O pessoal da agência de publicidade que o diga, cretinos paste-ups e close-ups e outros ossos do ofício com nome de dentifrício, dos quais eles muito se orgulham, mas eu era uma redatora, não, uma jovem escritora em ascensão e todos que não achassem meus trabalhos geniais eu considerava, no mínimo, um bando de invejosos sem talento, porque todo, mas todo mesmo, todo publicitário esconde secretamente um grande artista frustrado, esmagado, coitadinho, pela cega máquina do consumo, todavia o gênio, este sempre será reconhecido.
O trecho acima vem do conto Tigresa de Márcia Denser e traduz com exatidão um preconceito e um sentimento, ambos correntes no meio artístico. O preconceito refere-se ao publicitário que se pretende artista; o sentimento, à veleidade própria do artista que estranhamente sempre cresce na proporção inversa à do talento. Embora Márcia Denser saiba muito bem do que fala e o faz com total isenção, uma vez que as duas profissões, publicitária e escritora, constam em seu currículo, a generalização não se sustentaria caso o discurso não tivesse um caráter ficcional, e a escritora paulistana já seria um exemplo bem ilustrativo de exceção à própria regra. Há também uma outra variante da mesma equação: talvez porque a obra publicitária de qualidade tenha algumas virtudes comuns às da obra de arte, muitos têm se entusiasmado com seu bom desempenho numa coisa e se julgado aptos a ingressarem noutra. Alie-se a isso o ambiente altamente competitivo do meio publicitário — onde parece que tudo é sempre produzido sob o ditame de que ali dentro só sobrevivem os melhores, algo obviamente introjetado na personalidade de seus destaques —, e pronto: está feita a porcaria. De fato, pelo menos no que diz respeito à literatura, o que se observa é que vários publicitários talentosos têm se lançado como escritores, quase sempre com resultados que deixam muito a desejar, mas sem perderem a pose quando o assunto é a própria genialidade.
Na hipótese fantástica de que Diana Marini, protagonista do conto e alter ego de Márcia Denser, pudesse um dia conhecer a gaúcha Claudia Tajes, por certo ela se tornaria um pouco menos peremptória em seu discurso. Profissional bem-sucedida e respeitada no meio publicitário, Tajes lançou-se como escritora em 2000 com a novela Dez (quase) amores e contrariando as expectativas ao apresentar uma prosa bem-humorada que foge do descartável, além de seduzir a todos com seu jeito tímido e sua postura de humildade e reserva quanto aos próprios méritos literários. Este último aspecto vem reforçar uma vez mais a velha tese de que o bom escritor não exercita a vanglória: por estar sempre às voltas com suas muitas dúvidas, carece de tempo para se ocupar de suas poucas certezas. A novela também conseguiu safar-se de um outro estigma: ao abordar as peripécias de uma personagem feminina em dez frustrantes casos de amor narrados em primeira pessoa, a autora correu o seríssimo risco de aumentar as estatísticas da tal literatura dita “de mulherzinha”, rótulo tão depreciativo quanto pródigo em seu poder de afastar uma grande parcela de público leitor. E absolutamente inadequado neste caso.
Um episódio verídico e divertido mostra como Dez (quase) amores saiu ileso de uma prova de fogo. Alguns dias depois de ter sido apresentada ao escritor Sergio Faraco, a autora providenciou-lhe um exemplar do livro. Faraco, leitor dos mais experientes e, por isso mesmo, difícil de ser contentado, deixou o presente sobre o criado-mudo com a intenção de passar os olhos nele antes de dormir. Logo nas primeiras páginas foi fisgado e teve a certeza de que leria a obra até o final. Como havia começado tarde e já avançado muito além da hora desejada, decidiu concluir a leitura no dia seguinte. Apagou a luz de cabeceira, preparou-se, mas tão envolvido estava pela história que não conseguiu pegar no sono. A solução foi acender de novo a luz e retomar o livro até a última página.
Tajes surpreende também pela assiduidade com que lança novos títulos. Um ano depois da estréia, As pernas de Úrsula repetiu a temática dos relacionamentos amorosos, mas apresentou como narrador um personagem masculino, contraponto perfeito à do primeiro livro. Dores, amores & assemelhados, de 2002, trouxe de novo uma história de amor, dessa vez narrada simultaneamente pelos dois protagonistas; junto com as duas novelas anteriores, ela encerrou uma espécie de tríptico e também o contrato com a editora L&PM. Em 2003, Vida dura saiu pela Planeta, com duas novidades significativas: o lançamento por uma casa editorial de grande porte, o que facilitou seu trânsito no mercado nacional, e a mudança na temática, com as relações amorosas deixando o primeiro plano e cedendo o lugar à história absurda e tragicômica de um rapaz que ganha a vida como doador de bancos de sêmen.
