Palavra filmada

Adaptações cinematográficas dos livros de Raduan Nassar levam para as telas a escrita arrebatada e introspectiva do autor
Lavoura Arcaica Filme
01/01/2006

Os caminhos que unem literatura e cinema são muitos — e tortuosos. Embora vivam em aparente simbiose desde os primórdios da sétima arte, essas duas expressões artísticas nem sempre partilharam um convívio harmonioso. São incontáveis os exemplos, de obras-primas a competentes best sellers, que, ao serem adaptados, resultam banais, perdendo transcendência e complexidade. Há, contudo, notáveis exceções que conseguem traduzir, sob a forma de imagens em movimento, a complexidade e a inventividade de suas fontes. Entre os casos mais recentes, vale citar Brokeback Mountain, conto de pouco mais de 50 páginas da escritora norte-americana Annie Proulx, filmado com maestria pelo cineasta taiwanês Ang Lee em O segredo de Brokeback Mountain, que estréia em fevereiro no Brasil. Com mais de duas horas de duração, o longa-metragem consegue o feito de transpor para tela grande a prosa ao mesmo tempo áspera, sinestésica e poética da história, que consegue dar conta de 30 anos nas vidas de dois vaqueiros condenados a viver uma história de amor homossexual em absoluto segredo. Outro bom exemplo de adaptação é o romance do britânico John Le Carré O jardineiro fiel, que ganhou uma versão original e vigorosa para o cinema pelas mãos de Fernando Meirelles. A África algo distante e exótica presente nas páginas da obra de Le Carré surge orgânica e palpável através do olhar do brasileiro.

No cinema nacional mais recente, são dignas de elogio a criativa transposição de Cidade de Deus (2002), livro autobiográfico de Paulo Lins, também assinada por Meirelles, e, sobretudo, Lavoura arcaica, obra de Raduan Nassar que virou filme há cinco anos sob a regência de Luiz Fernando Carvalho, mais conhecido por sua atuação na televisão. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão a novela Rei do gado, a minissérie Os Maias e a festejada microssérie Hoje é dia de Maria.

Carvalho conseguiu em Lavoura arcaica o que muitos consideravam uma missão impossível: levar para o cinema a escritura introspectiva, arrebatada e marcada pelo fluxo do consciente do autor de Um copo de cólera e Menina a caminho. O diretor, apesar de sua pouca experiência no cinema, realizou um dos longas-metragens mais autorais e menos comprometidos com padrões comerciais dos últimos anos dentro da produção brasileira.

O livro de Raduan Nassar retrata uma família de imigrantes libaneses no interior de São Paulo, universo com o qual o escritor tem ligações atávicas. Não se trata, contudo, de uma saga convencional sobre estrangeiros que atravessam o mundo para “fazer a América”, a exemplo de O quatrilho (de Fábio Barreto) ou Gaijin Caminhos da liberdade (de Tizuka Yamasaki). O enfoque do romance é outro, muito menos convencional e marcado pela introspecção.

No centro da narrativa está o personagem André (Selton Mello), filho do patriarca vivido brilhantemente por Raul Cortez. O jovem, para desespero da família, abandona a casa paterna movido por um torturante mistério que, sem muita pressa, revela-se ao espectador. A verdade vem à tona quando André, resgatado pelo irmão mais velho (Leonardo Medeiros), retorna à casa paterna: o rapaz tentou escapar das amarras que o prendiam ao clã porque já não suportava a autoridade excessiva do pai sobre ele e os irmãos e, principalmente, para fugir da irrefreável paixão que nutre, em segredo, por uma das irmãs (Simone Spoladore, em marcante atuação).

A bela fotografia de Walter Carvalho, que consegue imprimir ao filme tons de claro e escuro, por vezes claustrofóbicos em sua proposta intimista, alia-se a uma narrativa nada convencional, que, a exemplo do livro de Nassar, foge da linearidade. Misturam presente e passado, realidade e delírio. O mar por onde a história navega é a subjetividade de André, um personagem cuja percepção da realidade é comprometida pela culpa por sua paixão proibida. Outro ponto alto é a trilha sonora de Marco Antônio Guimarães, que jamais confere à trama — que facilmente poderia descambar, devido à temática, para o melodrama excessivo — um senso trágico contido, latente. É verdade que a dicção de Selton Mello, por vezes monocórdica e afetada demais, por vezes comprometem o desenvolvimento dramático do enredo, mas esse, diante da estatura do filme, é um pecado menor.

Luiz Fernando Carvalho consegue, enfim, aliar rigor estético a uma segurança surpreendente na construção de uma história complexa e densa. Tem a seu serviço um elenco de primeira, no qual vale destacar, ainda, Juliana Carneiro da Cunha (atriz brasileira radicada na França), excelente no papel da mãe protetora, sofredora e silenciosa.

Excitante e perturbador
Menos festejada pelos críticos, mas igualmente ousada, é a adaptação Um copo de cólera, longa-metragem de estréia de Aluizio Abranches (de As três Marias). No Brasil, onde estreou há sete anos, a imprensa especializada foi um tanto reticente, talvez por conta de uma perplexidade quase generalizada diante do alto teor sexual da história, o que já era presente nas páginas do livro de Nassar. O filme, entretanto, estourou no exterior. Além de ter sido selecionado para a mostra Panorama do Festival de Berlim, foi sucesso na Itália, em parte, justamente, por suas cenas de sexo. Por aqui, a mídia, numa reação sensacionalista e provinciana, chegou ao extremo de especular que Alexandre Borges e Júlia Lemmertz, casados na vida real, teriam feito sexo diante das câmeras. Não é verdade, eles não se cansaram de explicar. Foi tudo encenado, num trabalho de preparação corporal coordenado pela coreógrafa Angel Vianna.

O sexo — de fato nos limites do explícito — é uma das ousadias de Um copo de cólera, mas não a única. Abranches mantém-se fiel ao texto de Nassar, literário e nada realista na construção dos diálogos, verborrágicos e dotados de proposital artificialidade, como se os personagens falassem por meio do virtuosismo do texto do escritor. Essa característica, que para parte da crítica nacional seria um defeito do filme, é, na verdade, um de seus grandes méritos estéticos, o que o une a Lavoura arcaica.

Ao contrário do filme de Luiz Fernando Carvalho, contudo, Um copo de cólera é curto. Tem pouco mais de uma hora de duração e tem o ritmo narrativo de uma vertigem, de um mergulho denso em um momento de extrema intensidade na relação entre dois amantes.

Abranches mistura-se aos personagens em uma espécie de ménage à trois excitante e perturbador, filmando com a câmera na mão ao redor e muito rente à epiderme dos atores. Essa opção estética — que aproxima de forma ousada, senão perigosa, o olhar do espectador de dois corpos e espíritos que se amam e se digladiam em igual intensidade — faz de sua adaptação uma obra singular no cinema brasileiro mais recente. Essa mesma reflexão vale, também, para o confronto verbal entre o casal, a discussão das idéias mais abstratas em choque com a matéria crua do sexo. O diretor que captar tudo. E consegue.

Paulo Camargo
Rascunho