Mata Doce, romance de Luciany Aparecida, marca a literatura do presente com uma experiência extrema de linguagem. Essa experiência acontece desde o início do livro, quando a vontade de uma mulher é dar vazão à sua mágoa.
A mulher, que será cindida pelas feridas abertas causadas pela opressão do homem branco naquelas terras e nas carnes das pessoas que lá vivem, pode ser Maria Teresa ou Filinha Mata-Boi, e assim a pessoa narradora também se descola, levando a leitura de um extremo a outro, entre o afeto de uma casa com um roseiral branco e mulheres em cumplicidade e a secura da poeira no entorno, que traz morte, ressentimento e ganância.
Assim começa a narrativa:
Maria Teresa parou em frente ao boi vivo e arrancou sua careta. O animal perdeu seu sentido controlado de direção, mas não tinha mais como escapar. A mulher achava justo que a morte se apresentasse de frente. Quando ela encarava o boi, o sangue da vida ainda corria quente por baixo da sua cabeça.
As protagonistas são mulheres, é uma história de mulheres, são delas as memórias que dão vida à Mata Doce: a juíza Sales, autoridade cuidadora do povoado, as irmãs do noivo Zezito, Angélica, Josefa, Mãe Maximiliana dos Santos, a Velha Eustaquia, Belisária, a cachorra Chula e as três mães de Maria Teresa: a professora Mariinha e sua companheira Tuninha, ex-prostituta e transexual, e Lai, a mãe biológica, sempre presentes, cada uma com seu ofício de cuidado e coragem. Também alguns homens circundam a história e as memórias, alguns valiosos, como Zezito e Mané da Gaita, Thadeu e Venâncio, Manuel Querino, o intelectual que deixa de legado para Maria Teresa o livro Úrsula na biblioteca do colégio Sacramentina e Silva. E ainda as histórias paralelas dos gêmeos Cícero e Antônio, os pais todos desaparecidos e mais os mandantes de tragédias, homens ressentidos que minam aquela terra de fortes com heranças de selvageria. Há outras mulheres, outros homens, muitas histórias, porque o tempo desliza e secreta passagens em suas gavetas no decorrer da narrativa. Mas antes, desde sua origem, “Mata Doce foi sendo um lugar de acolhimento e amparo para mulheres desvalidas”.
Linguagem direta
Falar do enredo, do que se desenrola nessas páginas, é quase uma inadequação, porque só se percebe a ambiência e os cheiros dessa leitura, quando se adentra à linguagem que ela traz e as imagens todas daquele lugar na transição da Caatinga com a Mata Atlântica, entre a aridez e a abundância. A autora sabe laborar com a palavra de maneira a tornar tudo simples, cristalino, não há enleios, a linguagem é direta, sem apelos e, no entanto, de uma aterradora força poética. Há elementos que são fontes de muita memória, daria para pinçá-los do livro para aqui evocar os fantasmas de suas lembranças, como o espelho, o roseiral, a caixa com o vestido de noiva, a serpente em ponto cruz, a máquina de escrever, as cartas não enviadas, o livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, a careta de boi, a Casa de Oió, as araras azuis. E a partir deles, vai se tecendo uma tapeçaria infinita de amor germinado em dores coloniais, tecido no qual se desvela lentamente uma fantasmagoria cujas vozes se entrelaçam, as vozes vivas e as mortas, memória e correspondência, perseverança e luta, mas também a trégua necessária para arquitetar em fogo brando a resposta a todas as perdas.
Pretendo explicar melhor e situar o que chamo experiência extrema de linguagem. Porque, sim, trata-se de uma língua que vem inaugurando contações de histórias decolonias, é uma maneira diferente de manejar as palavras, que pode ser sentida em escritas como a de Conceição Evaristo, em Ponciá Vicêncio, por exemplo. Luciany Aparecida faz manobras inusitadas com a língua e, com uma utilização singular dos verbos, dá conta ainda de um ajuste de tempo, que vivenciamos lento e presente, num passado que se torna cada vez mais vasto, transcorrendo em fim e começo, enleando-se como serpente que morde o próprio rabo. É o caso da recorrência do verbo haver no pretérito imperfeito com particípio, como “havia servido”, “havia ido”, “havia sentido”, “havia sido” — e nos conduz em uma espécie de dança singular, com passos que só se aprende ao visitar aquele lugar, aquela escrita, naquela determinada hora.
