Como escrever romances

“Ada ou Ardor”, lançado por Nabokov aos 70 anos de idade, é a obra mais ambiciosa de sua carreira
Nabokov: homenagem ao cânone ocidental.
01/12/2005

Alguns escritores, para o bem ou para o mal, têm suas trajetórias marcadas por alguma obra. Para ser mais claro, ainda que eles possuam inúmeros livros publicados, sempre que seus nomes são mencionados em antologias, estudos literários, discussões acadêmicas e conversas entre literatos, há sempre um livro que é tido como peça-chave. Com efeito, exemplos desses autores (e suas masterpieces) não faltam: Kafka e A Metamorfose; T. S. Eliot e sua Waste Land; Charles Baudelaire e As Flores do Mal; Nabokov e Lolita. Este último, a propósito, tem não apenas sua obra centrada na importância de apenas um romance, como também sua literatura restrita a uma discussão moral, posto que o já referido Lolita aborda um tema para lá de espinhoso, dizendo o mínimo, que é a pedofilia. Contudo, Nabokov não parou nesse romance. É o que se tem visto com a edição de sua obra no Brasil, pela Companhia das Letras, que agora lança em português Ada ou Ardor — Crônica de uma família, livro em que o autor reforça o viço do seu estilo e aprimora a virtude temática.

Tal quilate literário fica claro desde as primeiras linhas. Isso porque quem conhece Anna Karênina, de Tolstói, costuma esticar a primeira frase daquele romance a todos os outros que mencionam como índice a família (como faz este título de Nabokov). Assim é natural que a frase inicial do romance de Tolstói apareça: “Todas as famílias felizes são mais ou menos parecidas; as infelizes são infelizes cada qual à sua maneira”. Em Ada ou Ardor, Nabokov faz uma paródia com essa sentença e, conseqüentemente, até um princípio de blague. Diz ele, em seguida, que, ao contrário do que o leitor possa supor, não há qualquer relação entre aquele romance e esta crônica familiar, uma vez que é outra obra de Tolstói que se assemelha ao presente livro. Em todo caso, essa explicação, que consta logo no primeiro parágrafo, é uma mostra do que aguarda o leitor nas páginas seguintes: muitas referências literárias e uma narrativa bem elaborada que, por sua vez, demandam uma atenção especial a fim de apreender todos os sentidos deste romance.

Na Mansão de Ardis
Resumindo-o em poucas palavras, o livro disseca, para todos os efeitos, o profundo íntimo das relações humanas (bem como amorosas) de um casal desde sua tenra infância. Nesse sentido, o vínculo familiar é de tal maneira intenso que o próprio Nabokov decide estruturar, antes que o romance se inicie, uma árvore genealógica que remonta os primórdios da família em questão. Assim, o leitor logo descobre quem é quem, mas, desde os primeiros parágrafos, percebe-se que os personagens centrais deste livro são o casal Van e Ada, fiéis depositários de esperanças, sonhos, amarguras e frustrações.

É preciso afirmar que, ainda nesse princípio, a trajetória de Ada e Van se confunde com a história da Mansão de Ardis. Nabokov deixa isso bem claro ao descrever a casa com riqueza de detalhes semelhante aos perfis que traça das personagens, apontando, no primeiro caso, elementos de sua decoração e de seu ambiente; e, no segundo, traços de personalidade e, sobretudo, olhares sobre pessoas e lugares. As minúcias, com isso, nunca cessam, a ponto de o narrador ressaltar com a mesma fidelidade nuances da fala e gestos. Isso fica evidente quando é trazida a referência a propósito do título do livro: “Dá para se ver o Tarn da janela da biblioteca, disse Marina. Daqui a pouco Ada vai te mostrar todos os quartos da casa. Ada? (Pronunciou o nome à maneira russa, com dois ‘a’ profundos e graves, fazendo-o soar como a pronúncia inglesa da palavra ardor)”.

Os parênteses, espécie de notas de rodapé, evidenciam o caráter quase ensaístico que o autor propõe nesta obra. Desse modo, à medida que se avança na leitura, o leitor aprende porque é possível considerar Ada ou Ardor um romance sobre como escrever romances. Composto a partir de anotações realizadas entre 1959 e 1966, a narrativa por vezes se torna entrecortada de referências internas à origem e ao conteúdo de outros romances. Só isso explica a existência, para além da metalinguagem e do roman à clef (texto que trata de temas reais por trás da fachada de ficção), o número de paródias aparentemente fora do lugar, mas que estão presentes nas grandes obras da literatura mundial, em especial nos romances do século 19. Aqui, além de Tolstói, surgem os franceses Flaubert e Guy de Maupassant, sendo que deste último o enredo de um de seus contos é tomado emprestado para virar obra de uma personagem do livro.

