Graça e degradação

Entrevista com Marçal Aquino
Marçal Aquino: “Ando um pouco menos pessimista”.
01/12/2005

Para Marçal Aquino, amar, assim como escrever, é uma tentativa de negar a morte. E esta última é — pelo menos em termos literários — o melhor antídoto para os muitos venenos amorosos. Em seu novo romance, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, a morte está sempre à espreita, rondando os amantes Cauby e Lavínia. Ele, fotógrafo, romântico e inconseqüente; ela, linda, adúltera e histérica. Formam um casal improvável, perdido entre o idílio, o pateticismo e a doença, deslocado em meio à hostilidade de uma cidadezinha no interior do Pará. De economia sustentada pelo garimpo e pela prostituição, trata-se do local ideal onde fazer prosperar bordéis e igrejas evangélicas. Novamente explorando como cenário o “Brasil profundo”, Marçal Aquino desenvolve outra trama típica de sua obra: nela há sexo, violência e corrupção. Mas, além do amor, outro novo componente se insinua no livro: a esperança. Um fio dela. Afinal, como diz o autor, no mundo se misturam graça e degradação, em proporções nem sempre equilibradas. É sobre isso que ele discorre na entrevista abaixo. E também fala sobre poesia, cinema, sonho e pessimismo.

• Para um escritor, não há como escapar do amor e da morte?
Em boa medida, para além de qualquer engenho de linguagem ou de trama, acredito que toda literatura fala de experiências humanas essenciais. Por isso, amor e morte interessam tanto e se apresentam como matrizes narrativas inesgotáveis. Alguém, já morto, por sinal, disse que escrever é uma tentativa de negar a morte. Amar também é. São boas obsessões para gente tão afeita a elas como os escritores.

• Em Eu receberia…, o fotógrafo Cauby diz que as melhores histórias de amor são as mal contadas. O que isso significa? E quais são as suas histórias de amor favoritas?
Penso que ele está se referindo às histórias que, mal comportadas, não se preocupam muito em se explicar para os demais. Feito o drama amoroso que ele vive e narra, e que escapa a qualquer juízo ético, moral ou comportamental. A literatura está cheia de grandes histórias de amor. Gosto de muitas; cito algumas de que me lembro agora: O amor nos tempos do cólera, do García Márquez, conta uma extraordinária história de amor; assim como São Bernardo, do Graciliano Ramos; A seguinte história:, do Cees Nooteboom; Luna caliente, do Mempo Giardinelli; Lolita, do Nabokov; e El pasado, do Alan Pauls. Pensando na sua primeira questão, repare como a morte está presente em todas essas histórias como uma espécie de único antídoto possível contra os venenos do amor.

• Seu livro trata vários personagens com grande complacência. Principalmente o chinês Chang. É raro ver um pedófilo retratado com tamanha delicadeza. O mesmo acontece com o pastor Ernani, com o matador Chico Chagas e até mesmo com o jornalista corrompido Viktor Laurence — que se mostra, muitas vezes, vítima de suas carências mais essenciais. Trata-se de uma negação de estereótipos óbvios ou da constatação de que o mundo é feito de subjetividades?
Entendo que é mais uma tentativa de mostrar os personagens por inteiro, sem maniqueísmos. Não creio num mundo de vilões e mocinhos; somos mais complexos que isso, mais sujeitos a nuances e sutilezas. Como minhas histórias são uma proposição do real, acho que soaria artificial se eu perdesse isso de vista.

• Eu receberia… é pontuado pelo relato dos sonhos de seus personagens. Para você, o sonho é revelador de que tipo de verdades? Você se interessa por suas interpretações psicanalíticas ou o trata apenas como recurso narrativo?
Os sonhos sempre me interessaram e me intrigaram. Os meus e os dos outros. Mas não como elemento revelador do futuro, como acredita Chang, ou como material para interpretações psicanalíticas, como certamente diria o professor Schianberg (até porque nunca fiz análise). Prefiro olhar os sonhos como um mistério humano. E como a ciência não permite que duvidemos de nada, imagine se um dia alguém inventar uma máquina que projete os sonhos enquanto o sujeito dorme. Será a morte do cinema e da televisão, eu não tenho dúvida.

• E sobre o professor Schianberg (personagem do livro), o pensador do amor, das “fezes da alma”? É um autor sábio ou lunático? Ou seria sempre obrigatório harmonizar esses adjetivos para se escrever (bem) sobre o amor?
Na visão de Cauby, que é a que importa, o professor Benjamim Schianberg é um pensador tão sábio quanto lunático, capaz de exprimir reflexões que, ele acredita, podem ajudá-lo a compreender seu estado amoroso, na mesma proporção em que enuncia verdades triviais, com a falta de pudor de um livro barato de auto-ajuda. No fundo, acho que ambos sabem que escrever sobre o amor é a forma mais segura de não compreendê-lo.

• Em certo momento de seu livro, lemos que o espírito humano se alimenta tanto do bem quanto do mórbido, e que, nesse meio, encontramos a poesia. Sua prosa habita essas regiões?
O mundo é um lugar de “miséria e maravilha”, como disse o poeta. Graça e degradação. Isso me interessa como escritor. E embora eu seja um prosador, tenho especial apreço pela poesia, que acabo lendo até mais que a prosa. Falo de poetas cuja leitura nunca termina: Drummond, Bandeira, Murilo, Jorge de Lima, Carlos Penna Filho — por sinal, todos presentes no romance.

• Só os poetas de língua portuguesa lhe interessam?
Não. Leio um pouco de tudo, contemporâneos e clássicos, de várias procedências. Exemplos? O Michael Ondaatje, só conhecido no Brasil como prosador (autor de O paciente inglês e Na pele de um leão), é um excelente poeta, ainda não traduzido por aqui. Gosto também do americano John Ashbery e do romeno Marin Sorescu, que descobri recentemente.

• E nesse seu apreço pela poesia não há a vontade de publicar versos seus?
Meu primeiro livro, Por bares nunca dantes naufragados, publicado há exatos 20 anos, era uma coletânea de poemas. Hoje acho que foi uma indelicadeza minha com a poesia. Felizmente, até por uma questão de higiene e de respeito aos verdadeiros poetas, desisti. Aquilo já era prosa disfarçada em versos, eu não tenho dúvida. Prometi não reincidir no engano.

• A origem da tragédia de seus personagens está em relações familiares desastrosas. Cauby, aliás, demonstra tardiamente sofrer de uma grande nostalgia do núcleo familiar. A família é fundamental — para o bem ou para o mal de seus rebentos?
Reincido com freqüência nos núcleos familiares, publiquei até um livro chamado Famílias terrivelmente felizes. Acho a família uma formidável matriz de delicadezas e perversões, daí um excelente ponto de partida para a ficção.

• Sua literatura — e nela, é claro, não se incluem seus trabalhos como roteirista — sempre esteve muito ligada à imagem. O fato de Eu receberia… ser protagonizado por um fotógrafo é um reflexo de seu interesse pela literatura como registro de nosso olhar e de nossas observações?
Acho que cada um escreve literatura como pode. No meu caso, costumam mencionar o caráter imagético (ou cinematográfico) da minha prosa e, de forma equivocada, vincular essa característica à minha atividade como roteirista. É um engano. Tem a ver com o cinema, sim, mas não por causa dos roteiros. O cinema entrou na minha vida antes da literatura, me fascinou desde que, garoto, entrei pela primeira vez numa sala. Me parece natural que ele tenha contaminado minha forma de “contar” histórias. E isso nunca me incomodou — na verdade, não é uma coisa que me preocupa quando escrevo. Meu desejo é apenas contar uma história — e se consigo fazer o leitor “ver”, por que ficaria insatisfeito? Especificamente neste livro, a narrativa constituída por imagens me pareceu ainda mais coerente por ter um fotógrafo como narrador.

• Você já disse noutra entrevista (referente ao livro Cabeça a prêmio) que, apesar de não se considerar um pessimista, não via possibilidade de redenção para seus personagens. Isso mudou em Eu receberia…? Ou o pouco de esperança que a obra sugere é uma ironia do autor, uma exacerbação dos sentidos de um protagonista apaixonado, doente?
Eu não faria nenhuma ironia com a esperança, acredite. Gosto de pensar que, se não me converti num otimista (e o Brasil parece conspirar contra isso), ando um pouco menos pessimista hoje do que na época em que escrevi Cabeça a prêmio. Apesar de tudo, a gente muda, não é? Até para não trilhar caminhos pelos quais já passou — o que vale para a literatura e para a vida. Creio que todos estamos em transformação o tempo inteiro. Acredito que um certo arrefecimento no pessimismo advenha daí. Ou então da idade.

• Há quem o considere um seguidor de Rubem Fonseca — o que seria, para alguns, positivo, e, para outros, nem tanto. A comparação é injusta? Por que os resenhistas insistem em repeti-la?
Não é uma coisa que me incomoda. Pelo contrário. Rótulos nunca me incomodaram (a não ser em frascos de remédios genéricos). Gosto dos dramas criminais, mas tenho consciência de que a minha literatura visita também outros territórios. Fico muito feliz quando associam meu nome ao de Rubem Fonseca, certamente um dos escritores brasileiros que mais admiro. Ele estabeleceu as feições do moderno conto urbano brasileiro, e, na minha opinião, já tem lugar reservado na história da literatura brasileira contemporânea. Quanto às histórias policiais, penso que qualquer escritor que tenha enveredado pelo gênero no Brasil a partir da década de 70 deve alguma coisa a ele. Rubem Fonseca é um mestre do gênero.

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Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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