“Uma de vocês morre” — alguém disse, em tom de ameaça, a uma das autoras de Novas cartas portuguesas no ano de 1971, quando o livro ainda estava a ser escrito. Três eram as autoras em questão: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, que à época trabalhavam juntas nesta que seria uma obra revolucionária da literatura portuguesa dentro do contexto fascista do Estado Novo, sob regime de Marcelo Caetano, conhecido por perseguir mulheres escritoras. De fato, Novas cartas portuguesas teve sua primeira edição recolhida e destruída poucos dias depois do lançamento, em 1972, sob a alegação de “ofensa à moral pública”, ao mesmo tempo em que já atravessava a fronteira e chegava clandestinamente às mãos de Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Christiane Rochefort.
O caso das três Marias, como ficou popularizado, levou as autoras a uma série de interrogatórios pela Polícia Judiciária de Portugal e ao início de um julgamento, com repercussão internacional, que seria engolido (e tomado como símbolo de liberdade) pela Revolução de Abril de 1974. São, portanto, mais de cinquenta anos que separam a primeira edição de Novas cartas portuguesas da edição que agora chega ao Brasil, com assustadora pertinência e um ainda muito fresco incômodo diante do patriarcado e fascismo do novo século.
O ponto de ignição para o conjunto híbrido de textos que compõe o livro são as cinco cartas de paixão da freira Mariana Alcoforado publicadas anonimamente por Claude Barbin, em 1669, em tradução de Guilleragues, sob o título Lettres portugaises traduites en français. Essa Mariana Alcoforado apaixonada de Cartas portuguesas, que em seu processo de escrita se transfigura numa nova Mariana, reaparece em tom barroco na escrita das três Marias como centelha de revolução não apenas literária mas também fora do papel.
“Desclausura”
A revolução da nova mulher indecorosa, por assim dizer, começa com a proposta de uma só cláusula: a da “desclausura”. Assim as três Marias vão revendo e desmontando motivos de paixão, revendo e esfarelando estereótipos e cristalizações culturais do feminino, sujeições normalizadas no público e no privado, amordaçamentos e domesticações que há séculos se impõem sobre o corpo e o espírito da mulher, ora levada à fogueira, ora trancada num convento, ora plantada em casa, inchada de frutos varonis, guardiã moral de seu senhor.
Na edição de fevereiro (#286) deste Rascunho, Luiz Antonio de Assis Brasil escreveu sobre Mariana Alcoforado, tomada como figura histórica, e a relevância literária de Cartas portuguesas. Cabe lembrar aqui num acréscimo informativo, ou curiosidade, que, desde o século passado, com a hipótese do estudioso americano F. C. Green, voltou a ser discutida a autoria das cinco cartas, não havendo até hoje uma prova definitiva sobre a origem desses textos, o que alimenta a tese de uma completa invenção literária para o grupo dos “antimarianistas”.
Esse dado de incerteza quanto à autoria das cartas seiscentistas é igualmente uma potência literária de que as três Marias se apropriam em sua trama de vozes baralhadas, no hibridismo de cartas e poemas de outras Marias, Anas e Marianas reais ou inventadas, no jogo de identidades/alteridades em que entra o próprio cavaleiro com seus dois nomes diferentes, Noël Bouton e Antoine de Chamilly, agora personagem da voz de mulheres desclausuradas. “Não sendo o cavaleiro mais do que pretexto, motivação. Homem que pensou montar e foi montado” — essa inversão de papéis, amiúde explorada em Novas cartas portuguesas, tem também, literariamente, seu teor revolucionário: o de mulheres escritoras assumindo seu espaço não só como personagem mas voz de enunciação e criação, mulheres com mãos metidas nos mecanismos internos da paixão, sem pudor — mais até: com necessária crueldade —, no desmonte de suas peças, seus mitos e antigos significados:
Onde reinventar o gesto e a palavra? Tudo está invadido pelos significados antigos, e nós próprios, e nós mulheres que pretendemos revolucionar, até aos ossos, até à medula.
Considere-se a remota hipótese (ou apenas a suspeita) de que seja Guilleragues não somente o tradutor, senão também o autor de Cartas portuguesas. Considere-se, desde uns séculos antes, as cantigas de amigo com enunciadores femininos criados pelos trovadores. Considere-se, ainda, um exemplo brasileiro do século 20, As horas de Katharina (1971-1993), livro em que o poeta Bruno Tolentino performa a voz de uma carmelita fictícia nascida em Veneza e falecida num convento na Áustria. Em todos esses casos é/seria o feminino e sua paixão se moldando pelos prodígios de linguagem do poeta. Na voz trina das Marias (todas as mulheres em uma) é a mulher repensando sua imagem, sua identidade e seu lugar (literário, moral, histórico, sociopolítico e cultural) numa trama cúmplice de linhagens que se unem umas às outras para romper com moldes instituídos de silêncio, lamentação, sublimação, resignação, mansuetude.
Imensa teia
Três “aranhas astuciosas” vão fiando, delas mesmas, “arte, vantagem, liberdade ou ordem”, e essa trama, imensa teia, guarda um complexo labor de linguagem, que usa de citações, paródias, experimentações (inclusive concretistas), fundindo gêneros. Infelizmente a edição brasileira vem sem o abastado apêndice de notas intertextuais organizado pela poeta Ana Luísa Amaral para a edição portuguesa anotada da obra. Uma pena porque essas mais de duzentas e cinquenta notas clareiam o tecido de outras vozes e tonalidades que participam do fiar dessas aranhas, como, por exemplo, inspirações trovadorescas, apropriações bíblicas, referências a outros poemas e poetas, verbetes de casos de bruxaria, referências a figuras femininas históricas, citações de fragmentos filosóficos, entre outras informações enriquecedoras.
Numa das notas da edição portuguesa, Ana Luísa contextualiza:
Durante o Estado Novo, a figura de Mariana [Alcoforado] foi elevada ao estatuto de símbolo da mulher portuguesa, abnegada e sofredora; porém, as autoras de Novas cartas portuguesas apropriam-se desse mito, re-citando-o e subvertendo o significado que lhe tinha sido atribuído.
Dessa teia híbrida de vozes epistolares, narrativas e poéticas irradia um leque também compósito de questões interessantes ao feminismo e aos estudos de teoria literária (em especial, a Teoria Queer). Importa lembrar que, há dez anos, realizou-se na Universidade de Évora, em Portugal, um colóquio internacional que reuniu dezenas de professores universitários estudiosos de Novas cartas portuguesas. Entre os estrangeiros que participaram desse colóquio, estava a poeta Maria Lúcia Dal Farra: Maria brasileira cúmplice do trio lusitano, autora de cinco sonetos dedicados a Mariana Alcoforado, além de uma série intitulada La Dame à La Licorne (em Alumbramentos, de 2011), sobre as tapeçarias quatrocentistas de mesmo nome, de um universo simbólico do feminino também já explorado na poesia por Maria Teresa Horta.
Não será inteira novidade a revolução lançada por Novas cartas portuguesas há mais de meio século se consideradas certas escritoras e poetas brasileiras do século 20 dessa mesma “linhagem indecorosa”. Mas será sem dúvida uma fonte fresca de inspiração e novos estudos essa teia (real e simbólica) de cumplicidade entre mulheres, com a fusão de vozes e de gêneros coletivizando a autoria dos gestos e pensamentos que se querem amplamente transformadores. Vem também (re)abrir o horizonte de reflexões sobre o espaço da mulher, sua imagem, seus direitos e poder de ação na história, na literatura, na política, na sociedade. “Uma de vocês morre”, disse um fascista em 1971 para uma das autoras de Novas cartas portuguesas. A que morre, ou já estertora desmentida há muito tempo, é a “bela, recata e do lar”.