Baby boom

Conto de Paulo Nogueira
Ilustração: Osvalter
01/12/2005

Como aquilo era bonito. Mais do que bonito, até: belo. Belo era mais do que bonito? Fátima achava que sim, mas não tinha a certeza. Não era boa com as palavras, muito menos com as palavras bonitas. Ou belas. Na verdade, aquilo era mais do que bonito e mais do que belo. Como é que sabia? Fácil: dantes já vira coisas (bem poucas, é certo) a que chamara bonitas e coisas a que chamara belas — e aquilo era muito, mas muito mais bonito e belo do que tudo o que havia visto até hoje. De longe.

Claro que toda aquela beleza, toda aquela elegância opulenta e majestosa, toda aquela simetria delicada era, por isso mesmo, infame e repulsiva. No país donde ela vinha, tinham sido proibidos, de entre inúmeras outras aberrações, as jarras de flores.

Chamou-o “Paraíso”. Era uma blasfémia, claro, e das piores, daquelas que dão direito a lapidação até à morte. Mas estava segura, ali. Não contaria nada a ninguém, e os seus bebés muito menos. O primeiro bebé não passava de um feto de três meses, sem dentes ou unhas, apenas um monograma de plasma e albumina bordado no seu ventre. Já o segundo bebé, embora plenamente desenvolvido e capaz de rugir com um vozeirão ribombante e ensurdecedor, também dormia docilmente na manjedoura da sua barriga. Por sua vez, Fátima tão-pouco diria fosse o que fosse, pois daqui a pouco já não teria língua. Nem traqueia nem cabeça nem nada.

Avançou timidamente à procura do elevador de serviço, encostada à parede de mármore como quem foge à chuva. Enquanto se esgueirava, aproveitou para admirar mais um pouco, de soslaio e cabeça baixa, aquele esplendor desenganado e malsão: os tapetes, os quadros, as colunas, as esculturas, os sofás, as escadarias como sopés de montanhas, a fragrância doce que pairava no ar, numa Primavera eterna. Os futuros restos mortais do Paraíso.

Era o Palácio das Mil e Uma Noites. Ela era a Sherazade. E daqui a nada diria a última palavra. Não “era uma vez”, mas “fim”. E viveram infelizes para todo o sempre.

Fátima estava ali para aniquilar aquele hotel, aquele caravançarai do Éden. Riscá-lo do mapa, varrê-lo da face da terra. Ela era a emissária do caos. Emissária do caos — fora assim que ele a tinha chamado, na bafienta tenda do campo de treino, arranhando-a com a sua barba de ouriço. Fátima fechara os olhos e abrira as pernas de par em par, como um compasso, e ele semeara nela aquele rastilho de pólvora, aquele cavalo de Tróia. Depois, enquanto ela ainda arfava e tentava perceber se gostara ou não daquele vórtice barulhento, e se gostava ou não dele, e se ele gostava ou não dela, o mestre acariciara-lhe uma melena murcha e murmurara: Minha emissária do caos Ninguém nunca desconfiará de ti — com uma doçura tão terna e sonhadora que Fátima considerara a coisa mais bonita (e mais bela) que já vira ou ouvira.

Mas o Paraíso era ainda mais bonito e ainda mais belo que os galanteios dele.

Também não era preciso muito.

— O teu nariz é de águia, e os teus olhos são de toupeira — rira-se o mestre mais tarde, e os outros riram-se também, como hienas. E ela também se riu, achando que era o mínimo que podia fazer, já que estava ali para ajudar no que fosse preciso, de lavar o chão a engravidar para matar. — Tu, Fátima, que não fazes nada certo, só serves para aquilo.

Ela ficou sem saber se aquilo era aquilo, ou se aquilo era isto, agora. Não sabia qual das coisas lhe metia mais medo. Mas era verdade, ela não prestava mesmo para nada: não tinha rabo, não tinha mamas, não tinha cintura — só aquele buraco ermo lá em baixo a identificava como mulher. Um buraco não passa de um vazio. Ela era um vazio, uma terra de ninguém.

Porém, a partir de agora, um vazio cheio com duas metades. Um vazio siamês. Um vazio de alguém. Um vazio dela. E ninguém senão ela poderia executar aquela dança do ventre.

Empurrou o carrinho das limpezas para o elevador, sobre a carpete felpuda. Um paninho escorregou da borda e ondulou para o chão, como um peixe na corrente. Um senhor de fato ia a passar, com um telemóvel na mão. Baixou-se, apanhou o pano e estendeu-lho, com um vago sorriso afável. Não a olhou nos olhos nem deixou de tagarelar entusiasticamente ao telemóvel, e foi-se embora. Fátima não disse nada. Grunhiu qualquer coisa gutural que nem ela entendeu.

