Pai é quem

Conto de César Cardoso
Cesar Cardoso, autor de “Coisa diacho tralha”
01/02/2006

Lembrança é inferno. Eu aqui na hora do vamos ver, no perigo, vem lembrança pra quê? Me derrubar? Não precisa, os caras tão logo ali adiante querendo, de trabuco até os dentes pra isso. Mas ninguém invade isso aqui não, Agouro. Deixa comigo, Agouro. Só lembrança invade.

Tô com três anos, em pé na pia quebrada do banheiro, com minha mãe que acabou de me enxugar tentando me fazer engolir algum remédio. Daí eu levanto a mão fechada pra trás e mando um soco em cheio no nariz dela. Lembro até do som que fiz: ãhn! Gozado isso do primeiro som que me lembro de ter feito. Foi esse mesmo: ãhn! Minha mãe me deu uma surra. Depois fui crescendo e ela foi me dando mais um monte de surras. Mas a partir dos cinco anos eu sempre dizia pra ela: cuidado, mãe, que eu tô crescendo! E nessa hora eu é que era o pai dela.

É difícil ter pai, ter mãe e ter lembrança. Daí eu fico pensando: pai e mãe, pra que que servem? Lembrança, pra que que serve? Têm coisas mais fáceis, a escopeta, a pistola. Tão aqui à mão e eu sei como usar e a hora certa pra isso. Daqui a cinco minutos, por exemplo. Mas lembrança? Vem quando a gente nem lembra mais. E quanto mais a gente precisa esquecer mais a desgraça da lembrança lembra. Até na hora de apagar um ela pode vir. Já veio. E eu, que gosto de um serviço calmo, limpo, sem barulho, me danei num desperdício de bala e sangue por todo lado, até no pé do Zé Moita, que não tinha nada com a história, acertei. Foi lembrança. Lembrança, se bobear, mata a gente.

Tanta coisa se bobear mata a gente. Ou o que a gente tem de melhor. Que lembrança também é mentira de muito nego, que escolhe a que quer. E nem guarda pra si, quer vender pros outros, faz qualquer negócio. Mas isso não fica assim não, que eles sabem o que eu sou e como é que eu mando bem, e eu vou mandar bem mesmo, puxar do ferro certo e sentar o dedo em todos eles. Não adianta se atocaiar, não adianta tentar fugir, não adianta se arrepender. O que tá feito é que nem lembrança, ninguém desfaz, pra mim ninguém vende. Se atocaiou, vai morrer na bala, sem pressa. Quem tentar fugir, vai tomar uma fritada no pneu. Quem se arrepender, esse vai se arrepender mesmo, nem sabe o quanto. Se reencarnar, nem assim vai esquecer. Lembrança.

Minha mãe dizia que tinha lembrança que era boa. Minha mãe era cheia de história. Eu perguntava, o quê? O pai te currando pra eu nascer? Ela queria explicar e essa era a pior parte, ela achava que sabia explicar as coisas, ou então sei lá o que dava nela, ela precisava ficar falando. Coisa de mulher, mulher fala. Eu dizia uma vez só, vou sair de perto pra não te escutar, porque se eu te escuto meu sangue ferve e eu me perco nele. Daí eu tapava os ouvidos pra não ouvir nem os chinelos dela atrás de mim, porque ela ainda vinha atrás falando, mas eu descia desabalado deixando ela pra lá e só parava na tendinha do Zé Moita depois da quarta cachaça. A Mãe. Não me dava mais surra, a essa altura eu já tinha crescido. E nessa hora mais uma vez eu é que era o pai dela.

Bota cachaça pra todo mundo aí, Zé Moita. E deixa que eu vou lá. Estica umas pra rapaziada aí, Zé Moita, e fica na sua, deixa que eu resolvo. Ele sabe que você tá nessa também, ele sabe. Mesmo desse jeito, de algum lugar ele sabe. As cachaças, as fileiras, você é o setor de alimentação e moral do meu exército, do exército dele, do nosso. E ele sabe disso. Me ouve, Zé Moita, me ouve, você nunca se arrependeu de me ouvir. É ele que ainda tá me dizendo. E eu nunca me arrependi de ouvir ele.

Eu não sei se a gente tem muitos pais menos o que é pai. O meu currou minha mãe e desapareceu no mundo. Mas o mundo tem contorno. E agora que eu vou contornar, quero ver. Tirando ele, já encontrei muito pai. A gente nem percebe, muita gente nem percebe, eu nem percebia.

O Agouro, pai do Zé Moita. Me pegou, o quê?, aos sete anos. Eu tava largado na rua, ali no centro, dormindo em cima das bancas da Candelária. Minha turma foram aqueles mortos. Mas antes, o Agouro me pegou cheirando cola num gramado. Me olhou, falou meu nome. Cecílio. Eu sabia quem ele era, quem daqui do morro não sabia quem era o Agouro? Mas, doidão, nem dei conta. Ele riu, quer ligar, liga, mas não com cola, isso mata rápido e antes de matar, brocha e você ainda morre se cagando pelas pernas abaixo, você vira um cheiro sem ninguém por perto. Duvidei. Achei que era de duvidar sem saber que tanto fazia. Larga isso, volta agora pro morro que eu te apresento uma erva da boa. Eu saí xingando e nem sei porque fui atrás dele xingando, só pra mostrar que ele era um cascateiro igualzinho. Mas ele não era e a erva era da boa. E me apresentou todo tipo de arma. Me ensinou a atirar com todas elas. E me mostrou quando é que se usa cada uma. Por isso eu sei que em briga de beco não se puxa fuzil e sim a que se esconde no calção e cabe na palma da mão. Pou, pou, pou e o mané caindo com aquele fuzil que mal cabe no beco, mal cabe na foto. E em vez de vinte tiros pra todo lado, três certinhos, que rapidez é muito bom mas calma é bem melhor. E me batizou, Vaso Ruim, que Cecílio não é nome que dê certo. Ele pensa no futuro, o Agouro. Ou pensava, agora que está morto. Mas me ensinou a viver e a ficar vivo. E ainda tá me ensinando.

Viver todo mundo vive, só o mais vivo é que fica vivo. Dá trabalho? Dá. O que não dá? Dá trabalho cercar os caras, desarmar os caras. Eles pensam que tão seguros? Isso aqui é meu país, cada ladeira, uma cidade. E eu quero todo mundo vivo. Pra morrer olho no olho.

Minha mãe morreu olho no olho. Encomenda? Dizem. Tiro nela é que me acerta. E foi tiro de polícia que pega uma mulher fazendo o quê? Pendurando roupa no varal. O cara chega na cara dela e pou! Depois é só dizer que é mãe de um perigoso, tava escondendo o filho. Nunca me escondi em saia. Ô lembrança. Esse ainda tá aí, mas eu chego, eu chego.

Acharam que eu não chegava? Ficaram esperando barulho? Nada, tudo calmo, granada pra quê? Essezinhos aqui numas doze mãos, uns quarenta olhos, umas tantas bocas, e cadê vocês agora? E você? Eu sempre disse que o mundo tem contorno, então, encontrei o contorno do mundo. Não bastava, né? Marcar minha mãe comigo, matar meu pai sem mim. O que você não sabe é que eles seguem e você se apaga. Tiro? Tiro pra você não marca, tô com uma idéia melhor. Você precisa pensar, sabe? O resto não, mas pensar vai te fazer bem. E pra pensar tem que estar vivo. Eu vou te deixar pensando. Em quê? Pensa em como é difícil falar sem língua, como é impossível atirar sem mão, em como é duro chorar sem olhos. No resto você não vai pensar mesmo. Mas nisso vai. Daí não te mato, você segue e pensa. Quem sabe se aprende? Pai é quem.

Cesar Cardoso

É escritor e fotógrafo. Na década de 1970, foi um dos editores da revista de poesia Gandaia. Publicou em 1994 o livro de poemas A nossa moranguíssima paixão. Desde 2003, colabora com a revista Caros Amigos. É roteirista de TV, escrevendo atualmente o seriado Toma Lá Dá Cá, na Rede Globo. Os poemas aqui publicamos integram o livro inédito Coisa diacho tralha.

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