Vencidos na vida

"Desengano", de Carlos Nascimento Silva, apresenta um drama humano sintonizado com a trajetória histórica do país
Carlos Nascimento Silva: pontos de vista de cada um dos personagens
01/03/2006

A trajetória de uma família colada ao desenrolar da história do Brasil. Assim Carlos Nascimento Silva construiu seu mais recente romance, Desengano. O dia-a-dia dos personagens traz ecos do cotidiano brasileiro, sobretudo da classe média, e, simultaneamente, a narrativa apresenta informações a respeito de acontecimentos políticos e culturais do Brasil.

Quem atravessar as 207 páginas de Desengano vai encontrar um enredo surpreendente, mas verossímil. Os personagens centrais são de uma família de classe média que terá seu destino alterado devido à chegada de um elemento estranho (mas não tão estranho assim). Júlia, depois de se tornar viúva, procura um emprego para sustentar a ela e a seus dois filhos, Neno e Ana. Então, Beto, filho de uma família — também de classe média — que vive no mesmo prédio, passa a conviver com Neno, Ana e com Júlia. Beto se torna amigo de Neno e de Ana; e, no final de uma tarde quente de outono, o amante de Júlia. Ela, uma balzaquiana; ele, 17 anos.

O relacionamento de Júlia e Beto tem início em 1946 e aquele momento, de descoberta mútua, de paixão, apresenta pontos de contato com a então expectativa de país do futuro que se instalava no Brasil. Júlia se redescobre como mulher e Beto se torna, carnalmente, homem. Ela prospera no emprego. Ele acredita que tudo poderá vir a ser melhor amanhã. O narrador, em alguns momentos, interrompe a trama e apresenta fatos que aconteciam no território brasileiro; e a estratégia, o desenrolar de um drama simultâneo a acontecimentos históricos, funciona. Ao final, a relação entre Beto e a filha de Júlia, Ana, termina — justamente — em 1964, ano em que as perspectivas de nação, criadas anteriormente, pareciam ter definhado no ar. No entanto, antes do ano do golpe, naturalmente, muito se passou — para os personagens, para o país. No início da década de 1950, o casamento de Júlia e Beto havia ruído: ela tinha uma relação extraconjugal, Beto também. Era o tempo de Getulio Vargas e, como o narrador observa, “o gigante adormecido dera sinais de iniciar um longo espreguiçamento, pleno de demorados bocejos”. Vargas iria morrer, Júlia também — ao saber que sua filha, Ana, era amante de Beto. Um presidente interrompido, a provedora do lar (e razão de viver de outros personagens) também. Mas, antes de falecer, Júlia se revelou ambiciosa, foi contratada por outra empresa e tentava acompanhar as novidades — “moedas nas mesas de bares” — que fervilhavam em Copacabana: dos textos de Rubem Braga às canções de Villa-Lobos, dos poemas de Drummond e Bandeira a notícias divulgadas por Ibrahim Sued. O Brasil, que parecia querer dar certo, e o relacionamento dentro daquela família de classe média, tomou rumos inesperados.

Os personagens de Desengano estão, durante toda narrativa, no impasse. Eles agem com a finalidade de atingir uma situação confortável, mas o impasse permanece. Júlia, uma vez viúva, imagina que Beto poderia proporcionar algo que ela não havia encontrado em seu casamento anterior. Mas, passado pouco tempo, a relação se revelou insuficiente e ela procurou em um amante o algo mais (inatingível). Beto, ignorado por Júlia, encontra um paliativo na filha dela, Ana — que desde a infância fora apaixonada por Beto. O filho de Júlia, Neno, se muda para São Paulo para estudar direito e para fugir da situação familiar. Ana decide se afastar de Beto depois de ter alimentado expectativa de dias melhores e só ter encontrado migalhas, ou nem isso. Todos os personagens de Desengano são vencidos pela vida — assim como o país do futuro também é.

Trilha sonora
A longa, e fluente, narrativa de Carlos Nascimento Silva também traz os pontos de vista de cada um dos personagens, seja em capítulos individuais ou em um mesmo capítulo. O narrador contrapõe o que cada personagem pensa a respeito de um mesmo fato, ou a sua atitude. No momento em que a relação de Beto e Ana já não se sustenta, o leitor e a leitora têm acesso ao que cada um deles está pensando sobre o assunto. “Beto ficava procurando buracos na personalidade da mulher. Buracos, falhas, defeitos de fabricação, de manutenção, era tudo que ele buscava”. Em seguida, é apresentada a reação de Ana. “Foi por esta época que Aninha resolveu rebelar-se contra o ‘você manda e eu obedeço’ que se instaurara desde seu primeiro ano de vida e se prolongara pelos tempos afora.” E não apenas na situação mencionada anteriormente, mas, desde o início do relacionamento entre Júlia e Beto, a narrativa faz esse jogo, o que reforça, para os leitores, o mal-estar, a permanente falta de sintonia entre corpos que às vezes se entendem, mas almas em constante conflito.

Os personagens de Desengano, todos da classe média, não são, por exemplo, politizados nem apresentam discurso. Eles se comunicam da maneira mais comum possível, entre a repetição de uma frase feita e outra notícia de jornal. Nos momentos em que os personagens vivem situações emocionais, a narrativa se vale de um recurso: letras de canções populares se tornam a trilha sonora e tradução do que eles sentem. O início da relação entre Júlia e Beto é apresentado por meio da letra de Fascinação: “O teu corpo é luz, sedução”. O rompimento entre Ana e Beto é anunciado pela voz de Dolores Duran: “Eu desconfio/ que o nosso caso está na hora de acabar/ Há um adeus em cada gesto, em cada olhar/ o que não temos é coragem de falar”.

Além de letras de canções populares — o que revela aspectos do imaginário do período ficcionalizado —, há, em diversos momentos de Desengano, referências a um escritor específico: Nelson Rodrigues. O autor de obras teatrais e frases célebres é, realmente, constante neste projeto literário de Carlos Nascimento Silva. Em determinado momento, Júlia conversa com Augusto, seu chefe e futuro amante, a respeito de idéias rodrigueanas:

— Olha, Júlia, sadomasoquismo é assunto complexo, delicado. Não sei se seria próprio uma conversa nossa sobre isso. […]

[…]

— Compreendo sua preocupação, doutor Augusto… com a maldade dessa gente, quero dizer. Mas eu nunca contaria uma conversa nossa, sobre assunto tão delicado. Sabe, eu mesma devo me casar nos próximos meses… É que não pude ver o Vestido de noiva, […], mas li, emprestado, A mulher sem pecado, e fiquei ainda mais curiosa.

Em outros trechos de Desengano, assuntos matéria-prima rodrigueanos também são mencionados, direta e indiretamente. Além disso, um dos temas centrais do livro de Carlos Nascimento Silva — relações sexuais dentro de uma família — se traduz em um diálogo com Nelson Rodrigues.

Desengano, depois de um início surpreendente, um desenrolar fascinante, se revela, ao final, bem-sucedido naquilo que se propõe: apresentar um drama humano sintonizado com a trajetória histórica do país. Os personagens, e o país, se modificam, mas a frustração permanece. Para todos. Carlos Nascimento Silva direcionou seu olhar para um período, de certa forma, recente, e, por meio da lente do distanciamento, e, munido de recursos literários, construiu uma obra de ficção de que ilumina o passado e o presente. Um romance feito com perícia e arte — um enredo envolvente e inesquecível.

Desengano
Carlos Nascimento Silva
Agir
207 págs.
Carlos Nascimento Silva
Nasceu em Varginha (MG), em 1937. Seu primeiro romance, A casa da Palma (1995), recebeu o prêmio da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Foi traduzido na Alemanha com o título Das Palmenhaus. Ao todo, vendeu mais de 10 mil exemplares. O romance Cabra-cega ganhou o prêmio Jabuti em 1999. Em 2003, publicou Vale da Soledade: a natureza do mal.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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