Tenho relido os grifos que fiz nas recentes publicações de Virginia Woolf, A apresentação e Juntos e separados, em tradução de Ana Carolina Mesquita. Cada conto é apresentado num pequeno volume de bolso, e as duas histórias lidam com contradições, dúvidas entre a necessidade de um comportamento rígido ou flexível.
Em A apresentação, polariza-se a vida intelectual e a vida social das mulheres: a primeira é constantemente avaliada pela protagonista Lily Everit, que numa festa experimenta a sensação de que “por baixo jazia intocado, como um fragmento de metal cintilante, o seu ensaio sobre o caráter do deão Swift” — e é essa espécie de segredo, de valor subjacente, que ela examina, ora constatando que o ensaio foi uma conquista da qual deve se orgulhar, ora minimizando o seu feito diante de tantos outros.
A ocasião de uma festa, quando os papéis sociais se evidenciam, proporciona uma espécie de crise existencial, quando Lily se dá conta de que “todo o seu ser (já não mais afiado como um diamante que cinde o coração da vida) transformou-se num misto de alarme, apreensão e defesa, enquanto ela permanecia à margem no seu canto. Este era o famoso lugar: o mundo”.
Lily não se encaixava realmente no perfil que lhe exigiam: “Próprio dela era, em vez disso, correr e se apressar e meditar em longos passeios solitários, subir em portões, atravessar o barro e a bruma, o sonho, o êxtase da solidão”. Entretanto, ela reflete que a vida “se dividia (disso ela tinha certeza) em fato, aquele ensaio, e ficção, aquela saída; em rocha e onda, pensou ela no caminho, vendo as coisas com tanta intensidade que para todo o sempre enxergaria inextricavelmente fundidas a verdade e ela mesma”.
A ficção — a festa em que ela precisa desempenhar um papel para a sociedade de sua época — sufoca o que Lily elabora em sua autenticidade. Através da figura de Mrs. Dalloway, que conduz as regras desse mundo, ela recebe a “forma de vida regulada que caía como um jugo sobre seu pescoço”. O regulamento dizia que “não cabia a ela dominar ou assegurar e sim arejar e embelezar essa vida ordeira onde tudo já estava pronto; as altas torres, os sinos solenes, os edifícios construídos até o último tijolo pela labuta dos homens; os parlamentos idem; e inclusive o emaranhado dos cabos de telégrafo, pensou ela, olhando pela janela enquanto caminhava. Que tinha ela para fazer frente a essas conquistas masculinas monumentais?”. O regulamento reservava às mulheres o lugar do acessório belo, fútil.
Compactuando com o sistema, Lily Everit é apresentada a Bob Brinsley — e, diante de “seu bronzeado, sua desenvoltura e descendência direta de Shakespeare, que poderia ela fazer senão deixar cair o seu ensaio, ah sim e todo o seu ser, cair no chão como um manto para ele pisotear, como uma rosa para ele despetalar? Assim ela o fez, enfaticamente, quando Mrs. Dalloway disse, ainda segurando sua mão como se temesse sua fuga daquela provação suprema, daquela apresentação: — Mr. Brinsley… Miss Everit. Vocês dois adoram Shelley. — Mas a dela não era adoração, se comparada à dele”.
A ironia de Woolf explode nos momentos em que descreve Bob Brinsley; fica claro que aquele rapaz tão autoconfiante é apenas um privilegiado da ficção patriarcal — corroborada inclusive por mulheres como Mrs. Dalloway, para quem o arranjo parece perfeito. Ela se emociona ao ver o zelo condescendente com que Bob cumprimenta a intimidada Lily e parece muito satisfeita com a complementaridade do par, pensando no seu próprio casamento, na maneira como confortavelmente se sentia protegida por uma figura masculina resolutiva. Entretanto, para Lily a sensação era de horror ao entrar naquele pacto: “ela era como uma desgraçada nua que, depois de buscar abrigo nalgum jardim ensombrado, é enxotada ouvindo que não, não existem santuários”.
Em Juntos e separados, a protagonista, Miss Anning, é uma mulher mais velha e experiente, mas ainda assim não deixa de se desvalorizar diante de um homem. Logo depois de ter sido apresentada a Mr. Serle — por Mrs. Dalloway, que segue injetando em seus convidados a opressão das conveniências —, Miss Anning faz um comentário sobre a beleza da noite, “mesmo sabendo que era tolice”. Ela tem quarenta anos de idade e já não se exige perfeição (“Mas uma pessoa tinha direito à tolice”), sobretudo se dimensiona uma escala maior, cósmica. O simples fato de olhar para o céu lembra que “suas vidas, vistas ao luar, [eram] algo tão longo quanto a vida de um inseto e tão importante quanto”. Essa relativização, porém, não é suficiente para que ela abandone o que considera ser o seu papel — entreter um homem com uma conversa, não deixar o clima de constrangimento dominar o instante: “Esse era o perigo — ela não podia afundar na letargia”.
Miss Anning ostenta uma tranquilidade madura e, à maneira de Mrs. Dalloway, experimenta um sentimento conciliatório pequeno-burguês: ela se embebe na complacência de considerar “que havia algo reunido ali, um punhado de milagres”. Quando Mr. Serle julga que o seu conhecimento da Cantuária tinha sido superficial e turístico, ela quase se cala. Depois, porém, luta contra o comodismo e decide esclarecer àquele homem o que realmente aconteceu: ela adorou a Cantuária. Com tal revelação, tudo muda:
Os olhos dos dois se encontraram; ou melhor, colidiram, pois cada qual sentiu que, por trás dos olhos, o ser recluso, que se esconde na escuridão enquanto seu colega ágil e superficial cuida de fazer acrobacias e de sobressair para o espetáculo continuar, subitamente se levantou, atirou longe o manto e confrontou o outro. Foi alarmante; foi terrível.
O contato com “o antigo êxtase da vida” desestabiliza aquelas pessoas, que ao longo das décadas frequentando a sociedade “tinham sido polidos até adquirir uma luminosa suavidade”. E, diante da súbita partilha, já não havia como recuperar uma conversação supérflua: “— A Cantuária vinte anos atrás — disse Miss Anning, como alguém que tapa uma luz intensa, ou cobre um pêssego chamejante com uma folha verde, por ser tão intenso, tão maduro, tão pleno”.
Mas a epifania não pode durar. Cai sobre ambos “um vazio paralisante de sentimentos”; eles deixam de fingir, falar. O desfecho traz a interrupção da experiência, rompida pela presença de alguém que surge: “E eles então puderam se separar”, diz Woolf, como se narrasse o final de uma lenda. A leitura nos deixa como Lily, numa “estranhíssima mistura de animação e medo, de vontade de não ser incomodada e ânsia de ser arrastada e atirada nas profundezas ferventes”.