A lei

Conto de André Sant’Anna
Ilustração: Benett
01/10/2005

Eu nunca percebi isso, mas eu sou muito burro. Não parece nem que sou eu que estou pensando isso tudo que eu estou pensando agora. E muito menos que sou eu que estou pensando nessas palavras que estão saindo no papel. Eu não sei juntar as palavras e fazer com que essas palavras, juntas, ganhem um sentido. Eu não conheço gramática, nem nada dessas coisas de escrever. Eu não estou escrevendo. Eu só estou pensando que eu estou escrevendo. É que eu sou burro. Sabe por quê? Porque eu sou da polícia. E na polícia todo mundo é burro. Tem que ser burro para ser da polícia. Essa polícia da qual eu faço parte (Viu como eu pensei estar escrevendo bonito esse negócio de “da qual”? Na polícia, ninguém fala “da qual”.) só tem gente burra que nem eu. Nós, essa polícia, só sabemos mesmo é dar porrada, é fazer tráfico de arma. Tráfico de drogas também. Nisso, a gente até que é inteligente. Nós somos covardes demais. Mas nós não temos culpa. A gente nasceu pobre. A gente veio de uns lugares onde não tem a menor condição. Lá, nesses lugares horríveis, só dá três tipos de gente, a gente: bandido, polícia e otário. Os bandidos são os caras maus que têm coragem. Os polícias são os caras maus que são covardes e os otários são o resto, são os bonzinhos que são covardes, os mais covardes de todos, são os trabalhadores que ganham uma merreca de salário, pegam não sei quantas conduções para chegar no trabalho, trabalham o dia todo, chegam em casa tarde, comem uma comida ruim, comem umas mulheres feias, horríveis, e vão dormir. Nem pra ver um pouquinho de televisão esses otários burros covardes têm tempo. É só trabalho, comida ruim, mulher feia e noite mal dormida. Eles acham legal serem honestos. Mas não é honestidade, não. É covardia mesmo, medo de tudo, medo da vida, medo da felicidade, medo até de mulher. Os bandidos já são o contrário. Eles logo percebem que, trabalhando, ninguém chega a lugar nenhum. Ninguém que eu digo somos nós, os pobres, ninguém. Nós, que nascemos nesses lugares horríveis, onde a gente já nasce morto. O certo seria dizer “a gente já nasce morta”, mas, com as palavras, quando é alguém que sabe escrever, que é profissional das palavras, esse, o que escreve, pode cometer esse erro de propósito, que é para o texto ficar mais natural, mais parecido com o jeito como as pessoas falam. É uma parada naturalista. E as pessoas, pessoas mesmo, falando, falam errado mesmo, sem problema. Por exemplo, quem fala “eu a vi” é quem é burro, mas acha que não é burro só porque usa corretamente a regra gramatical. Quem sabe escrever de verdade, não se importa. Quem tem segurança com as palavras, com a linguagem, escreve, fala, é “eu vi ela” mesmo. Eles, esses caras que têm segurança com as palavras, morrem de rir quando escrevem “eu vi ela” e o computador põe aquele sublinhado verde que avisa quando o cara que está escrevendo comete um erro gramatical. Mas eu não sei nada disso, porque eu sou falso, eu não existo, eu sou apenas um personagem na primeira pessoa, um personagem muito estranho, que é burro, é da polícia. É que o autor desse texto, que sou eu, mas não sou eu, porque eu sou um burro da polícia, igual a todos os outros burros da polícia, já que na polícia todo mundo é burro e é violento e é corrupto e é covarde, está, ele, o autor, que é legal, fazendo uma experiência. Ele está escrevendo literatura experimental, livres associações, esses recursos, sabe? Vanguarda. Metalinguagem. Essas porra. Os bandidos sabem que a única maneira, para nós, que não sabemos falar direito, que não sabemos o que é clitóris, que não sabemos errar na gramática de propósito, que não sabemos escrever errado para fazer experimentações de estilo, metalinguagem, essas porra, temos para comer uma mulher razoável, é sendo bandido, é ganhando espaço no mundo, na vida. Não digo nem essas mulheres de foder que aparecem na televisão, nas revistas, que a gente vê na praia do lado daqueles caras todos fortinhos, todos de carro bacana, que também não entendem nada desse negócio de livres associações, vanguarda, pós-modernismo, essas porra. A