Breve romance de sonho

Clássico de Arthur Schnitzler tem o fundo e a substância das ideias científicas da investigação da mente do início do século 20
Arthur Schnitzler, autor de “Breve romance de sonho”
01/05/2024

1.
Sinto-me desde sempre incomodado com o esdrúxulo e reiterado título brasileiro da obra-prima de Arthur Schnitzler, Traumnovelle [“Novela de sonho”]. Aqui a chamam de Breve romance de sonho, um equívoco inominável, e, inclusivamente, antipedagógico. Uma novela jamais é um “breve romance”. A novela é um gênero específico, com sua estrutura própria, distinta do romance. Na língua espanhola foram mais sensatos, dando-lhe o título de Relato soñado. Em italiano, Doppio sogno; em inglês, Dream story. Em Portugal: História de um sonho. E muitos talvez desconheçam que foi a obra inspiradora do último filme de Kubrick, a que ele deu o nome Eyes wide shut, no Brasil: De olhos bem fechados, de 1999, com Tom Cruise e Nicole Kidman nos papéis centrais. Ante tantas possibilidades erradas e certas, chamarei a esta peça pelo seu belo título original — com o prévio perdão dos revisores.

2.
Arthur Schnitzler foi um médico vienense que viveu entre 1862 e 1931, rigorosamente contemporâneo do Dr. Freud. Mais: ambos eram médicos, ambos intelectuais, ambos pertencentes à rica e ilustrada comunidade judaica da capital austríaca — e, no entanto, nunca se encontraram, e parece que o responsável por essa peculiaridade foi o mesmíssimo Dr. Freud que, numa carta a seu colega, diz que “Acho que evitei um contato com o senhor por uma espécie de medo do duplo”, e depois: “… cheguei à conclusão de que o senhor sabe por intuição — é verdade que devido a uma aguda observação de si mesmo — tudo o que descobri depois de fatigantes trabalhos com outras pessoas”. Simples: o Dr. Freud dava à literatura o privilégio sobre a ciência.

3.
O parágrafo 2 justifica sua presença aqui para evidenciar que Schnitzler bebia em cheio da fonte dos novos tempos psicanalíticos. Traumnovelle é de 1926; em 1900 o Dr. Freud havia publicado A interpretação dos sonhos e, três anos antes da novela de Schnitzler, o seminal O ego e o id. Poder-se-ia dizer que Traumnovelle tem o fundo e a substância das ideias científicas da investigação da mente, de que Viena era fundadora e, até então, protagonista.

4.
Em qualquer língua o título traz a palavra “sonho”, no singular. Na verdade, os “sonhos” são dois: um é de Albertine, virtuosa esposa do médico Fridolin. Ela é mãe de família, e seu sonho, eivado de cenas eróticas, é confessado por ela ao marido que, naturalmente, fica desconcertado; e o outro é uma “realidade onírica” [com desculpas pelo canhestro neologismo do sintagma], vivida por Fridolin na sequência, quando ele sai à noite para atender a um paciente à morte, mas, a partir daí, protagoniza experiências tão extravagantes que, de fato, por vezes duvidamos da realidade daquilo, mas a mestria de Schnitzler não nos deixa enganar: os episódios são concretos.

5.
O epicentro da noite de Fridolin é uma orgia filosófica promovida por uma sociedade secreta da aristocracia e grande burguesia vienenses, da qual os sócios são homens, e a que acorrem prostitutas que se prestam a todos os jogos exotéricos e fortemente sexual; todos estão fantasiados e interpretam um ritual algo satânico, algo iniciático, brilhante na novela e brilhante sob a direção de Kubrick. Lá, Fridolin, fantasiado às pressas, é advertido por uma das participantes para sair, fugir antes que seja tarde, porque, intruso, irão matá-lo.

6.
Esse, como disse, é o epicentro, mas há muito mais, como o contato com um pai — o vendedor de fantasias —, um homem alucinado que vive uma relação abusadora sobre sua filha adolescente e que, a par da orgia, é um dos pontos altos de Traumnovelle e, em que Fridolin assume uma relação ambivalente, de atração e repulsa. Já a figura humana a “humanizar” e dar verdade a essa noite de prodígios, é o diálogo de Fridolin com uma prostituta de rua, e que o deixa tão embaraçado como a revelação que sua esposa lhe fizera. E mais não adianto dos episódios para não aumentar em demasia esta coluna.

7.
Várias vezes eu disse aqui que, como leitor e, particularmente, como escritor, gosto de spoilers, delicio-me com spoilers, pois, ao saber o final, eu oriento minha leitura no sentido de apreender os mecanismos autorais que legitimam e dão consistência àquele final. E como qualquer leitor é um potencial ficcionista, talvez não fosse má ideia considerar a possibilidade de entregar-se a esse prazeroso jogo de descobertas.

8.
O final não é um resumo, não é uma chave, é uma constatação de Fridolin e Albertine após ele haver narrado sua nebulosa noite.

Deitada e serena, os braços sob a nuca, ela fez ainda longo silêncio depois de ouvir-lhe a história. Por fim, deitado ao lado dela, Fridolin curvou-se sobre a esposa e, diante daquele rosto imóvel com os grandes olhos claros, nos quais o novo dia parecia agora estar nascendo também, perguntou-lhe repleto de incerteza e esperança: “O que vamos fazer, Albertine?”. Ela sorriu e, após breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras — as reais e as sonhadas”.

Ok, leitor: embora fosse grande a vontade, não fui às últimas-últimas linhas, que trazem nada menos do que uma inesquecível joia literária. Pena que Kubrick não aproveitou esse final como bem poderia.

9.
Autor de seu tempo, repercutindo o vigor cultural de Viena em seu melhor período histórico, seduzido pelos avanços teóricos de seu célebre colega que vivia a poucas quadras de distância, bem como de outros tantos intelectuais fascinados pela psicanálise e o poder expressivo dos sonhos, Schnitzler construiu uma obra, que, embora a simplicidade do nome, Traumnovelle, indica-nos novos caminhos especulativos, de âmbito cultural e da história das ideias, instituindo-se, portanto num livro que deve ocupar nossa mochila dos textos canônicos da literatura mundial do século 20. Leia o livro, veja o filme, como se costuma dizer. Nenhum decepcionará.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho