Mas o homem não foi feito para a derrota — disse. — Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.
O velho e o mar, Ernest Hemingway
O bombardeio de notícias anunciando a chegada de um futuro movido pela distopia é tão intenso que, muitas vezes, exausto, mergulho na literatura, como que procurando oxigênio, vida possível, utopias ficcionais. Hoje, ao pensar este artigo, me lembrei da leitura da juventude e dessa frase de Hemingway.
Em pleno século 21, após um outro sangrento, quando milhões e milhões foram mortos em duas guerras mundiais e em um sem número de guerras regionais ou nacionais, onde a barbárie foi a tônica do bicho homem, cá estamos novamente adentrando o terceiro decênio do século do conhecimento e da interconectividade com a dúvida se seremos destruídos enquanto seres humanos em tempo mais breve do que a ficção nos contou. Os algozes? Somos nós mesmos, como anunciado há séculos em tantos poemas e narrativas.
Já não é de conhecimento apenas de especialistas a falência do conceito de nação, baseado na ideia de país, território, independência e estados nacionais. A transnacionalidade dos capitais, o gigantismo das grandes empresas de tecnologia, a prevalência do capital financeiro sobre o produtivo, todos em circulação no planeta globalizado e interconectado pelas bolsas de valores, tornaram débil a figura do governante aos moldes do antigo Príncipe de Maquiavel. As bravatas atuais do membro mais histriônico do clube das Big Techs, Elon Musk, dão rara visibilidade a essa realidade geopolítica contemporânea que poucos ainda combatem.
Em um mundo em aceleradíssima transformação, a mais veloz em toda a história, prevalecem, no entanto, métodos de dominação sistematizados na Idade Moderna, como podemos ler no significativo livro de Jean Delumeau, História do medo no Ocidente – 1300-1800:
Vigilância, esquadrinhamento, enquadramento: termos que exprimem em nossa linguagem moderna os meios empregados para tornar as populações de então mais cristãs, mais morais, mais dóceis.
Neste mesmo livro, fascinante por trabalhar a ideia de um dos sentimentos humanos mais profundos, o medo, Delumeau demonstra como a Europa e a modernidade nos séculos 14 a 17 modificam seus temores anteriormente oriundos das trevas, das bruxarias, da natureza, dos seres considerados adeptos do satanismo (mulheres, judeus, muçulmanos) e passam a temer os loucos e os pobres. Escreve o autor:
Outrora imagem de Cristo, o pobre se torna a partir do século XIV um ser que provoca medo. Os crescimentos demográficos, a alta dos preços, a pauperização salarial, o desemprego crescente, a monopolização das terras (…) acumulam nas cidades ou lançam nas estradas contingentes continuamente mais densos de “vagabundos agressivos, desprovidos de terra e salário”, em desocupação sazonal ou permanente. Considerados ociosos, ei-los acusados de transportar consigo a peste e a heresia.
Como demonstra Delumeau, juntaram-se os economistas, os magistrados e os homens piedosos para enfrentar a nova ameaça. A solução encontrada foi a de “separar os mendigos do resto da sociedade, portanto em confiná-los”. Junto ao confinamento dos pobres somaram-se outros seres humanos, os “loucos”, igualmente temidos no que o autor chama de “medo cultural”, que serviu fartamente para “disciplinar doravante populações que tinham vivido até então em uma espécie de liberdade ‘selvagem’”.
O desenvolvimento dos estados nacionais, dos valores humanistas representados pela Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa no século 18, além dos movimentos sociais emancipatórios dos trabalhadores nos séculos 19 e 20, relativizaram a submissão dos pobres observada por Delumeau. Isto não significou que tenhamos superado no século 21 o desastre humanitário da desigualdade abissal entre os seres humanos. Já citado nesta coluna, o Relatório Oxfam deste ano aponta: “No ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos.”
Se persistimos com a secular desigualdade, será que ela é ainda controlada por mecanismos de confinamentos arquitetados há quatro séculos?
Aqui compartilho outra leitura, Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt. No seu magistral estudo, Arendt trabalha, entre outros, com os conceitos de isolamento e impotência, entendendo-os como “a incapacidade básica de agir”. Impossível discorrer mais profundamente sobre este tema nos limites deste artigo, mas ressalto alguns pontos que me induzem a pensar como o confinamento dos pobres e loucos do século 17 encontram similaridade na dominação contemporânea que preserva a desigualdade.
O cenário que hoje se apresenta não é a simples busca da derrota do outro em um cenário onde queremos viver em coletividade, expandir territórios, ocupar espaços geopolíticos no sentido de uma hegemonia de uma nação sobre outras, como nos fartamos de vivenciar até o século 20. As máquinas da dominação são hoje mais insidiosas e mais eficazes e a destruição do outro pressupõe cada vez mais o isolamento inexorável dos seres humanos, impossibilitando-os de agir. Os indicadores da hiperconectividade demonstram que, além de benefícios evidentes, ela igualmente confina o ser humano em um isolacionismo que serve a propósitos inconfessáveis de dominação no mundo contemporâneo pelos atuais detentores do capital. O que parece ficção transparece, na maior parte das vezes sem percebermos, no nosso dia a dia.
Arendt escreve: “O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída”. Ora, onde encontramos hoje a esfera política de nossas vidas, principalmente dos excluídos, sendo incentivada, construída, a não ser em pequenos movimentos localizados? É farto o material demonstrando o crescente confinamento dos seres humanos de todas as idades em seus gadgets eletrônicos vivenciando a derrocada da ilusão da democracia da internet livre ou em sua ilusória “empresa de si próprio”, que precarizou o assalariado e desarticulou o mundo do trabalho e seus sindicatos, entre tantos outros exemplos que exaltam o isolacionismo em detrimento da vida coletiva. Me abstenho de citar o que faço aqui à exaustão: o isolamento deliberado causado pela cassação do direito à leitura que leva milhões a não deterem os códigos de comunicação do mundo contemporâneo.
Se a esfera política coletiva nas nossas vidas só pode acontecer em regimes políticos de liberdade, o mundo em crescente isolamento que estamos construindo fomenta por sua própria dinâmica o ressurgimento de anseios totalitários e a consequente violência política e social, tão bem representada em conceitos como a meritocracia. Atitudes totalitárias se manifestam nos ataques à democracia em vários países provocando o rebaixamento da confiabilidade nos pilares dos regimes democráticos, como demonstra a pesquisa da International Idea (janeiro/2024, www.idea.int/) sobre os processos eleitorais. Dos 19 países pesquisados, menos da metade confia nos resultados obtidos. Entre as causas desse resultado, a pesquisa aponta a ação negacionista dos totalitários Trump e Bolsonaro em seus países e a “crescente cultura de desinformação que fomentou falsas acusações contra eleições confiáveis”.
Como Arendt ensina, as formas de governo, apesar de sempre passageiras, tendem “a ficar conosco”, e é neste período histórico, em que o totalitarismo quer se impor novamente, que temos de encontrar meios e formas de agir coletivamente, nos libertando do confinamento mais sofisticado, mas igualmente cruel que a modernidade formulou.
Apesar de tudo, Hanna Arendt termina seu livro com uma reflexão inspiradora: “todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; (…) Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós”. Lutemos para que assim seja!