Ah, e nem sequer agradeceu. O mestre tinha-lhe explicado que eram todos maus, lá, e que os bons eram os piores de todos, pois eram uns hipócritas — faziam as maldades e ainda gozavam connosco. E existia ainda um género muito pior que o falso bom, que era o bom genuíno, pois este só empatava as coisas com a sua bondade estúpida. Bem, talvez aquele hóspede tivesse sido amável apenas por causa dos bebés dela, que já lhe avultavam no ventre. O bebé de carne e osso era o seu passaporte, o seu salvo-conduto. O feto de três meses contrabandeava a passagem do seu irmão gémeo, a ovelha negra da família. Fátima lembrou-se das bonecas russas, com uma bonequinha dentro da outra, dentro da outra, dentro da outra — até não haver mais nada. Até não sobrar nada.

Apertou o botão do elevador e esperou. Sim, o mestre não gostava muito dela. Mas ela tão-pouco o amava. Como podia amá-lo se mal o conhecia, se ele não era suficientemente belo ou meigo ou ardente para uma espécie de amor à primeira vista? A única coisa que Fátima amava nele era que queria ser amada por ele. Não por ele ser o mestre, mas por ser outra pessoa que não ela. Até ontem, ela era o vazio. O zero, aquele algarismo que eles tinham inventado.

A luz do elevador acendeu-se e Fátima empurrou o carrinho lá para dentro. Saiu num andar intermediário e depois voltou a entrar, de mãos a abanar, já sem aquele fardo. Ia ter ao spa. O seu oásis. As suas areias movediças.

O elevador rangeu e deslizou para a cave. Suavemente, como se uma mão o amparasse com uma luva, daquelas bem gordas e acolchoadas, que ajudam a retirar os assados fumegantes do forno. Ainda assim, sentiu um bebé a palpitar. Qual deles? O que transportava a vida? Ou o que semeava a morte? Introduziu devagarinho uma mão sob o avental e tocou no cinto com os explosivos. Segurou-o delicadamente, entre o polegar e o indicador, como se seguram as borboletas para não se lhes retirar o pó das asas. Tudo bem. Tudo bem com ambos os bebés, cujos corações batiam quase em uníssono — o relógio como um coração, e o coração como um relógio. Era como se cantarolassem uma cantiga de embalar, aquelas duas coisas vivas que Fátima trazia nas entranhas – aquelas filhas dos homens. Brevemente — na verdade, dentro de minutos — teria de escolher com qual bebé queria ficar.

Deteve-se, incrédula, no hall do spa. Aquele era o cenário mais belo que ela jamais vira. Embutidas nas paredes, concavidades rectangulares revestidas de mogno continham pilhas de toalhas dobradas, como lenha numa cabana florestal. Num silêncio quase pós-nuclear, Fátima podia aspirar o aroma a alfazema que emanava delas, e adivinhar a sua maciez de cetim. Um labirinto povoado de balcões, sofás e mesinhas com sais aromáticos, sabonetes, chá de hortelã e flores secas serpenteava rumo à sauna. Do lado oposto, depois de uma parede de vidro imaculado e sob um tecto abobadado, espraiava-se o mais belo de tudo: uma imensa piscina de água cor de lótus, num ambiente climatizado. Chaises-longues rodeavam hospitaleiramente a piscina, tão amplas que um rinoceronte poderia estender-se nelas com todo o conforto e dormir o sono dos justos.

Para sua surpresa, ninguém lhe dirigiu a palavra, nem lhe perguntou nada. Era uma hora morta, é certo, mas mesmo assim… Mais uma vez, o mestre acertara em cheio.

— Ninguém falará contigo. Ou porque têm mais que fazer, ou para não parecerem paternalistas. Mais do que tudo, eles detestam parecer paternalistas. De resto, já te conhecem de vista.

Puxou respeitosamente a maçaneta de madeira e entrou no recinto da piscina. Ui, que quentinho. Suspirou de modo imperceptível. O ar puro como pão ázimo. Olhou em volta e não viu vivalma, a não ser a diminuta cabeça da jovem no balcão da recepção, lá ao longe, ao pé do elevador.

Aquilo era realmente tão bonito. Que pena não trazer consigo uma câmara fotográfica. Para mostrar a quem, quando? E depois? Soubera que as mulheres-bomba de Beslan haviam tirado fotos com os filhos ao colo, antes de seguirem para a sua missão sem regresso. Bem, ela não trouxera a máquina mas trouxera o próprio filho — e a outra máquina. O que aconteceria ao bebé a seguir a explosão? Morreria biologicamente, certo, mas e depois?

O mestre explicara-lhe:

— O Corão diz explicitamente que os mártires ascendem directamente ao Céu, onde descansam em leitos incrustados de ouro e pedras preciosas. Os homens são servidos de frutas e bebidas por jovens beldades que fazem sexo incessantemente, mas permanecem virgens para sempre. Cada mártir tem direito a 100 virgens.

Fátima olhou para os sapatos rotos, pensou um pouco e perguntou:

— O que faço com elas, mestre? Com as 100 virgens?