A vida sexual da mulher feia, lançado recentemente pela Agir, parte outra vez de uma idéia original e engraçadíssima: um tratado pretensamente científico sobre o assunto referido no título, tendo como corpus a experiência pessoal da autora — do estudo, bem entendido, uma vez que de feia Claudia Tajes não tem nada, antes o contrário. Por trás da estrutura típica de um trabalho acadêmico, com divisões e subdivisões numeradas que acomodam o clássico esquema de introdução, hipótese, desenvolvimento e conclusão, existe de fato uma novela narrada em primeira pessoa, que conta “a trajetória de quem nasceu com um rosto e um corpo fora dos padrões e proporções”, para se repetir o eufemismo usado no texto de divulgação do livro. A brincadeira é revelada já na primeira página, mas passou despercebida por quem fez a catalogação: “1. Mulheres — Condições sociais. 2. Mulheres — Comportamento sexual. 3. Beleza feminina (Estética). 4. Imagem corporal em mulheres. 5. Corpo e mente. I. Título.” é o que consta na ficha, dando a entender que não se trata de obra de ficção. Como ninguém presta atenção a esse detalhe na hora da compra, o deslize não causou maiores transtornos: a singularidade do tema aliada à popularidade em ascensão da autora fez com que a primeira edição se esgotasse em poucos dias e o livro figurasse na lista dos mais vendidos em grandes jornais e revistas do centro do país. Outra estatística, embora regional, é também digna de nota: o lançamento respondeu pela segunda maior sessão de autógrafos da última Feira do Livro de Porto Alegre. Alçada à condição de best seller, Tajes vive hoje um momento especial de sua jovem carreira, e ele, como se pôde ver, não surgiu do nada.
Apesar de a autora ter se revelado extremamente criativa na concepção de seus livros, é em outro plano que se mede a competência de um escritor. Consta que Flaubert desdenhou uma vez da intenção do pintor e amigo Degas de escrever um livro motivado por uma idéia que considerava genial, aconselhando-o a ficar com seus pincéis e resumindo a questão de forma lapidar: a literatura não é feita de idéias, mas sim de palavras. E é justamente com elas que Claudia Tajes revela seu talento. Para tanto, vale-se de um léxico simples e quase coloquial, tendência contemporânea que exige um esforço extra do escritor para transcender a banalidade. A frase é direta, enxuta, sem firulas retóricas e limitada sempre ao essencial. Avessa à adjetivação, Tajes prefere mostrar a contar, para se usar um conceito dos mais apropriados, e demonstra uma especial aptidão para os diálogos, estes sempre ágeis, precisos, densos de significado:
Os pais de uma menina recém-nascida não podem imaginar que um dia ela se transformará em mulher feia. Mas talvez seguindo algum instinto, eles dificilmente darão à filha um nome bonito.
Não existe mulher feia chamada Nicole e raramente uma delas atenderá por Júlia, Letícia, Bárbara, Yasmim. Em compensação, são incontáveis as Crisleines, Rosineides, Greicelanas, Claudiomaras e todos os nomes que unem outros dois, ou até três, num único, e inédito, substantivo próprio.
Eu mesma fui registrada como Jucianara e, nas vezes em que reclamei com a minha mãe por me chamar assim, ela respondeu:
— Não poderia haver nome que combinasse mais com você.
O humor é sem dúvida o grande destaque e ele resulta de um trinômio que envolve percepção aguçada, poder de síntese e capacidade de rir da própria desgraça. Da concorrência desses três atributos autorais derivam todas as virtudes do texto. Uma reflexão rápida leva à conclusão de que os dois primeiros já estão presentes em qualquer peça literária de qualidade, independentemente do grau de humor que ela contenha. No caso de Claudia Tajes, o toque distintivo fica por conta do terceiro. Não que seja essa uma característica inédita, mas tampouco ela deixa de ser incomum. Partindo-se do pressuposto de que a graça pode muito bem ser o outro lado da desgraça, o humor funciona como um antídoto contra a tragédia e, muitas vezes, o único. Rir da miséria é um meio de suportá-la. Tajes sabe como poucos manejar essa ferramenta poderosa: vestindo a pele de sua baranga, ela se autodeprecia muito antes que qualquer um pense em fazê-lo. Esse traço confessional, por assim dizer, humaniza a personagem e faz com que o leitor se identifique de imediato com ela.
O humor se sobressai ao drama mas não o afasta; ao contrário, todas as entrelinhas estão impregnadas de solidão e desesperança. Este foi o detalhe que mais impressionou Sergio Faraco naquela noite em que ele não conseguiu interromper a leitura de Dez (quase) amores: enquanto todos os leitores exaltavam a comicidade do texto, o grande contista leu o subtexto e encontrou nele uma tristeza infinita.
E, de quebra, uma ótima escritora.