A que vêm certas obras?

A intromissão excessiva da antropologia e da história torna a leitura de "A repetição" em difícil tarefa
Pedro Cesarino, autor de “A repetição”
01/05/2024

A dedicação de Pedro Cesarino à antropologia o levou a transfigurar fatos e estudos sobre cosmogonias indígenas e africanas para o universo da ficção. A repetição traz duas novelas, uma dedicada à memória dos indígenas do norte do país, outra à memória dos escravos africanos desembarcados no litoral de São Paulo. A leitura nos faz mergulhar num universo em que se revoga a lógica e as fronteiras entre mitos, cosmogonias, certo xamanismo e a realidade. Há uma névoa que se firma através da frase firme — em alguns momentos lírica.

O autor, por meio deste procedimento ficcional, deseja marcar a brutalidade contra os povos originais e contra africanos aqui escravizados.

Supõe-se, assim, uma narrativa que trata a brutalidade da colonização de forma renovada, em que a denúncia vem emoldurada ficcionalmente pelos escritos de um alentado pesquisador.

Isso é bom para o leitor? Por mais seguro que seja o tom da escrita de Cesarino, é preciso dizer que o leitor não iniciado em estudos antropológicos, nem afeito a ambientes tão específicos, fica à deriva, e pergunta o que deseja, além da denúncia, o autor. Transformar leituras, estudos (ou fatos verídicos) em ficção é tarefa árdua.

Este escritor, a quem perguntaremos o tempo todo “A que vem esta história?”, “O que quer dizer ?” só nos explicará, em nota específica, ao final de 140 páginas de dificílima leitura, qual foi seu processo criador e qual a origem da pesquisa para o caminho da ficcionalização. Quer dizer, a nota, ao final do tomo, vale por bibliografia.

É claro que não esperava explicações iniciais. Desejaria que o leitor aderisse à história. Não se calar diante do reconhecimento da violência da colonização exige (E não desejo leitores rasos para esta obra!) acenos, simpatia do leitor que, no caso destas narrativas, se aflige com a atmosfera, ora onírica, ora multifacetada com sonhos e delírios, deixando, talvez, de assumir nossa culpa de colonizadores.

O mentiroso
O mentiroso, em terceira pessoa com narrador que enxerga do alto (mas que adere ao “sotaque” ameríndio, e isso é bom), traz um menino indígena, Américo, que observa um velho tio, Totanauá, cheio de trejeitos, emudecido, e tido como louco e improdutivo pela tribo. Aos olhos do menino, o tio representava algo distinto, numa época em que não havia muito contato com a civilização. Como foi obrigado a trabalhar a soldo fora da aldeia, voltará depois de três anos à tribo, onde encontra duvidoso progresso, que analisa surpreso:

Pedaços de ferro velho, garrafas, e galões vazios, ferramentas jogadas pelos cantos, muita coisa que ele não via antes por ali agora enchia os cantos das casas (…), trapos de roupa rasgada, cada casa com um rádio que tocava alto as músicas de traição.

O olhar, aqui, é claramente o do autor, o que podia ser amenizado. A narrativa poderia, aliás, para um leitor afeito à ficção, residir também na bela observação da velhice demente diante da juventude a moldar-se nos limites da vida. O tio, que ninguém sabia que sabia ler, lerá, surpreendendo a todos, os papéis que aparecem amontoados na maloca — jornais doados para amenizar o frio dos indígenas. A partir disso, o velho Totanauá, o coitado, passa a ser uma espécie de xamã, profeta de um futuro — supostamente tão próspero onde ninguém precisaria trabalhar mais.

(…) assim ela falou para mim. Assim mesmo é que estou lendo. São Paulo, Sinop, Cuiabá. Ele vem cortando as nuvens, o barco de metal vem rápido pelas nuvens.

Que agora o tempo vai mudar(…) vai mudar o tempo de agora! Canoa do céu, canoa de aço (…) Ela vem trazendo nossas coisas!

Sem sinal da “canoa de metal” com remédios, progresso e mercadorias, a tribo aos poucos atribui as falas à conta de mentiras: “Ele enganou a gente!” (p. 37) “Falador! Mentiroso”(p. 33). Américo tenta salvar o tio, tira-o da maloca; este pega as tralhas, despede-se e sobe numa “bolsa-casa”, nessa cosmogonia brilhante, como um balão iluminado.

Este resumo é pobre, mas ainda assim, creio que se percebem as alegorias, talvez, excessivas, ora líricas, ora antecedidas de convicções que marcam a narrativa.

Após a nota do autor
Somente saberemos, como já disse, ao fim da obra, por meio da nota de Cesarino, que sua inspiração (digamos) foi trazida de um acontecimento verídico, narrado em 1950 por um chefe do povo Yine (Piro), no Peru, sobre um parente que aprendeu a ler. O relato foi recolhido na língua yine e publicado em Berkeley, em 1965 (conforme página 141). “E daí?” — perguntaria um eminente crítico da literatura.