gente, quer dizer, eles, os bandidos maus corajosos, come é mais é essas mulheres melhorzinhas daqui do morro mesmo, umas mulatas redondinhas, com umas bundinhas lisinhas, umas pernonas fortes, uns dentes branquinhos, essas égua, essas porra. Os bandidos sabem que o único jeito de comer essas porra é ficando poderoso, é ficando dono do morro, é vendendo pó, é matando os inimigos. Eles, os bandidos, não são burros, não. Eles não têm estudo, essas coisas, essas porra, mas eles são espertos pra cacete. E esperteza é a mesma coisa que inteligência. Esse negócio que eu disse, que nós é tudo burro, não é bem assim. É que, a nível de personagem na primeira pessoa, eu estava achando que ia causar um certo efeito começar este texto dizendo que “eu sou muito burro”. Quer dizer, eu, a nível de si, sou burro sim, mas não é todo mundo lá no morro que é burro. Não é todo mundo que é pobre, que não foi à (saca só a crase, o acento grave) escola, que é burro. Saca, você, aquela parada, né? Instrução não tem nada a ver com inteligência. Mas são burros, sim, os bandidos. Tanto é que eles morrem cedo. Mas também não é por falta de inteligência. É que tem um lance de viver a vida toda de uma vez só, de ir vivendo, cheirando pó, comendo aquelas gostosas das quais eu falei, vivendo intensamente com a rapaziada, fazendo festas, dando tiro pra cima, curtindo essa parada de ser bandido, lá no alto do morro, aquela vista de foder do Rio de Janeiro, mais as estrelas, a lua, as naves espaciais extraterrestres, os caras, os bandidos lá, doidaços, numa transa transgressora marginal, tá sabendo cumpadi? Quando dá lua cheia é de foder. Pra eles. Pra mim, não, que eu sou burro da polícia. A gente, nós, da polícia, também temos as nossas transas, mas é uma transa menos astral, menos romântica. A gente, da polícia, é muito baixo astral. A nossa transa é mais uma parada de mexer com as empregadas domésticas que passam na rua. É mais uma transa de andar na viatura com a metralhadora pra fora da janela, falando umas coisas meio escrotas para as domésticas, fodidas, burrinhas pra cacete, tímidas, envergonhadas delas mesmas. Aí, a gente, que é burra, que é burro quer dizer, que nós é macho, fala umas coisas assim: “Aí, hein! Que cuzão! Fica esperta aí, se não eu arrombo esse rabo!” Aí, elas, as neguinha, essas porra, que já são umas pobres coitadas, sem família, sem nenhuma felicidade nenhuma nessa vida, sem nenhuma vida nessa tristeza, ficam tudo apavoradas, baixam a cabeça e tentam desaparecer da existência. Então, a gente, a polícia, fica rindo. Mas a gente, que é burro, que é burra — o certo é “a gente é burra” — não faz nenhum mal, mal mesmo, pra essas porra de empregadas domésticas. É só um mal psicológico, um mal sociológico, uma parada de os mais fracos que se fodam, porque nós, que somos burros, que somos parte da polícia, essas porra, temos essa parada também, de sermos também fracos. Estamos perdoados porque não sabemos o que estamos fazendo, e essas porra é que são a parada psicológica e a parada sociológica, essas porra. Nós não sabemos o que estamos fazendo, porque nós somos burros, porque nós somos a polícia e polícia é tudo burro. Mas, tirando a parada da metalinguagem, essas porra, a gente, nós, os bandidos da polícia, burros, faz, fazemos, na prática, na real, é uma parada de gostar mesmo, é uma parada na região genital mesmo, uma parada freudiana mesmo, entre o pau, a libido, e a sacanagem, a maldade, coisa que a gente sente, no pau, quando pega um mendigo, desses acabados, esses que só estão esperando morrer, esses que já desistiram de tudo, que comem resto de sorvete misturado com bituca de cigarro, misturado com resto de cocô de fralda de criança, esses que já têm um monte de ferida espalhada pelo corpo, a cara toda inchada, o pé todo inchado, aí, então, a gente, os covardes, os burros, gostamos, no pau, na libido, de ficar chutando esse mendigo, gosta de ver ele, de o ver vomitando sangue, gritando muito no começo e depois indo perdendo a força, todo arrebentado, até começar a gemer baixinho, a gemer quase morto, quase não sentindo mais nada, porque a gente faz ele, o