Musa decadentista

Menotti del Picchia, fazendo uso do verso ou da prosa, sempre teve facilidade para se comunicar com seu público
Menotti del Picchia
01/01/2006

Última de três partes

A Eduardo, Salomé às vezes dá a impressão de ser uma figura monstruosa, estranha e cruel, incapacitada para o amor.

— Eu acho que descobri o sentido da vida — disse ela com simplicidade. — O amor me rodeou. Procurei não dar por isso. Não sei se fiz alguém sofrer. Também não tenho culpa: é meu o direito de não amar. Há só uma maneira da gente ser o que deve totalmente ser: não se dar. Isso. Não se dar!

Como que confirmando esse brado, Salomé não se dá jamais. Seu libelo é, por isso, o mesmo de Rosalina, heroína de Costallat, que, “como menina de sua época e de seu meio, não amava ninguém. Tinha flertes. Flertes em quantidade, flertes às porções. Flertes que aumentavam, dia a dia, em cada baile, em cada reunião, em cada récita do Municipal, em cada passeio, em cada toalete nova, excitante e despida” (Mademoiselle Cinema). Todavia Rosalina é a famosa melindrosa tropical dos anos de 1920, a moça afetada, exagerada, sequiosa de novos estímulos, na certeza de que nasceu para seduzir. Salomé, por outro lado, tem horror à frivolidade. O próprio ato carnal é, para ela, união com os entes sobrenaturais da mata, com as divindades do paganismo, cuja preocupação não se reduz à mera perpetuação da espécie. Por isso a dança, evento xamânico, tem de se realizar às margens do rio, numa clareira distante do olhar dos homens, que, bêbados de civilização, sentiriam-se ou superexcitados sexualmente, fora do próprio controle, ou desconfortáveis com os movimentos dementes da dançarina.

Saiu do rio. O sol batia em cheio no seu corpo. Pôs-se então a fazer flexões ginásticas com as pernas e os braços. Para secar o corpo resolveu dançar.

— Que há de ser?

Uma dança bárbara e sem nexo para exprimir a potência vital de que estava possuída? Não! Havia de ser a dança dos sete véus que dançara em Paris, a dança de Salomé!

[…]

Pouco a pouco o delírio dos movimentos transportou-a ao passado. Uma forte carga de angústia fazia-a sofrer e soltar pequenos gritos. Seus ouvidos estavam cheios de satânica música interior, a música de Strauss, a música da qual conhecia todos os compassos, que a exaltava até o paroxismo, como quando dançava em Paris.

Porém Eduardo inadvertidamente a vê, nua, qual bacante histérica movendo-se entre as ramagens. O horror que tal profanação desperta em Salomé é insuperável. Se até então chegara a sentir certa afeição pelo quase-suicida, a partir de agora passa a detestá-lo. Eduardo, a mãe, o padrasto, todos a perseguem, sufocam-na. Não encontra paz nem mesmo no coração da mata. Até mesmo padre Nazareno, com quem gostava de estar, por achá-lo verdadeira avis rara, exaspera-a; envolvido com os desafortunados e os ignorantes, o padre parece-lhe muito distante da clarividência, ao passo que se vê a si mesma acima do bem e do mal, entre as indiferentes potestades do universo, a mil anos-luz de toda a vulgaridade. A persona de Raskolnikov é encarnada desta feita por ela, Salomé, que passa a ver o assassinato de outro ser humano sob a ótica da evolução darwiniana: o mais forte tem todo o direito de exterminar o mais fraco.

Menotti inteligentemente reserva para o final da novela a única quebra de expectativa possível. Ao acompanhar a movimentação das peças no tabuleiro, só agora o leitor se dá conta de que Iocanaan não é padre Nazareno, cuja posição o mantém por demais distante dos eventos principais da narrativa, mas Eduardo. Sua presença, na fazenda, serve para desequilibrar a todos — coronel Antunes e dona Santa, doentes de ciúmes, percebem que a união de Eduardo e Salomé é mera questão de tempo; Salomé, por seu turno, põe-se na posição da fêmea estuprada, cuja violação exige o sacrifício do violador —, por isso é dele a cabeça que deverá rolar.

Olhou para Eduardo, que agora estava de costas. Era uma mancha escura, de contornos diluídos pelo halo do sol que lhe ficava em frente. “É agora ou nunca!” Levou a arma ao ombro. O tiro partiu. Eduardo sentiu na omoplata esquerda uma tremenda pancada. Não teve consciência do que era. Rajada de vento? O mundo que desabava? Viu, num relâmpago, o céu despencando, as árvores fazendo uma absurda rotação, quis agarrar o ar, segurar alguma coisa — o quê? o céu? a vida? — mas caiu e tudo caiu com ele. Sua espinha bateu num tronco, seu corpo resvalou cobrindo-se com as ramagens e sua cabeça ficou numa forçada posição vertical, enganchada numa forquilha do tronco, com os olhos arregalados, a boca aberta, soltando um grito ou uma imprecação que não se desgrudou dos seus lábios. O cadáver tomou uma postura estranha: dele via-se somente a cabeça, uma cabeça sem corpo, como se ela fizesse um esforço para erguer-se sozinha do chão para espiar uma coisa tremenda, uma coisa mais tremenda do que um crime.

Caminhos fáceis
Diferente da Salomé de Oscar Wilde, atrelada à mitologia bíblica, e das Salomés atemporais de Mallarmé (dançarina dos meios-tons, da elipse e da perífrase), Eugênio de Casto (virgem grandiloqüente e filigranada) e Laforgue (psicodélica, espécie de colagem surrealista avant la lettre) — em que “a parafernália imagética tem a função de criar a atmosfera necessária à eclosão do drama histórico, mas sem se referir obrigatoriamente a uma época específica”, pois “não é a Salomé bíblica […] que interessa, mas, sim, uma Salomé fora do tempo e do espaço, ou mesmo habitante de um espaço onírico” —, a de Menotti del Picchia tem os pés muito bem plantados no tempo e no espaço: interior de São Paulo, década de 1940.

