Quando li a crítica de Domingos Pellegrini ao Dom Casmurro de Machado de Assis (Rascunho, dezembro/05 # 68), fui tomado por um sentimento ambíguo. Feliz por considerar, como Susan Sontag (Conversations with Susan Sontag, University Press of Mississipi), que “os grandes livros não precisam somente de defensores e transmissores, para permanecerem vivos eles também precisam de adversários. As idéias mais interessantes, no final das contas, são heresias”. Pode ser que nem toda unanimidade seja burra, mas certamente é irritante. Por outro lado, enquanto avançava no texto ia ficando mais e mais decepcionado. A abordagem escolhida pelo autor foi, a meu ver, completamente equivocada. Uma abordagem moralista. Que, adiante-se de passagem, acabou por se transformar em tiro no próprio pé.
Vejamos as três “acusações” a que Dom Casmurro foi submetido no tribunal de Pellegrini. 1) Bentinho seria homossexual; 2) Bentinho seria mau-caráter e portanto um exemplo inadequado para colegiais; 3) o livro é tedioso.
Quanto à primeira acusação, sinceramente, acho que não vale a pena gastar latim com isso. Aliás, esse é o motivo pelo qual estou me metendo a retrucar Pellegrini, mesmo não dispondo das credenciais necessárias para defensor oficial de Machado de Assis. Acontece que a ‘crítica da crítica’ publicada no último Rascunho, de autoria de Hamilton Alves, foi quase tão equivocada quanto o que a motivou. Confessa que se fosse ele o editor sequer a teria publicado, e ainda por cima morde a isca moralista e gasta um bocado de latim tentando provar que Bentinho não era gay.
A segunda é a mais intrigante. Condenar um livro por ser o protagonista supostamente mau-caráter soa tão anacrônico que é difícil acreditar que tal condenação venha de um escritor. Parece mais coisa de um fanático religioso qualquer (de qualquer religião, pois o fanatismo os iguala). Me fez lembrar o julgamento (literal) e conseqüente condenação de Naked Lunch, de William Burroughs, pelo tribunal de Boston (depois absolvido pelo de Massachusetts). Dá pena ver escritores como Allen Ginsberg e Norman Mailer, testemunhas de defesa, responderem a perguntas do tipo “Você acha que uma das importantes funções de um escritor é ser útil à sociedade?” e “Poderia enumerar passagens do livro com importância social?”. Troque “sociedade” por “partido” e se sentirá na Rússia stalinista. Que diabos! E desde quando a arte deve se preocupar em ser “útil”? Sendo arte, automaticamente será útil, já que instigará mentes, incomodará (ou estabelecerá) padrões. Qualquer exigência de utilidade além dessa é ilegítima. (Em tempo: Naked lunch foi acusado de ser obsceno. E é mesmo! E ruim. Mas não é ruim porque é obsceno, é ruim porque é cheio de barulhos e interferências, a propósito, retirados da brilhante versão cinematográfica de David Cronemberg).
Não sou ingênuo a ponto de afirmar que toda obra de arte é eticamente neutra. Mas também não sou ingênuo a ponto de acreditar que determinada obra comporta uma única interpretação e submeter esta interpretação a uma tábua de virtudes para ver se passa sem prova final. Não só as interpretações possíveis de uma boa obra de arte são inúmeras, como inexiste uma tábua de virtudes funda (ou rasa) o suficiente para comportar uma teoria moral normativa satisfatória que carimbe essa obra como “virtuosa” ou “aconselhável para colegiais”. E por falar em colegiais, vamos ao ‘tiro no pé’.
“Mas não posso deixar de me parabenizar por não ter lido Dom Casmurro nem no colegial nem na faculdade, para trabalhos escolares que consegui enrolar ou assinar grupalmente”, escreve Pellegrini no quinto parágrafo. Como pode uma pessoa confessar que, quando colegial, assinou trabalhos dos quais não participou efetivamente, e desaconselhar a leitura de um determinado livro para colegiais porque o protagonista é mau-caráter? Se eu fosse cometer o mesmo erro de Pellegrini e julgá-lo moralmente, poderia dizer que assinar trabalhos sem merecer é uma demonstração inequívoca de falta de caráter e perguntar se essa falta de caráter lhe é inata ou adquirida pela leitura de “Melville, Faulkner, Hemingway, Graciliano, Erico, Escorza, Guillén, Henry James e Henry Miller”. Mas não vou cometer esse erro, pois não sou perfeito. Certamente cometi meus muitos pecadilhos, pecados e pecadões no colégio e fora dele. Não sou besta de jogar pedra no telhado de vidro dos outros, já que tenho muito apreço pelo meu próprio.
Por último a acusação de ser Dom Casmurro tedioso. Aqui o leitor vai me desculpar, mas vou me valer de outra muleta intelectual, Schopenhauer, para quem existem dois tipos de escritos entediantes, aqueles em que o tédio é objetivo e aqueles em que é subjetivo (valho-me da edição da LPM para Sobre a escrita e o estilo, com tradução de Pedro Süssekind). O objetivo seria culpa do autor, que não teria “nenhum pensamento ou conhecimento perfeitamente claros para comunicar”. Já o subjetivo seria culpa do leitor, “que se baseia na falta de interesse pelo assunto” e indicaria uma “certa limitação”. Acredito que Pellegrini confunde seu tédio subjetivo com um tédio verdadeiramente objetivo. Achar um livro chato não o torna automática e universalmente ruim, a não ser que o leitor seja um megalomaníaco (para mim Ulisses e Finnegans wake são chatérrimos, mas nem por isso saio por aí a desmerecê-los).
A despeito de minhas críticas à crítica de Domingos Pellegrini, considero extremamente saudável que ela tenha sido publicada e por esse motivo parabenizo os editores do Rascunho e — por que não? — também o autor. Espero que isso se repita. Que outra unanimidade será a próxima vítima? Guimarães Rosa? Carlos Drumonnd de Andrade? João Cabral de Melo Neto? (Êpa! Esse não! Se alguém falar mal desse, eu jogo uma bomba no jornal).