bosta, o mendigo, o otário, não sentir mais nada e esse não sentir mais nada naquele bolo de carne e sangue e pinga é uma morte viva e ele, aquele troço desfigurado que a gente chuta na cara, gemendo, dá um tesão na gente, que somos burros profissionais, dá um tesão que vai além da libido, da sexualidade. O tesão que a gente sente é o tesão da burrice, o tesão da maldade, do poder que só é possível ser sentido por quem é muito fraco, muito burro, muito mau. Mas a gente, que é, que somos, animal, burros, sente mais tesão, mesmo, é quando a gente pode dar porrada em mulher. Aí é tesão mesmo, mesmo quando a mulher é feia, é mendiga. Porque, nesse caso, tem a buceta também, onde a gente pode enfiar umas coisas, pode enfiar o cano do revólver, pode enfiar garrafa quebrada, pode enfiar faca, enfiar e tirar, enfiar e tirar, enfiar e tirar e ir rasgando tudo e fica saindo sangue e a gente, que é a polícia, fica rindo. E a risada que nós rimos vai ficando cada vez mais gutural, cada vez mais animal, e isso é o tesão que faz isso com nós, a polícia. É a libido. Não tem essa parada de sadomasoquismo? Tem, sim. Tem na internet que está unindo o mundo, que está globalizando as diferenças, que está globalizando as minorias, criando a Aldeia Global, aquela parada do McLuhan, essas porra que eu não sei o que é porque eu sou polícia, burro. Então… Essa parada de sadomasoquismo, que dá tesão, é o que eu sinto quando eu rasgo buceta de mendiga com a faca. De vez em quando, até dá pra fazer essas porra com mulher que não é mendiga também. É mais raro, mas rola também. Tem umas putas que são muito gostosas e são sozinhas no mundo, sem ninguém para protegê-las, para denunciar a gente. Aí, a gente, nós, aproveitamos, aproveita. Junta uns cinco, burros, maus, polícia, e é a maior sacanagem. Todo mundo, os cinco, nós, come, comemos, comemos, a puta. Um põe o pau na buceta da puta, o outro no cu, outro na boca (Pra botar o pau na boca, tem que ser no começo da sacanagem, quando a mulher ainda está com medo e a gente pode ameaçá-la — gramática perfeita — porque, no final, a mulher vai estar tão fodida, tão sem nada a perder, que, para ela, aquela piranha, morder o pau da gente não custa nada e nem adianta mais ameaçá-la com mais porrada, mais facada na boceta, mais tortura, mais nada, porque ela, aquela vaca, não vai estar mais sentindo nada, nem dor, nem medo, nem nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada… nada. Aí ela morde mesmo, na maior), outro no sovaco, outro no nariz. Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher? Eu já, porque eu sou da polícia. Então, a gente fica horas e mais horas fodendo a puta, batendo na puta, rindo da cara da puta, enfiando coisas no cu e na buceta da puta. A gente, polícia, é burro, mas tem muita imaginação. Você já enfiou um livro no cu de alguém? Eu já, que eu sou da polícia e enfiei uma lista telefônica no cu de uma putinha, uma vez. Era menina ainda, uma dessas paraíbas, menor de idade, dessas que chegam aqui no Rio com motorista de caminhão, dessas que não tem carteira de identidade, certidão de nascimento, pai, mãe, infância e, depois de passar pela mão da gente, não tem nem mais cu, só um buracão cheio de sangue e cocô e umas gosmas amareladas, uns negócios meio nojentos que saem de dentro do intestino. O segredo é ir alargando o cu da criança aos poucos. A gente, que é da polícia, primeiro enfia um pau, pau mesmo, depois, o cano do revolver, depois, um cabo de vassoura, depois uma peixeira, depois, rasga, aí vai enfiando o que tiver à mão — esse acento grave não é coisa de polícia — aí tem uma hora que cabe qualquer negócio, qualquer troço. Mas a gente, que é da polícia, que trabalha com essas porra de lei, tem que tomar cuidado na hora de fazer essas porra, porque, se a gente faz essas porra na pessoa errada, aí fodeu. Por exemplo, criança, que nem essas putinha aí que eu falei. Na maior parte das vezes, dá para ver só pelo jeitão. A gente logo vê que a criança é sozinha, que ninguém vai notar a falta dela etc. Mas, às vezes —crase em “ás vezes” também é difícil de polícia, burros, eu, usar — a criança tem alguém que