Sua prosa é simples e direta, numa só palavra: jornalística, como sua poesia. Como fez em Juca Mulato e em vários de seus livros de crônicas, o autor procura novamente nos dar, com Salomé, uma lição de verdade, de sinceridade, de humanidade, por mais que tais vocábulos já soassem démodé há cinqüenta anos. Alceu de Amoroso Lima, resenhando em 1919 a segunda edição do livro de poemas mais famoso de Menotti, via nele “vigor e sinceridade, simplicidade interior, desconcerto vibrante e natural, facilidade e elegância no versejar, técnica imperfeita e, mais do que tudo, caráter” (Primeiros estudos). Se substituirmos Juca Mulato por Salomé, como receptáculo de tais adjetivos, veremos que mesmo assim as assertivas continuam válidas, porque muito da poesia de Menotti imbrica-se na prosa que produziu ao longo de sua carreira. Qualidades à parte, a imperfeição da técnica, referida acima, dá-se na novela em questão no nível macroestrutural — patamar da construção das diversas tramas que cedo ou tarde se entrecruzam. Em contrapartida, é na microestrutura dos capítulos que está o vigor e a sinceridade interior, em suma, todo o lirismo do poeta.

Menotti não é autor que se embriaga para construir a máscara de um ébrio, que esfaqueia um semelhante para delinear um assassino, que se atira de despenhadeiros para melhor descrever a sensação de queda no vazio. Talvez por isso Salomé não seja uma obra-prima, uma novela que extrapole o gênero. Sua seara não é a dos jogos de linguagem, dos fluxos de consciência. Os microcapítulos que a compõem, no entanto, guardam o delicioso perfume da crônica de costumes, do labor do lambe-lambe cuja missão é perpetuar para as gerações futuras o frescor e a ingenuidade trágica da década de 40, com sua fachada de teatro de revista, seus tipos realmente pitorescos porém estereotipados: o banqueiro inescrupuloso que arremata a jovem virgem; o policial que desce o cassetete na prole subversiva e atua, nas horas vagas, como capanga de coronel; a mulher de meia-idade, mal-amada, pronta a transformar as frustrações em antropofagia; o padre ignorante, sem formação política, que mitiga o próprio sofrimento pondo band-aid na fome dos miseráveis.

O que é a crônica menottiana se não, nas palavras de seu contemporâneo, essa “poesia de corpos simples, poderíamos dizer, devido à sobriedade de linhas no sentimento, no pensamento e na expressão. Sente-se que o autor procurou a naturalidade e não a arte, que é o melhor caminho para atingir aquela. O segredo da arte é a naturalidade sem prejuízo da perfeição. O senhor Menotti del Picchia ainda não pôde naturalmente desvendar o segredo da arte. Se ao buscar a expressão natural do seu lirismo alcançou acidentalmente a arte, não se despojou ainda das incertezas dessa procura, de certa fraqueza de técnica.” Bom exemplo do que ficou dito são Carmen e Alcebíades, personagens jovens e exuberantes, bem como Nelo, fundidor de bronzes e comunista de meia-pataca, e Marina, virgem imolada no altar da fortuna, todos eles figuras que monopolizaram a narrativa, em determinado momento, e, como peças sem utilidade, foram convidadas a se retirar na segunda parte da novela.

Até mesmo Mário de Andrade, é certo que da forma eufemística com que espicaçava os companheiros de partido sem ferir-lhes os sentimentos, soube louvar as qualidades microscópicas de Salomé e rebaixar-lhe os defeitos macroscópicos. Apesar de ter recebido com algumas reservas a novela de Menotti, Mário permitiu-se certa efusividade ao escrever: “Com Salomé, Menotti del Picchia nos descreve, num largo e amargo painel, a sociedade paulista contemporânea. A meu ver, o que há de mais admiravelmente bem conseguido no romance é a criação e fixação dos caracteres psicológicos. Está claro, Menotti é o tipo do escritor incapaz de gastar dez páginas de análise pra estudar, por exemplo, esse forte sofrimento que é a gente se decidir entre sair de casa ou não, num instante de gratuidade vital. Proust e Joyce detestariam Menotti del Picchia, como talvez Menotti del Picchia deteste Joyce e Proust. Mas o valor notável do autor de Salomé foi exatamente conseguir um perfeito equilíbrio entre a sua concepção sintética dos personagens e a escolha destes como formas psicológicas representativas da sociedade que quis descrever” (História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi).

Vistas com olhos de hoje, as palavras de Mário parecem indicar, nas entrelinhas, a queda de nível levada adiante por Menotti, que lhe permitiria aproximar-se do leitor médio e da cultura de massa que se consolidava com o advento do rádio, do cinema e da tevê. Quer estivesse dentro, quer estivesse fora da vertente mais radical do Modernismo de 22 (voltando a enraizar-se na belle époque, na estética iconoclasta que mais não é do que um prolongamento do movimento simbolista e de suas mutações), o fato é que Menotti, fazendo uso do verso ou da prosa, sempre teve facilidade para se comunicar com seu público — o grande público, amante de Jorge Amado, Erico Verissimo e Rubem Fonseca, não à toa grandes sucessos também na televisão —, justamente por nunca tê-lo desamparado, como tendem a fazer na maioria das vezes os produtores de altas literaturas.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho