A turma está unida. Basta uma palavra contrária e pode haver até passeata com cartazes e palavras de ordem. A turma está sempre alerta. Mas deve-se admitir: a turma tem força junto à chamada mídia cultural. Viva a leviandade. Este é o país da mentira, a começar pelo mandatário-mor. O cinismo também tem limite. Essa melancolia atinge tudo, incluindo aí a literatura — a poesia, o conto, o romance, o ensaio literário, a crítica. Este é o país que enaltece a mediocridade. O país do conchavo. Está cada vez mais provado que no país da mentira, no que diz respeito à poesia, o que vale mesmo é o marketing. Na prosa também. Mas há momentos mais leves na agonia de todos os dias, como, por exemplo, ver sobre a mesa alguns livros de poesia que merecem atenção. Livros de poetas, não de marqueteiros.
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Eu começo com o livro de poesia de Ricardo Thomé, do Rio de Janeiro, Arranjo para cinco vozes (Uapê — Espaço Cultural Barra), com prefácio de Ivan Junqueira. É bom deparar-se com livro assim. O livro de um poeta. Thomé diz que a poesia não está no objeto, mas no sujeito. “Está no olhar de quem olha, muito mais do que no que é olhado, o que faz da poesia o que há de mais subjetivo e pessoal.” Arranjo para cinco vozes, no final, mostra que a poesia ainda existe, o poema ainda existe: “Eu diria que a poesia é uma das formas mais belas e sofisticadas que o homem encontrou para expressar seu inconformismo, sua sensação de incompletude, sua insatisfação ontológica”.
Autor de dois romances — Cão Danado solto na noite (1999) e A hora em que os lobos choram (2002) —, Ricardo Thomé conhece o poema e a poesia: “Duas usinas carrego em mim:/ uma, de sonhos, quer o infinito;/ outra, real, prepara o meu fim./ Esta, verdade; aquela, o mito./ Duas usinas carrego em mim”. Ivan Junqueira cita os heterônimos de Fernando Pessoa para explicar a poesia de Ricardo Thomé, observando que em Arranjo para cinco vozes se digladiam, como numa frenética sarabanda de eus, a voz da voz, a voz confessional, a voz do outro, a voz solene e a voz dissonante ou, como o próprio Thomé define, a voz em falsete.
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Outro livro, Sangue de Romã, de Cida Sepúlveda (Editora Scortecci), mostra uma poesia com uma elaboração digna da própria poesia. Nascida na pequena São Pedro, no interior de São Paulo, Cida Sepúlveda vive na cidade de Campinas. Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política na Unicamp, afirma, no prefácio, que em Sangue de Romã o leitor encontrará uma síntese perfeita da cultura poética moderna, sobretudo se pensarmos nas formas românticas da imaginação. É exatamente isso, e muito mais, porque essa poesia revela o que nem sempre se mostra como é. O pequeno poema que dá título ao livro é o seguinte: “Beatriz/ Sangue de Romã/ Na sombra dos jatobás/ Tremeluz/ Cacos de vidro/ E sol/ Entre os dedos/ Feitiço da solidão”. O que se vê aqui é uma poesia íntima, mas de uma intimidade que se abrevia num gesto, talvez numa palavra, talvez afeto: “Se pintasse/ Pintaria teu mistério/ De amarelos indefinidos/ Como os dos girassóis de Van Gogh”.
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Outro poeta, Latif Abrão Júnior, nasceu na cidade de Franca, interior de São Paulo e vive na capital. Como epígrafe para seu livro O criado-mudo (Editora Callis), prefácio de Frederico Barbosa, Latif escolheu Diderot certamente para melhor situar seu trabalho: “Um poeta é um homem de imaginação vigorosa, que se comove, que se espanta ele próprio com os fantasmas que cria”. A partir daí Latif explica num belo poema tudo que há em seu criado-mudo, desde papel, caneta, lapiseira, até uma foto amarela, um relógio parado e seu caderno de poesia: “Minha poesia não é obra./ Não é obra minha poesia./ Mais uma manobra/ Para fluir a fantasia./ Organizar a sobra./ Extravasar-me à revelia./ Subversão, dobra/ da reta vazia”. Frederico Barbosa lembra, com razão, que o livro de Latif “guarda poemas e imagens igualmente elaborados pelo poeta meticuloso. […] Assim, O criado-mudo desperta o sono do cotidiano insípido pra o sonho da criação”. Latif parece seguir com um caderno de anotações a registrar o cotidiano em imagens poéticas ainda possíveis. Basta saber observar.
