Laranjas

Conto de Possidónio Cachapa
Possidonio Cachapa, autor de “O mar por cima”
01/10/2005

Foi na altura em que chegou Beristina que a Vó declarou estar farta de tanta areia.

“Tenho grãos nas mamas, no cu, entre os dedos… Cuspo areia quando como e coço-me por causa dela se estou na cama.”

Estava furiosa, mas nós só ríamos. Nessa altura éramos uns seis a dividir as duas divisões que eram sala, cozinha, casa de brincar, de dia, e quartos quando pouco depois do sol se pôr nos deitávamos. Se um de nós dissesse “mamas” ou “cu” era chinelada certa. Mas ela, a déspota esclarecida, podia trazer todas essas palavras (e outras ainda piores) na boca. Se protestávamos da injustiça ela argumentava que era velha e que já não tinha dentes. Quando um dia nós nos deitássemos e não conseguíssemos dormir com dores nas costas, então, poderíamos dizer todas as coisas que nos passassem pela cabeça. E, como se enxotasse uma das suas galinhas, ia procurar qualquer coisa útil para fazer.

Mas nesse dia, parecia apoquentada.

“Mas porque te chateias”, disse-lhe a Rosalinda (“Senhora Rosalinda, para vocês!”) “Neste sítio temos todos de viver com essa maldita coisa.”

Estavam a beber chá preto quando ela disse isto, por isso foi particularmente dramático para a Vó vê-la meter o dedo dentro da chávena e tirar uma partícula.

“Areia?”, perguntou, deprimida.

“Um pedaço de dente. Estou a ficar toda podre”. E bebeu o resto do chá antes de voltar à casa que já eram 3 horas e ainda tinha de ir fazer uns bolinhos de mel para vender na feira da Vila, no dia seguinte.

Quem trouxe a resposta foi o Quincas que passou por ali, a fumar e com uma revista antiga na mão. Levei anos a perceber que ele lia sempre as mesmas revistas. Tinha encontrado um dia uma caixa cheia delas, coisas mundanas que falavam da vida das estrelas de cinema e de corredores de carros e jogadores famosos. Apesar de ter voltado ao sítio do achado inúmeras vezes nos anos que se seguiram, nunca mais viu nada que se parecesse. Daí que só lesse as mesmas.

“O que a senhora precisa é de fertilizar um pedaço do seu quintal”, disse ele, levantando o braço magro e comido pelo sol. “Adubar um bocado e, depois, a erva que nasce alastra. Rega de vez em quando… e a natureza há-de fazer o resto”.

Diga-se em abono da verdade que neste momento estava ela a coçar violentamente a cintura, no local exacto em que as gigantescas cuecas de algodão eram dominadas pelo valoroso elástico. Na sua cabeça, era evidente que a coceira era fruto do trabalho de um impiedoso grão, coisa provável, de resto.

Olhou para nós, os cinco filhos do acaso, e quis saber mais do processo. Mas o Quincas tinha apenas uma vaga ideia sobre a fertilização dos solos. E o artigo era, infelizmente, breve e omisso nos detalhes funcionais. Mas Vó já tinha a sua ideia.

Cercou com estacas uma nova zona da praia, nas traseiras da casa, prendeu tudo com rede de arame enferrujada (que ficou a dever durante anos e anos na Loja, mas que acabou por pagar numa altura em que já ninguém se lembrava da dívida) e confinou as dez galinhas a este espaço.

“Agora, caguem!”, disse-lhes. A gente riu, tapando a boca com as mãos. Outro palavrão.

Nos anos que se seguiram, a Vó foi misturando o estrume das galinhas com a areia. Quando chegava a época das chuvas (cada vez mais rara e mais rara), ela olhava esperançada para aquele lameiro fétido.

“Um dia, vou ter ali, um jardim verdadeiro”.

Na verdade, houve coisas que ali medraram nos anos de que me lembro. Mas a combinação entre a fome galinácea e a natural improdutividade do espaço dificultava o processo. Só ao fim de alguns anos, a leve penugem a que ela insistia em chamar “relvado” começou a aguentar-se. Tirando isso, só laranjeiras.

“O que é aquelas árvores?”, fora a primeira pergunta de Beristina quando chegou à casa e pousou no chão o saco de plástico onde repousavam todos os seus presentes. A Vó estava ocupada em dominar a emoção que lhe provocava ver as marcas de cigarro nos braços da menina e a forma ligeiramente torcida com que ela colocava os ombros maltratados. Mas ainda assim respondeu: “laranjas”.

“Oh… e dão frutos de comer?”, insistiu Beristina, quase sorrindo.

A Vó esqueceu-se de que detestava laranjas e que estava irritada por ali só nascerem árvores que dariam frutos que ela não estava interessada em comer e disse:

“Frutos deliciosos. Quem come uma laranja fica com todas as feridas curadas para sempre. As de dentro e as de fora”.