O mestre não se dignou a responder, mas o seu lugar-tenente não se fez de rogado:

— Podes guardá-las para mim, se faz favor.

Fátima não sabia se ele estava a brincar. Provavelmente não, pois eles nunca brincavam em serviço. Mas como podia ter a certeza? Nunca andara numa boa escola, nem tivera um emprego decente, nunca morara numa casa com quatro paredes. Até aos 18 anos, quando emigrara mais ou menos sem saber como, o pai dela só lhe dissera uma palavra: “Silêncio”. Para uma mulher jovem, viver ali, naquele mundo árido e austero em que vivia antes, era como fazer sexo com o homem que ela mais odiasse. Todos os dias. Como uma das tais 100 virgens. Era ser enterrada viva.

No entanto, o martírio iria alterar tudo. Ao ser enterrada morta, conquistaria admiração, aceitação e até amor, mesmo na sua condição de mãe solteira (não se lapida uma mártir). Wafa e Ayat, duas mulheres-bomba que atacaram um concerto de rock, tinham sido homenageadas este ano por astros do cinema egípcio (alguns deles bem bonitos ou belos), durante uma gala beneficente no Cairo. De qualquer forma, o mestre dissera-lhe, antes da derradeira prece:

— Matar o inimigo não é legítimo — é obrigatório.

A piscina continuava deserta. Por causa da barriga em forma de crescente, Fátima contorceu-se um bocadinho e sentou-se, hirta, numa daquelas camas macias como nuvens. Sentiu uma cólica a chegar. Sabia-o, agora. Se calhar sempre o soubera. Por todas as razões e mais algumas, teria de escolher entre os dois bebés. Com qual deles quereria ficar. Soltou todo o ar dos pulmões. Um dos bebés dava-lhe tudo: respeito, empatia, comunhão, até inveja. O outro arrebatava-lhe tudo isto. Mas ela gostava dos dois da mesma maneira… Para uma mãe, todos os filhos são iguais, independentemente dos seus méritos.

Sim, teria de escolher, como naquela história do Rei Salomão. A mãe que prescindiu do filho, para que ele não fosse cortado ao meio, era a mãe verdadeira. Se pudesse banhar o seu bebé naquelas águas — o primeiro banho! —, já não lhe custaria tanto… Ora, ela própria armara o relógio e ainda dispunha de alguns momentos para uma ablução. Relanceou os olhos por cima dos ombros, entreabriu a blusa e soltou o cinto cravejado de bombas. Pousou-o cautelosamente no chão, a seu lado. O mestre dissera-lhe:

— Um homem armado é um cidadão. Um homem desarmado é um súbdito.

Escorregou furtivamente para a água, que ninguém estava a olhar. Acariciou o ventre rotundo, o umbigo desabrochado, e sentiu um frémito de prazer. Sorriu. Aquela criança não seria esquisita na hora do banho.

Naquele instante, a porta de vidro abriu-se de rompante, e dois meninos loiros avançaram lá para dentro, com uma impetuosidade infantil. Uma mulher de biquini, presumivelmente a mãe, veio logo atrás deles, ralhando-lhes em voz baixa e explicando-lhes, numa das muitas línguas que Fátima desconhecia, a proscrição dos mergulhos naquele spa recatado. Os meninos avistaram a intrusa e, por um momento, detiveram-se, paralisados. Depois, um deles esboçou um sorriso envergonhado e contrito, e o outro deitou-lhe uma língua travessa, cor de salmão.

Fátima tomou a decisão. Já sabia com qual gémeo ficar. Saltitando nas plantas dos pés, como um astronauta no Mar da Tranquilidade, deslizou de novo da borda da piscina, onde jazia o cinto. Pegou nele e esticou o dedo para desactivar o detonador. Mas era tarde de mais. Um dos meninos lançou-se à água com os braços em redor dos joelhos. O clarão foi ofuscante, jorrando em todas as direcções um branco árctico — e o impacto indescritível.

Confusa, Fátima só teve tempo de pensar isto: “Deus queira que Deus exista”. E quase no mesmo instante: “Se calhar talvez seja melhor que não”.

Paulo Nogueira

Nasceu no Brasil, em 1961. Estudou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Em meados dos anos 80, viajou para a Europa, fixando-se em Portugal. Lançou o seu primeiro romance, O homem que foi para o céu, em 1996. Depois vieram mais cinco: O último dia do mundo, O corpo estranho, Um é pouco, dois é demais, O suicida feliz e Transatlântico. Também já publicou contos em várias revistas européias. Trabalha como jornalista na área cultural, e uma antologia de suas crônicas, Penso rápido, foi editada em 1995. Em 2006, deverá sair uma compilação de perfis culturais de sua autoria: Wittgenstein, caviar e calcinhas. O suicida feliz acaba de ser publicado no Brasil, pela Planeta; Transatlântico sai no ano que vem. O escritor é casado pela segunda vez e tem três filhos.

Rascunho