Síntese implacável

Astier Basílio entrevista o escritor Rinaldo de Fernandes
Rinaldo de Fernandes: finais impactantes e nem sempre felizes.
01/02/2006

• Minimalismo, diluição de fronteiras entre gêneros, violência, desmonte estrutural, coloquialismo… É possível passar ao largo destas características na contística contemporânea?
Acredito que todos esses elementos que você elenca estão, efetivamente, presentes no conto contemporâneo. Com relação aos dois primeiros elementos, eu diria que o miniconto cria uma tensão muito forte com a poesia. Ele se aproxima muito do poema. Mas o conto mais extenso também pode ter valor poético, a depender do contista. No que se refere ao desmonte estrutural e ao coloquialismo, são conquistas modernistas que ainda agora vigoram na ficção como um todo. Em relação à minha produção, todos esses elementos que você aponta se fazem presentes, por exemplo, no meu primeiro livro, O caçador, de 1997. O poeta e crítico Amador Ribeiro Neto disse muito bem sobre esse livro: “Há nele praticamente todas as possibilidades de conto”. E isso, de minha parte, foi intencional. Sendo assim, e respondendo mais diretamente a sua pergunta, eu diria que fica muito difícil o contista consciente desconhecer esses aspectos todos do conto atual.

• O conto tem de “contar” uma história? É possível também pensar a narrativa como exercício lúdico, metalingüístico ou verbal?
Necessariamente o conto não precisa contar uma história. No século 19, ainda existia uma corrente que narrava ou um acontecimento extraordinário ou, pelo menos, um acontecimento impactante. Essa noção foi desmontada com as correntes modernas do gênero, sobretudo depois de Tchekhov. O conto moderno prejudica a noção de enredo. Muitas vezes nada é contado, mas apenas sugerido, aventado. Mas nada disso é exato, matemático — você pode ainda encontrar autores que, de algum modo, se preocupam em narrar uma boa história. Constituem, todavia, um grupo de menor relevância. Por outro lado, o conto contemporâneo — como já sugeri na resposta anterior — tem várias possibilidades, múltiplos caminhos. O da metalinguagem é um deles, sem dúvida.

• Você trabalha com as perspectivas do pastiche e da intertextualidade. No seu novo livro, O perfume de Roberta, você reescreve A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, e aproveita o arcabouço temático de Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock. O escritor tende a ser também um leitor revelando seus andaimes e suas pistas nos dias atuais?
No conto Sariema, que encerra o livro O perfume de Roberta, eu recriei, de fato, a novela famosa de Guimarães Rosa. Um exercício intelectual e criativo dos mais cativantes. E também de muita responsabilidade, pois se trata da recriação de um texto clássico da literatura brasileira. Narrei a história do ponto de vista da Sariema, personagem secundária da novela matriz. A professora e ensaísta Sônia L. Ramalho de Farias, da Universidade Federal de Pernambuco, acaba de escrever um ensaio notável em que compara meu conto com a novela. O ensaio sairá no próximo número da revista Cerrados, da pós-graduação em literatura da Universidade de Brasília. Pelo que vi do ensaio, acho que valeu muito a pena esse exercício a que me propus. Quanto à Janela indiscreta, devo esse enfoque a um comentário inteligente, que consta da seção final de O perfume de Roberta, acerca do meu conto O cavalo feito pelo poeta e também contista André Ricardo Aguiar. Nesse conto, o narrador é um velho advogado aposentado que vê a cena principal (um marido batendo na mulher) do alto de um prédio, sem interferir em nada. Um voyeur frio. O que disse André Ricardo sobre o conto é bastante interessante. Quanto ao segundo aspecto de sua pergunta, diria que sim, o escritor tende mesmo a ir revelando em seu percurso, voluntária ou involuntariamente, aqueles autores e obras com os quais se identifica. Às vezes, há uma influência tão decisiva que é inevitável a intertextualidade, como é o caso do meu conto citado acima. Mas isso é positivo. É hoje, em plena pós-modernidade, um exercício dos mais significativos em literatura.

• Ainda permanece, pelo menos para efeito de mercado, que o conto é menos vendável do que o romance. Há o sentimento de que um gênero possa ser superior ao outro?
Do ponto de vista do mercado, sim, o romance é o gênero preferido dos editores. Os contistas, como os poetas, têm muitas dificuldades para encontrar um editor. A razão reside na própria história do romance, que é um gênero, desde pelo menos o século 19, de mais leitores. Mas, é claro, o tamanho da narrativa não determina o seu valor. Um conto pode ser mais significativo do que um romance. Quanto a isso, os exemplos são muitos na literatura universal.

• O que há de diferente neste seu mais novo trabalho em relação ao anterior?
O caçador contém 50 contos e minicontos. Em O perfume de Roberta, não há praticamente minicontos. Nos anos 90, escrevi muitos minicontos, mas hoje já os pratico bem menos. Meus contos mais recentes têm, no mínimo, quatro páginas. Lá atrás, eu escrevia histórias de um parágrafo, uma página… Acho que agora estou, de fato, com mais fôlego narrativo. Estou me alongando para, quem sabe, no futuro, chegar a um romance. Já cheguei a uma novela. Acabo de pôr o ponto final na novela Rita no pomar, que pretendo publicar mais à frente. Existe, por outro lado, semelhanças entre o trabalho de agora e o anterior no que diz respeito à permanente preocupação em refletir a realidade social do país, sem esquecer da qualidade estética do texto. Acredito sempre no que falou Julio Cortázar sobre o conto como “síntese implacável de uma certa condição humana” ou mesmo um “símbolo candente de uma ordem social ou histórica”.

LEIA RESENHA DE O PERFUME DE ROBERTA

Astier Basílio

É poeta e dramaturgo. Atualmente, mora em Moscou (Rússia). Mestre em literatura russa pelo Instituto Estatal Pushkin e doutorando em literatura russa no Instituto de Literatura Maksim Gorki.

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