Em nenhum momento desejo afirmar que a ficção é ingênua, ao contrário, ela nos inquieta — provoca discussões. E quanto às denúncias, reconheço no autor o empenho para mostrar invisibilidades, reconheço o esforço para fugir ao discurso óbvio para pobres e oprimidos.

Penso, porém, que a transfiguração romanesca precisa (e sempre precisou) deixar mais encoberto o factual, a pesquisa e o conjunto de convicções de um autor. É tal a inquietação com esse dilema (verdade/mentira na ficção) que, ao fim do século passado, se ostenta um “novo” gênero, a autoficção, uma manobra até certo ponto desesperada para reverter a vida em literatura.

Creio firmemente — e com todo o respeito pelo autor — que, ao se desejar uma ficção potente, recorrendo a mitologias, valendo-se um tanto visceralmente de estudos e documentos históricos, o resultado pode contaminar e levar ao limite uma obra, transformando-a em mais um estudo, que pouco interessará a leitores não iniciados, e sim, mais interessados na falácia voluntária que é a ficção.

A dívida
Em primeira pessoa, a segunda novela, A dívida, se passa hoje, na cidade e no litoral. O protagonista, “negro claro,” como dizia seu avô, é professor universitário aposentado e solitário, e vê imagens em sonhos ou emergindo de seus sentidos.

Ecoam um tanto evidentes na narrativa os mais tristes momentos da pandemia real que vivemos há pouco. O velho “M.”, como se chama o personagem, acorda todos os dias e segue para a frente de um hospital onde, sob a benevolência dos vigias, senta e conversa com pessoas que acabam de perder seus entes queridos, mortos naquele lugar. “M.” é um xamã, um visionário, e será visto por consulentes como uma espécie de charlatão, que mergulha num mundo onírico para oferecer soluções aos que sofrem. (De certa forma, ambos os protagonistas prometem no discurso o que a realidade não trará).

Sentado em minha cadeira de plástico num canto do jardim, eu sabia que a morte tinha se transformado numa dúvida insuportável para aquelas pessoas. Os que ficavam eram assediados pela presença dos que haviam partido de uma hora para outra, sem nenhum preparo (…)

(As pessoas) andavam por uma cidade que deixara de abrigá-las. Nas ruas de baixo, eclipsadas pelas sombras das torres de vidro, elas não tinham mais como saber de si.

“M” convive com duas irmãs fantasmagóricas, com quem conversa, em casa, à noite, sozinho. Em seus delírios e sonhos, vê negros jovens, prováveis fantasmas de jovens negros mortos muitos séculos antes.

(…) notei que a laje de pedra escondia a entrada para um buraco, de onde saía o foco de luz. Os meninos tentavam segurar meus pulsos, mas suas mãos e braços começavam a se esvair enquanto eram atraídos para dentro daquele lugar. (…) Agora, o pavor corria por baixo de minha pele.

Aqui também o leitor precisa absorver boa porção de referências mágicas, sonhos, relatos — o que torna a leitura difícil, longa e tediosa.

O avô, lembra-nos o protagonista, afirmara: “quem tem a pele como a nossa precisa saber desses acontecidos de muito tempo atrás, precisa saber!”.

Imbuído do dever, o protagonista descobre documentos do passado e determina que aquele lugar no litoral era um pequeno porto onde chegavam ilegalmente escravos africanos. Na nota final, o autor nos informa que consultou estudos de história e arqueologia sobre o tráfico de africanos no litoral norte de São Paulo.

A Ilha do Mar Revolto (fictício lugar do litoral norte de São Paulo) “passa a ser seu destino, levado por um barqueiro, que lá o deixa”.

Isolada no horizonte, ela reinava longe das outras ilhas carcomidas pela arquitetura industrial. Por que apenas aquela porção de terra não tinha sido vampirizadas pelos tentáculos da infraestrutura? (grifos meus)

Como se vê, a prosa, algumas vezes fluida, aqui vem pintar com cores mais ostensivas o cenário. Com todo o respeito, tais trechos acabam ecoando Bilac e seus navios negreiros, a cuja retórica se renderam os leitores da época.

Assim, consciente de que a obra é preciosa para leitores eleitos, optei por comentar o registro heterodoxo, onde a interlocução com a antropologia e a história pode ter pesado mais do que deve — e mais do que precisa. Ao fim, a ficção, creio, deve trazer mergulho, prazer, inquietação e mudar nosso mundo.

A repetição
Pedro Cesarino
Todavia
144 págs.
Pedro Cesarino
Nasceu em São Paulo (SP), em 1977. É antropólogo e escritor, leciona no departamento de Antropologia da USP. É autor do romance Rio acima (2016), traduzido para o francês, e de muitos estudos sobre cosmogonias ameríndias e afro-americanas, como Oniska: poética do xamanismos na Amazônia (2011).
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho