, a situação é complexa porque nenhum poeta quer dizer tudo. Há zonas de sombra e zonas de luz. Iacyr Anderson Freitas afirma convicto: “O que nós queremos é exatamente explorar a possibilidade dessas duas regiões, as zonas de sombra e as zonas de luz. E que as zonas de sombra sejam zonas de sombra. Que continuem a assombrar o leitor sem esclarecer. Afinal, não declarar as coisas também é uma forma de potencializar um determinado sentido, porque isso vai abrir aquilo que é essencial em qualquer texto poético: a polissemia”.

O poeta mineiro dá uma pista sobre o grande embate do escritor: “Nós vivemos o inexprimível nas palavras. Nós vivemos aquilo que não conseguimos exprimir, mas temos que traduzir isso em palavras”. E arremata: “Qualquer escritor desconfia da linguagem, por achar que a linguagem é menor do que a realidade ou até que a linguagem é uma forma de reduzir a realidade. Essa relação é ambivalente, afinal, o escritor tem uma paixão pela base acústica da linguagem e por certas articulações de fala, mas conhece bem as limitações das articulações e os seus limites”.

Como bom poeta, Iacyr sabe muito bem que nenhuma arte abandona a sua origem, e que a origem é algo de uma energia muito forte, muito violenta. E assegura que “a origem da lírica é exatamente a de um certo assombro pela existência. Uma origem que seja cantante, que possa estar vinculada a uma linguagem diferenciada do comércio verbal cotidiano, uma linguagem que possa transcender a nossa fala comum, mas que por outro lado tenha horizontes inusitados. Você não pode oferecer o comum porque o comum todos temos”. E conclui incisivo: “Nós temos que, ao escrever, oferecer um certo modo de visão, que até pode ser partilhado por todo mundo, mas que na página, por aquelas palavras, seja único”.

Amadeu Baptista no prefácio da obra dá o sinal: “Iacyr Anderson Freitas fala-nos de tudo isto nesta antologia que agora sai a lume para o público português. Saibamos nós ler a exacta medida e o exacto alcance das suas palavras”.

Terra além mar é o primeiro livro inteiramente dedicado à produção poética de Iacyr a ser publicado em Portugal numa edição exclusiva, o que representa um feito notável para um autor que, mesmo sendo um dos mais premiados poetas brasileiros contemporâneos ainda se encontra no rol dos novos nomes da literatura brasileira atual. Se já não é nada fácil conseguir espaço bibliográfico para a poesia brasileira contemporânea em terras tupiniquins, fora daqui os empecilhos são naturalmente maiores. Por conta disso e pelos naturais obstáculos cambiais, essa nova antologia poética de Iacyr não deverá circular pelas livrarias brasileiras, ficando restrita apenas ao mercado europeu. O que é uma pena, pois é uma cuidadosa edição e uma primorosa seleção poética realizada por Ozias Filho. Assim, os 40 exemplares conseguidos pelo poeta para o lançamento em Juiz de Fora foram os únicos disponíveis no Brasil.

E Iacyr revela o que sente pela nova edição: “É a minha melhor antologia. Eu lembro uma frase de Miguel Torga que dizia ‘os meus livros de contos estão desterrados no Brasil’. Eu digo que a minha melhor antologia está desterrada em Portugal”.

Detentor de várias premiações literárias nacionais e internacionais — tendo obtido, inclusive e por duas vezes, o 1.º lugar em poesia no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, em 1990 e 1993 —, Iacyr conquistou recentemente, em Cuba, com o seu livro de contos Trinca dos traídos, a Menção Especial do Prêmio Literário Casa de las Américas de 2005. Além de Portugal, sua obra já foi divulgada em muitos países: Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Malta; tendo sido traduzida também para diversas línguas.

Poema inedito de Iacyr Anderson Freitas

A uma formiga

Sei que cumpres teus anos
a cada minuto
que não terás muito tempo
para o que de fato é o tempo
e suas recusas.

Vejo-te cruzar agora
o planalto de linho e trigo
que diante de mim
é uma simples mesa
mas em ti
assombra a eternidade
com suas frutas,
seus lençóis de pão e açúcar,
suas colheres de um leite
que lembra na carne
o paraíso.

És para mim
uma máquina sem sentido no mundo.

De tua boca
fogem talvez cometas absurdos,
constelações que têm no dorso
o nome de meus antepassados,
folhagens que não vi ou não provei, palavras
que ainda me chamam
da infância.

És o que não compreendo.
O que é extremo
feito o sinal de Deus
e não compreendo.

Tu continuas sobre a mesa.
O planalto de linho não se acaba,
indiferente a mim e a ti
nesta casa.

A minha presença, o meu assombro, nada
chegou ainda a teu corpo.
Tu tens talvez este resto de tarde
que não deixará um nome
na inconsciência
que te move.

Também eu
que te sei
não me salvo:
esse incêndio me levará um dia
a tua lembrança
do meu sangue, levará a lembrança
de outros dias,
a memória do sangue
no meu sangue
e o mundo voltará à indiferença
que nos cerca.

Teu corpo vence enfim o beiral de linho
e desaparece comigo
no caos.

LEIA ENTREVISTA COM IACYR ANDERSON FREITAS

Terra além mar
Iacyr Anderson Freitas
Ardósia Associação Cultural
192 págs.
Jorge Sanglard
Rascunho