O mais recente projeto literário de Marcelo Mirisola parte de uma premissa simples: um personagem masculino conhece uma personagem feminina, se apaixona e é abandonado. Pronto. Todos conhecem enredo similar, seja literário seja da realidade. É o clichê dos clichês. Desde sempre. Desde que o ser humano pulsa. O que varia, quando há variação, depende da mão de quem escreve. E, no caso, Joana a contragosto traz a assinatura de Marcelo Mirisola — e isto faz toda diferença.
O escritor paulistano criou peça ficcional para tratar das dificuldades de relacionamento. Ainda: da impossibilidade de seres gauche se relacionarem. São dois seres urbanos, como há tantos por aí, na realidade, na ficção. Diferentes, talvez iguais, com muitas barreiras a separá-los, a começar pela ponte aérea. Ele de São Paulo. Ela vivendo no Rio. A narrativa traz o ponto de vista do personagem masculino que, dom casmurramente, irá remoer, durante todo tempo ficcional, a frustração. O tempo é presente; há recuo ao passado; avança-se para o futuro; tudo se torna, outra vez, presente. E, assim, o narrador se lamenta. Joana a contragosto é, também, uma queixa.
O narrador deseja que os leitores acreditem que ele, narrador, é o próprio autor, Marcelo Mirisola. Para tanto, solta informações, sistematicamente, com a finalidade de confirmar a hipótese. O narrador se apresenta como M. M. e comenta que já escreveu “cinco livros geniais” — a mesma quantidade de obras produzidas por Mirisola: Notas da arrebentação, Fátima fez os pés para mostrar na choperia, O azul do filho morto, O herói devolvido e Bangalô. O narrador de Joana a contragosto, assim como Mirisola, alfineta escritores, e, no caso, um ambiente freqüentado por muitos deles — o bar paulistano Canto Madalena: “Um chope custa quatro reais, os garçons são uns trogloditas, e o ambiente é perfeito para o desfile de boinas à Guevara, suspensórios coloridos, muita falta de talento e o lançamento de antologias geracionais”. E mais: o narrador de Joana a contragosto, ao cogitar o que faria para sobreviver, caso a relação com Joana prosperasse — a exemplo de Mirisola — também desdenha as opções de alguns de seus colegas de ofício: “Dinheiro não iria me faltar. Além disso, eu poderia dar workshops, organizar oficinas literárias e me associar ao Bonassi. Nunca mais ia escrever um livro de verdade. Ia me vender mesmo. Se fosse o caso, escreveria umas soap operas para a Globo sob orientação da Fernanda Young”.
O narrador apresenta seu dilema: conheceu Joana. Ela 21 anos. Ele, 40. Joana se aproximou por e-mail: queria conhecer o escritor que tanto admirava. Encontraram-se no Rio de Janeiro: “Hotel Serrano, no Largo do Machado. Dia 18 de junho à meia-noite”. Ele se apaixonou. E, após a noite de prazer — “Trepei com Joana cinco vezes e sem camisinha” —, Joana comunica que não haveria mais nada entre eles. Ofereceu amizade, tudo que o personagem-narrador não precisava. A partir disso, o protagonista fica a remoer, durante todos os 26 capítulos do livro, a frustração. “Não entendi o que estava acontecendo conosco depois da nossa noite de chimpanzés.” Ele fez planos. Sonhava experimentar tudo que ela prometeu, uma vida de miudezas: peixes salmonados, aluguel dividido, filhos, viagens à Disney, reunião de pais e mestres, domingos, televisão, bichos, filas, mãos dadas para sempre. O personagem não se conforma e contrapõe o futuro idealizado a dois com o passado sem ela e o que se apresenta: um porvir, necessariamente sem Joana. Joana a contragosto é, também, um canto de desespero.