Nota-se, ainda, outro contraste no que se refere à forma, posto que, se os parágrafos são extensos, alguns capítulos são mais curtos que o esperado. Com tudo isso, o leitor pode acreditar que Nabokov preferiu um exercício de estilo a uma narrativa convencional, como se quisesse provar que, de fato, é um escritor genial e brilhante. Entretanto, muito embora a leitura seja um pouco pedregosa, há que se notar não somente o aspecto experimental, mas, principalmente, farsesco, burlesco, até mesmo cômico de Ada ou Ardor. De um lado, porque o escritor mescla em sua narrativa não somente a condição humana, com seus vícios e virtudes, mas também tece um panorama da vida aristocrática na Rússia pré-revolução (algo que ele mesmo, Nabokov, presenciou — eis aí o dado biográfico da história), sem mencionar o elemento da ficção científica — os personagens vivem na Antiterra, lugar que se parece muito com a Terra, mas não é ela. Por outro lado, os elementos farsescos podem ser atestados à medida que se entendem, e daí a importância da leitura das notas acrescidas ao final do livro, todas as referências que o autor propõe. A começar pelo já citado Ana Karênina, no qual está incutida a piada das péssimas traduções, as demais citações são uma forma de fazer comicidade da chamada alta literatura, como quando diz que Proust “gostava de decapitar ratos quando perdia o sono, ou tratar da barbicha pontuda do dramaturgo William [Shakespeare]”.

Biscoito fino
Com todos esses elementos juntos, a sensação de que o escritor elabora uma “obra com teor de ensaio ganha ainda mais força se se perceber a prosa requintada de Nabokov. De fato, mesmo lidando com literatura erótica e ficção científica (temas aparentemente “menores”), ele não faz concessão ao estilo. A forma não perde espaço e, conseqüentemente, arremata o chamado romance de idéias. Obviamente, como se trata de um texto acima da média, não é, de longe, uma literatura popular; mesmo assim, há inúmeros elementos de uma narrativa cômica, num estágio acima, quem sabe, da piada pronta; para citar Oswald de Andrade, é um biscoito fino.

Nesse sentido, ao final do livro, há um posfácio intitulado O fascínio de Ada, assinado por Brian Boyd, autor de duas biografias de Nabokov. A leitura é de fundamental importância para o entendimento das menções existentes em Ada ou Ardor, mas também se faz necessária para colocar o livro em seu devido lugar na história. Em outras palavras, Boyd assevera que esta obra se equivale ao Ulisses, de James Joyce, mesmo que os paralelos traçados entre os livros estejam mais encontrando pontos distintos do que detalhes em comum. Ainda assim, o que o biógrafo assinala é o caráter único que as duas obras adquirem, cada qual em seu lugar na história da literatura. Com isso (e o leitor que me perdoe o name-dropping a seguir), enquanto Joyce mistura Homero e Shakespeare, escreve Boyd, Nabokov passeia por Chateaubriand, Dickens, Rimbaud, Proust, Cervantes, numa espécie de homenagem ao cânone da literatura ocidental. De volta ao terreno do ensaismo, é como que uma referência indireta aos clássicos nesse estudo literário.

Em que pese essa interpretação, Ada ou Ardor não deve, de maneira alguma, ser encarado como um livro para iniciados, os cultores dos clássicos. Se é verdade que eles poderão apreciar o romance com maior prazer, também é verdade que o leitor médio poderá, com esforço e disciplina, poderá conhecer uma nova forma de contar histórias, com a vantagem de poder conferir as pistas ao final do livro. Por outro lado, é uma ótima oportunidade para conhecer mais de Nabokov e saber que, ao contrário do discurso lugar-comum, ele escreveu outras obras-primas.

Ada ou Ardor
Vladimir Nabokov
Trad.: Jorio Dauster
Companhia das Letras
465 págs.
Vladimir Nabokov
Nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1899. Viveu na Alemanha, na França e nos Estados Unidos. Morreu na Suíça, em 1977. É autor de Lolita, Ada ou Ardor e Fogo pálido, entre outros.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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