Beristina abriu muito os olhos. E desde esse primeiro dia que chamou a si a tarefa de guardiã das laranjeiras. E quando o primeiro fruto ali nasceu e amadureceu, todos abdicámos voluntariamente dele e assistimos à forma como ela lhe retirou a casca. Levou um dos gomos à boca e, contendo o arrepio que a acidez lhe causara, declarou-se maravilhada. Depois abriu o resto da laranja e distribui-a por todos. Seis crianças, em volta de uma laranjeira jovem que dava o primeiro filho redondo.

Vó tratou sempre de Beristina como de um fruto com tendência para a podridão. Quando todos estávamos convencidos de que a felicidade e a inocência viviam felizes com ela, Vó baixava a cabeça e fazia um trejeito com a boca, enquanto limpava qualquer coisa que por ali andasse. Nesse tempo não poderíamos acreditar que a desgraça é uma nódoa que quando bem aplicada nunca mais sai. Pensei nesse desviar de olhos da Vó nas primeiras vezes em que fui resgatar Beristina do Beco das Retorcidas, tapada de gente a cheirar a podre, o braço cheio de marcas onde os bichos iam beber. Nessas alturas preferia imaginá-la em plena infância, vestida apenas com umas calcinhas brancas a rir, enquanto a ribeira lhe passava por cima furiosa por ter sido represada com a mão. Acho que isso me dava forças para responder ao apelo da Vó e me meter na motoreta moribunda e partir para um novo resgate. Talvez ela pensasse nisso quando me via, entre o aflito e o severo:

— Mana, vamos embora. Anda, sobe.

Eu apontava na direcção da mota (já rodeada por um bando de leiloeiros famintos) como quem desenhasse um oásis. Ela estendia-me os braços magros que eu passava por cima do meu pescoço e deixava-se arrastar sem resistência.

Vó estava sempre à nossa espera, sem uma palavra. Tinha fervido água na panela grande e colocado perto o sabão perfumado com que lavava sempre os novos filhos, no primeiro dia. Despia cuidadosamente este corpo, agora grande, que chorava e lavava-lhe os cabelos negros e sujos com a delicadeza com que torcia o pescoço a uma ave de capoeira ingénua.

— Ai, menina — dizia-lhe muito mais tarde, enquanto as duas se detinham em frente a um prato de papas quentes. Beristina fechava os olhos, cansada, e a sua mão coçava inconscientemente o braço onde as marcas de queimadura quase se não notavam no meio de tantas outras.

Mas, quando comemos a primeira laranja, Beristina estava feliz, tinha amigas na escola e aprendera a história do Egipto, para grande alegria de Dona Tendinhas, a professora de nós todos. Chegou mesmo a fazer um modelo de pirâmide com folhas de palmeira e raminhos de mangueira seca. Nesses dias, eu achava que estava apaixonado por ela, para grande irritação de Vera, mana verdadeira e pretendente à minha atenção total.

— Ela faz de ti gato-macaco — dizia-me, rancorosa, gesticulando com o punho na direcção da mais velha.

Mas eu só ria. Mana verdadeira era mana verdadeira. A outra era mana de gostar. Diferente. Beristina ficou sempre para mim como a imagem de uma menina rodeada de laranjas redondas e sadias. Mesmo quando desapareceu de vez, nas ruas da Vila.

Vó ia repousar agora no Quintal das Laranjas, mantido, em tempos, por uma criança retalhada em gomos. Filha desaparecida em combate.

Na noite em que velámos a Vó começou a cair uma cacimba inesperada.

Minha irmã puxou melhor o casaco que tinha escorregado dos ombros e uma vizinha recente passou o braço sobre os braços nus do filhinho que adormecera no seu colo.

Quando o sol nasceu dei por mim na rua a fumar. O chão estava verde e húmido. Os braços abertos para acolher o corpo da dona. Por cima, voavam baixo fantasmas de galinhas castanhas e vermelhas. E à altura dos olhos, a encher tudo, uma luz ofuscante e inegavelmente laranja.

Possidónio Cachapa

Nasceu em Évora, Portugal, em 1965. É escritor, dramaturgo e argumentista, autor de A materna doçura (1998), O mar por cima (2002) e O mundo branco do rapaz coelho (2009), entre outros. No teatro, é autor das peças Shalom (2001), Hipnotizando Helena e A cibernética (co-encenadas em 2005). Argumentista de curtas e longas metragens, realizou vários filmes, como o documentário Adeus à brisa (2009) e O nylon da minha aldeia (2012). Sua obra foi adaptada ao teatro e ao cinema e está traduzida em vários países.

Rascunho