Era hora de sol forte, era hora do brilho da chuva. A sanfona e a harmônica tocaram uma canção de amor. Ficamos abraçados após o beijo, começou uma festa. Um boi encantado trajado de branco dançava na frente da casa, e parecia que ele não tinha pés, que não tocava o chão. Rimos. Nos alargamos naquele prazer. A roupagem branca avoava. O boi não nos via pois vestia uma careta. Tudo branco. O boi avoava, leve como cantiga de sabiá. Eu me virei para Zezito e beijei sua boca. De olhos fechados também despregamos das certezas do mundo e nos entregamos à dança. Avoamos.
O tempo é personagem marcante e soberano em Mata Doce, mas ainda mais forte é a memória, que resiste ao tempo, tudo ali favorece o não esquecimento. E ao lado de Ponciá Vicêncio, poderíamos rememorar Amada, de Toni Morrison, livro para o qual a própria autora definiu o tema: “possibilidades reveladoras da narração histórica quando as oposições corpo-mente, sujeito-objeto, presente-passado, vistas pelo prisma da raça, se desmancham e se integram”.
Então, surgem algumas perguntas obrigatórias: eu teria capacidade de discernir o que há por trás dessa maneira tão singular de contar histórias? Ou de adentrar esse território não colonizado de uma linguagem e imagens próprias? Teria alcance de captar todos os mistérios dos símbolos sagrados de suas mitologias e cosmogonias? Muito provável que não. Mas me consolo com minha cumplicidade de leitora em descoberta, que desconhece muito dessas histórias indistintas, incompletas e enterradas. Por isso, recorri a outras leituras e retomei alguns ensaios de Toni Morrison para perseguir uma impressão.
No texto Questão de raça, escrito em 1994, Toni Morrison faz uma comparação entre a casa racial, onde predomina a visão branca e ocidental da raça, como parque temático ou sonho sempre fracassado, e o lar racial no qual se elimina a potência das construções raciais. E percebe-se aqui uma causa, o compromisso de Toni Morrison era fazer da sua literatura uma possibilidade de lar. Converter a casa racista no lar de uma raça e livrar sua história do cerco fatal da devastação é uma questão de conceito, de linguagem, de trajetória, de habitação, de ocupação, de estratégia, de literatura.
E Mata Doce, que provavelmente será tema de muitos estudos acadêmicos, é o trabalho de Luciany Aparecida na elaboração desse lar, tendo como cenário o Brasil profundo. A professora e escritora Telma Sherer identifica no livro muito elementos estruturais do neorrealismo dos anos 1930, no tratamento franco e aberto dos temas sociais e no formato realista e clássico do gênero romance. Por sinal, como não lembrar da cachorra Baleia de Graciliano Ramos ao nos depararmos com Chula, a cadelinha de Mata Doce? Mas essa é uma outra longa conversa.
Fato que não passa despercebido é a homenagem a Maria Firmina dos Reis, com o livro Úrsula, primeiro romance brasileiro publicado por uma mulher, além de ser, é claro, uma obra de caráter abolicionista. Lembrando ainda que Maria Firmina foi professora, como Mariinha, mãe de Maria Teresa, e fundou, em terras maranhenses, uma escola num barracão na propriedade de um senhor de engenho, com aula mista e gratuita para alunos que não podiam pagar e que lá chegava para dar aulas num carro de boi.
Também seria tema para outras conversas tudo que pode escapar a uma leitura que não se coloca em compromisso com a descoberta de algo que sempre esteve lá, uma espécie de novidade antiga, reaparecendo com outras caras na literatura brasileira, citando apenas de passagem o exemplo de Torto arado, de Itamar Vieira Jr. Refiro-me à religiosidade das pessoas de santo, e os orixás com seus atributos, cada qual ligado a personagens específicos, como Yemanjá Sabá, Oxossi, Oyá e Xangô.
E há os textos que se apresentam nas missivas, correspondências que chegam muito tarde a seu destino ou que nem chegam. As cartas são um caso à parte, textos dentro do texto, como a própria escrita de Maria Teresa. Toni Morrison afirmava que apenas com a escrita de ficção se sente coerente e livre, que escrevendo encontrava a ilusão e o artifício do controle, “de se aninhar cada vez mais perto do significado”. Maria Teresa, despida de seu duplo Filinha Mata-boi, escreve as cartas das pessoas daquele povoado e escreve a vida, suas histórias, sem precisão de verdade e sem certezas, buscando a companhia de palavras silenciosas, conforme revela a certa altura: “Por isso passei a escrever, para ver brotar gente do meu corpo. Para sentir o renascimento das ramas do meu peito”.