O personagem, que é escritor, remói a perda. E, em vários momentos, também repete que está a construir a narrativa a contragosto. O mundo, esse moinho, destruiu — como ele revela — outra vez seus sonhos, os mais mesquinhos (aqueles: os traçados pelo desejo). E, por isso, para prosseguir, tem necessidade de escrever. “Estou aqui: repetindo o mesmo erro de escrever outro livro para me livrar de mim mesmo e, em última análise, para me livrar dela, Joana.” O protagonista precisa exorcizar a dor. “Escrever — não sei se já disse isso e, se disse, repito — é uma forma de matar o que já está morto.” Ele assume: trocou a vida pela arte. E confessa: trocaria toda a arte pela vida (pela possibilidade do convívio com Joana). “Trocaria de bom grado toda minha fama pelo arroz papa que ela jurava ser uma de suas especialidades, e também iríamos juntos à praia e minha filha preferida se chamaria Ritinha, mesmo que ela não quisesse.” Esse narrador — que procura, e quer, se confundir com o próprio Mirisola — se diz (sem Joana) condenado à liberdade. Mas essa liberdade se revela prisão — Joana domina seu imaginário; portanto, escrever é uma maneira de buscar liberdade: “Foi por causa dessa merda de liberdade que cheguei aqui, profundamente contrariado — a escrever outro grande livro que não me diz respeito”. E, página após página, ele escreve a fim de enfrentar o que é certo desde os primeiros momentos da narrativa que se quer romance: “O certo é que a perdi”.
O narrador acredita que Joana poderia vir a ser a mulher de sua vida. “Éramos feitos um para o outro.” No entanto, esse mesmo narrador insinua que Joana era, não apenas aquilo que alguns — não ele — chamam de cara-metade, mas que ela talvez fosse (quase) igual a ele. “Eu diria que Joana é mais do que um heterônimo meu — ela existe porque é ao mesmo tempo meu duplo trapaceiro e a falta em si” O narrador procura entender por que Joana o abandonou e, em meio a digressões, se dá conta de que frustrou expectativas de Joana (e, por isso mesmo, ele é quem é): “Você queria apanhar. Queria o demente dos livros… o cara que queima a bunda das minas com bitucas de cigarro e vai embora no dia seguinte sem pagar a conta. Aí chego eu todo carinhoso, chupo seus peitinhos e invisto no papai-e-mamãe… e você resolve me dar um pé na bunda. Foi isto, né?”. O narrador busca respostas, mas a resposta ele conhece, e custa a admitir: é o Nevermore do corvo do poema de Poe. Nevermore. Então, o narrador — aquele que diz: “Eu preciso de qualquer coisa para enfiar no lugar da alma” — encontra palavras para colocar no lugar de Joana: “Cloaca de Copacabana. Diaba, aidética. Traça ex-gordos peludos, românticos e letrados (minhas três categorias), trouxas e almas desavisadas de todos os feitios, calibres e arrebites. Vampira, sanguessuga, vidente, cocainômana. Sem camisinha, tesão. Louca varrida, filha-da-puta, canastrona, chantagista. Mulher da minha vida, xibiu”. Joana a contragosto é, também, um blues.
Joana a contragosto é, acima de tudo, mais um capítulo do projeto literário mirisoliano que problematiza o mal-estar de nosso tempo: tempo em que tudo precisa dar certo e, caso haja problemas, basta, não apenas um verniz, mas, uma pílula para ser feliz. Há viagras demais. Há vários ruídos. Há violência excessiva, em tudo. Marcelo Mirisola, a exemplo do narrador de Joana a contragosto, não experimentou bandinhas brasilienses, por ter passado a adolescência trancado no quatro da empregada, e, assim, desmonta a idéia, de uma bandinha brasiliense, de que melancolia não dá ibope. Joana a contragosto tem um tom melancólico, temperado com lirismo, ironia e humor. Construído com a perícia de quem sabe adequar linguagem ao mote. Ao final, o leitor e a leitora constatam que o herói, que se enfrenta diante de Joana e de si mesmo, é devolvido, transformado, para o inesperado que se abre na 187ª página deste bem-resolvido romance da literatura brasileira contemporânea.