a protege, e não protege ela, que passa sempre pelo sinal onde ela, a criança, vende chicletes, essas porra. Aí, a gente, os policiais, pega essa criança, enfia um monte de coisa no cu dela, arrebenta ela, quer dizer, a arrebenta, e, depois, a joga num desses matos por aí, põe fogo no corpo, joga as cinzas no rio, essas porra toda. Aí, essa pessoa que gosta daquela, dessa, criança, um dia passa lá naquele sinal, não vê a criança na qual foi enfiada uma lista telefônica no cu, da qual foi arrancada o intestino, com ela, aquela porra de criança, ainda viva, e a pessoa, essa que sempre comprava chicletes daquela porra de criança, que sempre batia um papinho com aquela porra de criança, que até pensava em, numa hora dessas, botar aquela porra de criança dentro do Audi prateado, levar aquela porra de criança para casa, dar um banho naquela porra de criança, dar um prato de comida praquela porra de criança, comprar umas roupas praquela porra de criança, adotar aquela porra de criança, levar aquela porra de criança para passar férias em Nova York, para esquiar em Aspen, apresentar aquela porra de criança pretinha, toda vestida de vestidinho cor-de-rosa, no natal, para o resto da família e ficar essas porra todas tudo feliz e alegre, sendo boas pessoas, muito longo esse período para um polícia burra que nem eu, essas porra, porra, aí essa pessoa pergunta pras outras crianças, aquelas porra, cadê aquela porra de criança que eu, aquela pessoa do Audi prateado, sempre conversava, de quem eu sempre comprava chicletes. Aí, as porra das outras crianças dizem que não sabem, que passou um camburão e levou a criança que teria o cu arrombado por uma lista telefônica. Aí, essa pessoa do Audi prateado era alguém que é importante, alguém que possui uma grande firma, com muitos funcionários bem remunerados, mas que trabalham o bastante para render lucros inesgotáveis para a pessoa dona do Audi prateado, naquela porra de esquema da mais valia, aquela porra que o Karl Marx, aquele cara do comunismo, essas porra, inventou, e essa pessoa do Audi prateado fica meio cabreira, querendo saber daquela porra de criança que parecia que não tinha ninguém no mundo olhando por ela, aquela porra. Aí, porra, fodeu. Aquela porra de pessoa do Audi prateado é amiga do governador, de uma meia dúzia de delegados, de uns fudidões da corregedoria e aí, porra, fodeu pro nosso lado. Eu sou burro, porque eu sou da polícia, mas eu não sou o mais burro de todos, porque eu sou uma primeira pessoa que nunca se dá mal nessas porra de metalinguagem, mau, porque esse negócio de os maus se darem mal no final da história é meio babaca, nem em novela de televisão os maus se dão mal no final mais e a porra da metalinguagem, da primeira pessoa de vanguarda, essas porra, quer dar uma lição nessa porra de sociedade injusta que premia os injustos, a mais-valia, a metalinguagem, os artifícios, as conquistas da literatura contemporânea, as vanguardas, o hiper-hiper realismo, essas porra. Aí, eu nunca me dei mal, mesmo já tendo enfiado lista telefônica em cu de criança. E nem vou me dar mal que é pra dar exemplo. Mas eu sofro depois, agora, porque eu não sou mais aquele mesmo burro polícia que é burro polícia. Agora eu sou uma primeira pessoa pós-moderna, que não tem dono, que é metalinguagem, que é o fascismo metalinguado dessa porra de autor fascista que leu uma vez o Glauber Rocha dizendo que botava o Antônio das Mortes atirando no povo, que era para expurgar de si, dele, do Glauber, o fascista que também habitava na metalinguagem dele, do Glauber, que é para punir o povo burro, selvagem, essas porra que faz tortura, extermínio, essas porra, o povo é que é essas porra, foi o povo, esses pobres, os mais mal, os que dá mais pena, essas porra mesmo é que são os maus, é que são eu, o povo é que é o George W. Bush, essas porra. Quer dizer, nervoso, o povo é eu, a polícia é o povo, o torturador, eu sou o povo da polícia. Sou um marxista revolucionário radical da polícia, corrupto, covarde, violento, problemas psicológicos profundos ligados à sexualidade, aquela parada da libido. O meio é a mensagem, a forma é o conteúdo, essas porra. Então, a forma escatológica, sexual, cocô, essas porra, é a mensagem do povo. Isso, essas porra é que é povo, sem forma, todo ensangüentado, aquelas porra amarelada que eu falei, que sai do intestino, essas porra é tão nojento, mas tão nojento, é um negócio tão lá embaixo, no pau, que eu fico rindo aquela risada da polícia. Aquela risada da polícia. Mas eu não sei de nada disso, não. A culpa é da sociedade. Eles, você, eu, essas porra, a sociedade civil é que paga o meu revólver que é pra eu proteger ela, a sociedade, contra esses maconheiros, esses que usam drogas, que fumam maconha, ficam doidões e saem por aí matando as pessoas, fazendo coisas proibidas e nós, os completamente burros, temos a obrigação de proteger a sociedade contra essas porra de maconheiros que estão destruindo tudo, gerando a violência e eles precisam ser mortos, pelos direitos humanos, esses direitos humanos que nós, que enfiamos garrafas quebradas nas bucetas dessas vagabundas maconheiras não temos. A gente tem que fazer os direitos humanos é com as próprias mão. Mas eu sei que essas porra não vão acabar nunca, esses maconheiros, mas a gente, os muito burros, vai eliminando os vagabundos que dá. Por isso é que nós, a polícia da sociedade, a lei, de vez em quando, pega um moleque desses, um desses adolescentes maconheiros, que usam drogas, e dá um sumiço neles, fica a noite inteira dando porrada, chutando a cara do maconheiro, enfiando coisas no cu do maconheiro, com o pau duro, e corta o pau do maconheiro e põe na boca dele mesmo, o maconheiro, que morre logo, com o próprio pau na boca e a gente, a polícia, fica rindo, vendo o maconheiro morrer com o pau na própria boca. Quem mandou não obedecer a lei? Aí a gente joga essas porra no mato e a televisão descobre e fica tentando pegar a gente, que é burra, burro, mas que faz a lei. Porque se não tivesse nós, os burros, não teria lei e todo mundo ia ficar fumando maconha e sendo puta e sendo mendigo e não ia ter ninguém pra enfiar umas coisas nos cus deles, esses maconheiros putas mendigos fora da lei. E você sabe: esses maconheiros são tudo de vanguarda, pós-moderno, metalinguagem, livres associações, essas porra. Mas, vou te dizer, uma hora dessas eu vou virar bandido, que é muito melhor, que não precisa ser tão mau que nem a polícia e ainda come umas mulheres melhores, sem precisar amarrar a mulher, nem arrancar o intestino dela pra fora, pelo cu. Mas eu preciso ficar mais inteligente pra deixar de ser burro e virar bandido, pra deixar de ser burro e ser um cara legal, um maconheiro de vanguarda, inteligente, que faz livres associações, metalinguagem, vanguarda, pós-modernismo, essas porra de maconheiros. Mas do jeito que eu dou azar, os caras vão acabar liberando essa porra de maconha e, aí, maconha vai ser uma coisa besta, até careta e aí acabou essas porra de vanguarda. E eu, que sou muito burro, porque eu sou polícia, nunca vou comer uma porra de uma mulher toda limpinha, cheirosa, dessas que usam umas saias todas leves, que têm tatuagem de florzinha no pescoço, que são todas leves lá praia, com aqueles namorados maconheiros, que fazem surf, que são da novela, que sabem falar inglês, que comem sanduíche natural, que ficam deitadas na grama, com aqueles peitinhos lindos balançando em baixo da camiseta branca, sem sutiã, que são carinhosas com os namorados delas, sempre sorrindo, uma mistura de criança com puta (puta limpinha de classe), Lolita, essas porra de literatura, ninfetas, lindas, que não dá nem coragem de enfiar caco de vidro naquelas bucetinhas. Não, eu nunca vou comer uma dessas, por isso é que eu sou da polícia: porque eu sou fedido, porque eu sou burro, porque eu fico com tesão quando eu chuto cara de mendigo, quando eu dou uns tapinhas mais violentos nessas putinhas que têm por aí, cumprindo a lei, que é a polícia. Essa é que é a minha opinião sobre isso tudo que está por aí. Entendeu a metalinguagem, essas porra? Se não entendeu é porque você é polícia, burro, burra. Você é burro, hein!?!?!

André Sant’Anna

Nasceu em 1964, em Belo Horizonte (MG). É autor de O paraíso é bem bacana, Amor e Sexo.

Rascunho