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O camaleão no jardim, de Mirian de Carvalho (Editora Quaisquer), mostra que a poesia resiste aos ataques dos vândalos de todos os dias. Mirian nasceu e vive no Rio de Janeiro. Seu livro é um passeio por um jardim. Ela diz que a poesia não se prende à causalidade. Nem à forma. Mas o que é poesia? “Seus motivos escorrem pelas calhas dos telhados, parindo andorinhas e argila. Seus motivos se iniciam no corpo, criando lugares para as coisas da vida. Torna-se varanda o olhar. Torna-se terra e pele úmida.” A poesia de Mirian de Carvalho se mostra ao que há ainda de lírico. “Meus dedos deslizam entre labirintos e teias, para tecer a roupa do camaleão”, diz ela, para completar que tudo é tão fugidio e isso inclui a própria poesia. O camaleão no jardim é todo composto de poemas de 14 versos, na forma do soneto, mas sem a métrica. Os poemas transcorrem por canteiros de fogo, corpo de haste, ramos de pele, lábios de pétalas, flores noturnas, imagens poéticas de um jardim onde se resume, afinal, um mundo à parte: “Nessa pequena viagem do sol que/ de nós se afasta para continuar o eterno/ retorno. Recolhida em mudez de terra/ prepara o útero de luz”.
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Márcio Catunda, que vive no Rio de Janeiro, é autor de vários livros, incluindo volumes de contos e memórias. Também escreve poemas. Seu Sintaxe do tempo (Editora Imprece, de Fortaleza) é feito de indignações diante da barbárie de todos os dias. Uma indignação escrita num texto poético que envolve o cotidiano das pessoas, especialmente aquelas que são massacradas em todas as esquinas por uma casta que ignora os que se perderam nos labirintos cada vez mais longos da existência. Vozes assim estão se tornando raras na poesia brasileira. O livro é um discurso contra essa rotina que protege sempre o mais forte e marginaliza cada vez mais o que já vive à margem de tudo. Um dos poemas de Márcio Catunda diz — e isso reflete bem sua palavra: “Não posso continuar assim, tendo uma casa assombrada na alma./ Clarões de lua nos espelhos, nos vãos sombrios de escada,/ os porões silenciosos./ Há mulheres armadas para o martírio,/ fragmentos de gente pelos ares”. Márcio Catunda não se preocupa com a elaboração do poema em sua forma. O que vale, na verdade, é o que tem a dizer.
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Sílvia Thomé teve sua poesia reunida no livro Xepa de feira (Uapê — Espaço Cultural Barra), onze anos depois de sua morte. Ela foi assassinada numa Quarta-feira de Cinzas de 1994, crime que não foi esclarecido até hoje. Seu corpo foi encontrado por pescadores na praia Piratininga, em Niterói. Era jornalista e sempre se dedicou às causas sociais. Numa das vezes que escrevi sobre Ana Cristina César, que morreu por suicídio, observei que a morte de um autor provoca novo olhar na análise de sua obra. E muitas vezes esse olhar acaba por distorcer a crítica. No caso de Ana Cristina César, essa minha observação causou um certo mal-estar. Mas isso é verdadeiro. A morte, a circunstância da morte, acaba por interferir na avaliação da obra póstuma. Ocorre que Sílvia Thomé escrevia mesmo uma poesia vigorosa. Prova é este livro que deixou. Uma poesia na mais correta acepção da palavra. Astrid Cabral afirma: “Custa crer, no processo de leitura, que ela não esteja mais entre nós, em carne e osso, tamanha a vitalidade do testemunho existencial contido em suas palavras”. No poema Repente, Sílvia Thomé diz: “Gosto da poesia/ feita de bagaço/ rapa de panela/ xepa de feira./ Gosto do verso/ que se impõe/ feito capim/ nas bordas do asfalto”. Foi uma mulher que teve na poesia uma forma de viver a possibilidade da vida. Sua poesia não é feita somente da beleza necessária, mas também das asperezas de um tempo que humilha os que estão nas ruas sem saída. Poesia participante, presente. Sobretudo envolvente pelo que contém de humano e solidário. No poema Questão de coragem, ela afirma: “Se fosse mulher de coragem/ essa voz clara que não possuo/ te cantaria bolero, ranchos/ tangos sangrentos/ que falassem de paixões muito loucas/ boleros-leros/ ranchos mansos/ tangos selvagens/ de uma selva que já não trago”. Como bem observa Astrid Cabral, a poesia de Sílvia Thomé se define sobretudo pela fervorosa celebração da vida.
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Dialeto do corpo, de Lina Tâmega Peixoto, é outro livro que merece atenção dos que admiram a poesia como forma de estar no mundo, se isso de fato for ainda possível. Lina vive em Brasília, seu livro é da Editora Empresa, do Instituto Francisca de Souza Peixoto, de Cataguases, Minas Gerais. Uma poeta completa, que conhece esse ofício de escrever poemas, tirando da palavra tudo que essa palavra pode oferecer ao ser poético: “Para mim, poesia é, antes de tudo, artefato, coisa a ser fabricada, objeto em que se trabalha toda as potencialidades das estruturas da linguagem, como, por exemplo, a vocabular, a semântica, a fônica, a rítmica, inseridas num contexto muito próprio e peculiar da criatura em sua vivência. Assim se refaz, se corta, se modifica o texto poético até que dele emane a chama da vida em seu movimento de dor e êxtase”. Autora de dois outros livros de poemas, teve sua poesia lida por Carlos Drummond de Andrade, que escreveu: “Você alcança a maturidade poética, não há tremura ou indecisão de traço, tudo é firme, quando necessário, sutil e sempre lúcido ardendo de uma chama interior”. Três pequenos trechos de poemas dão a idéia clara de sua poesia. Alquimia do verso: “Procuro um objeto/ para ser poesia./ Meia-tristeza, meio-amor,/ meio-mundo, meia-metafísica,/ serviriam para sustentar o poema”. Biografia: “Que traço do tempo/ se prende ao caule de minha palavra,/ dardo que vibra/ no arfar do coração frágil?”. Elegia: “A noite enruga as palavras/ cansadas de estar de pé./ A medida com que sustento a cantiga/ é tão triste,/ tantas vezes repetida,/que, num sopro, se desgasta”.
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Já Helena Armond é uma poeta que leva o poema e a palavras às últimas conseqüências de sua própria intimidade. Seu novo livro Cantochão (Editora Escrituras) dá a impressão de ter sido escrito aos gritos, já que a palavra, para ela, é instante certeiro com todas as coisas que a cercam, incluindo pessoas. Helena Armond diz que, para ela, pensar é quase impossível: “Sou do tipo intuitivo, sem pudor, sem censura na fala. Mas acredito em primeiro lugar que poemar seja a mais absoluta forma do desejo de comunicar-MIM em primeiro lugar e depois com o mundo”. Num dos poemas de Cantochão, ela diz: “medo enquanto poeta poeta/ que fazer parte da rinha/ maior seria o morrer/ em vazios entrelinhas”. Helena desorganiza as palavras, mas esse é o objetivo de seu trabalho poético, que deixa que as palavras cheguem à própria explosão — se é que cabe aqui esta expressão — para delas tirar o que pode restar da poesia e do poema. “A mim foi dada (?) permissão e facilidade para dizer textos de maneira mais ou menos absurda”, diz ela, deixando claro que a poesia, além de um desafio, é também uma atitude de ousar.
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Por último, Vera Lúcia de Oliveira, que nasceu em Cândido Mota, interior de São Paulo, mas vive na Itália desde 1983. Atua como professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Lecce. Publica trabalhos sobre literatura — especialmente a brasileira — em revistas de Portugal, da Espanha e da Itália. É autora de vários livros, quase todos publicados por editoras italianas. Sua obra A chuva nos ruídos – antologia poética (Escrituras) foi considerado o melhor livro de poesia de 2005 pela Academia Brasileira de Letras, prêmio que dividiu com Neide Archanjo, autora de Todas as horas e antes (A Giraffa). Quem deu essa notícia? Ninguém. Mas fosse esse prêmio conquistado por algumas das vaidades que andam por aí protegidas pela mídia desonesta, a notícia sairia até na Lua. Disso não se tem dúvida. Mas longe dessa discussão, a verdade é que A chuva nos ruídos é de fato um livro de poesia, de uma autora que prima pela seriedade em relação ao seu trabalho, o que se pode ver em toda a sua poesia, desde o primeiro livro A porta range no fim do corredor, de 1983. Sempre escreveu uma poesia marcante. Um poema que respeita o poema em sua forma e respeita também a poesia ainda possível. Como exemplo, As palavras todas: “deste olhar maciço/ nascem poemas/ deste jeito torto/ olhar de grão maduro/ os cheiros da noite encharcando a terra/ de sombras/ as mãos buscando côncavos/ adubando pontos/ de exclamação/ as palavras todas que vou dizer/ antes de morrer” . Para falar de poesia,Vera Lúcia de Oliveira lembra o poeta italiano Franco Scataglini, para quem a poesia é ritmo da respiração. Se o coração pulsa de um determinado modo e o sangue circula com a mesma cadência, então essa é também a melodia do verso: “Respiro como vivo, falo como respiro. E a poesia segue tal cadência e brota deste movimento visceral alternado. A poesia é uma música que tenho dentro, é uma escultura que busco modelar com esse ritmo, recortando formas com as tesouras que Deus me deu”, diz ela.