Nenhuma das mocinhas da cidade olhava para as três mulheres que ousaram trabalhar oferecendo prazeres para os homens de Santa Maria. E, para não virarem estátuas de sal ou qualquer coisa terrível assim, o trio, em suas rotas roupas curtas e maquiagem exagerada, também não fazia questão de olhar para ninguém naquele fim de mundo. Elas andavam se equilibrando nos saltos sobre pedras da calçada, cabeça baixa. Viam, de rabo de olho, os santa-marienses (ou como quer que se chamassem) em partes. Um pé aqui, partes de pernas acolá, eventualmente um joelho (coberto, é claro). Não viam rostos. Passavam por seres sem olhos, sem bocas, sem nada. Esquecê-los, portanto, era fácil. E deixava os dias menos tristes. Menos embaraçosos.
O olhar gelado e cheio de ódio das moradoras da cidade foi uma constante desde que o trio, acompanhado de Junta Larsen (ou Junta, ou Junta-Cadáveres, como era mais conhecido), desceu do trem das cinco, em plena segunda-feira. As prostitutas bagunçaram o coreto do mulherio, levando praticamente todos os homens (atuais ou futuros noivos, maridos ou namorados) à casinha de persianas azuladas e fazendo o que elas (atuais ou futuras noivas, esposas ou namoradas) não faziam em casa. Pela bagatela de 10 pesos.
O funcionamento do primeiro prostíbulo de Santa Maria, com as três putas pobres e desgrenhadas, é o ponto de partida para a obra Junta-Cadáveres, do uruguaio Juan Carlos Onetti, publicado pela primeira vez em 1964 e relançado em 2005. A cidade é fictícia. Foi inventada por Onetti para o livro A vida breve (1950). Mas a história que se passa ali, naquela terra inventada, poderia ter acontecido em qualquer lugar do mundo. E em qualquer tempo.
O prostíbulo, causador de desavenças familiares e tema recorrente dos sermões do padre Bergner, era totalmente legal. Seu funcionamento foi aprovado pela Câmara e contou até mesmo com o voto da ala mais tradicional dos legisladores municipais. Por um preço, é claro. A história é fictícia, a cidade é fictícia. Mas a política, não. É real, apesar de parecer inventada. E é tão atual hoje como foi há quase 50 anos. O boticário da cidade, Berthé, que também era legislador, tinha um plano sensacional: com uma casa de tolerância, provavelmente o índice de doenças cresceria. Como conseqüência, sua botica seria muito mais freqüentada. Lucro na certa. Bastou prometer votar em um projeto para a concessão do porto e, voilà, tudo estava resolvido. Uma singela troca de favores.
Para sempre
Mas o prostíbulo é um cenário, um pretexto para o livro. Onetti quis falar sobre muito mais do que a ranhetice dos pudicos e a corrupção na política. Quis falar de desejos, amores, morte, tédio, prazeres. Quis falar de vida. Porque vida é isso. É feita de momentos, de fragmentos de tudo. Por isso, Santa Maria e o prostíbulo representam qualquer lugar, em qualquer época. E os personagens, mesmo com nomes e sobrenomes, são todos e são ninguém ao mesmo tempo.
Jorge é um rapaz que quer saber o que, afinal, é a vida: “Não quero aprender a viver, e sim descobrir a vida de uma vez e para sempre”. Passa seus dias pensando em como serão as noites. No escuro, convive com a cunhada, viúva de seu irmão. Empresta seu corpo e sua alma ao defunto, para satisfazer a parenta, que está, todos pensam, doida de pedra: “[…] vou ter de me entregar como uma mulher, morrer durante algumas horas para que ela volte a ter meu irmão”. Jorge e Julita, a cunhada, aprendem juntos sobre a vida. Mas não são compreendidos. Muito menos pelo irmão da moça, Marcos, que vê no casamento a única forma de não haver “nojo” na cama. Ele, que já foi homem de freqüentar prostitutas, agora se amotina com as moças da Ação Cooperadora — que passam a enviar cartas anônimas, primeiro genéricas e depois nomeando cada um dos homens que passou pelas camas das prostitutas — para evitar que os moços de bem da cidade sejam sugados pelo canto das mulheres da vida e ardam no fogo do inferno. O inferno, aliás, é o lugar para onde todos daquela cidade vão, se depender do padre Bergner — tio de Marcos e Julita. “O padre Bergner não se ajoelhou; recostado de leve no púlpito murmurou entre os dedos da mão seu pedido de humilhação e súplica, rogando que fosse impedido em Santa Maria o triunfo do demônio”.
As prostitutas vieram para a cidade pela mão de Junta. São cadáveres de olhos pintados e vestidos fortemente amarrados na cintura. Para dar, pelo menos, uma impressão de beleza. Os mortos também são belos. De um jeito tétrico, com toda a “falta de vida” a que têm direito. Mas mostram o que fica depois dela, sempre carregando no tom azul-arroxeado e frio.
Junta-Cadáveres, o personagem, sabe que pode explorar essa “falta de vida”. Porque ele mesmo, Larsen, estava morto.
Tudo estava acabado porque terminara, quase de surpresa, a história única, insubstituível daquele homem chamado de diversas maneiras, chamado de Junta, e que ele, sem conhecê-lo, podia vangloriar-se de conhecer melhor do que ninguém. Podia transportá-lo como uma mulher transporta um feto morto; podia através da lembrança brincar que estava vivo. Mas já não havia fatos — os pequenos renascimentos, as modificações, os desconcertos, os progressos, as retificações comprazidas que cada verdadeiro fato significa —, e sim uma série de atos reflexos, visíveis desde essa morte até a outra, impostos pelo passado que acabava de terminar.
Por isso, ele se cercou dos seus. Defuntos que insistem em andar por aí, exibindo sua beleza mórbida para os que ainda respiram. Larsen, mais ou menos vivo, é um personagem que participou de outras obras de Onetti: Terra de nadie (1941), A vida breve (1950) e El astillero (1961).
A trama de Junta-Cadáveres foi escrita para ser lida de um fôlego só. Sem ordem cronológica definida, é composta por capítulos que trazem sempre uma nova pista sobre a vida ou a falta dela. Sobre Santa Maria e seus moradores. São quatro histórias diferentes que acontecem ao mesmo tempo. E em tempos diversos. Os nós apresentados em um capítulo são desatados em outro, com uma história diferente e situada em um outro momento. Por isso prende o leitor. Por isso não o deixa escapar. E também pela poesia e o lirismo, que permeia todas as histórias. Assim como acontece na vida e na morte.