16. Palavras de Krishnamurti (e vozes do saque)
No original em espanhol que a biblioteca do museu me forneceu em “cópia eletrostática” com um carimbo de COPY (coisa de ingleses), Krishnamurti dizia: “La detención de la respiración se observa bien bajo el agua o bajo tierra donde la cantidad de aire es limitada. Creo que este es el método más claro y convincente para demostrar que un fenómeno como el Samadhi existe en realidad”.
Tudo bem. Sei agora (mais ou menos) o que é Samadhi — mas o que tem isso a ver com o conto de Casement (se é realmente um conto)?
Não vejo a conexão do texto com quaisquer dos significados da palavra vinda do sânscrito que é a língua antiga da Índia: “quando k.r.s.na andava pelo mundo, dizem que só se falava o sânscrito. Isso porque só havia o povo ‘ario’ no planeta (a palavra sânscrita aarya significa ‘nobre, de boa familia’) e esse povo muito remoto teria criado a língua perfeita” (que é o que sa.msk.rta quer dizer em sânscrito, claro).
Certo, certo. Tudo isso está muito bem, mas não ajuda a entender o significado oculto (supondo que exista) no fundo, por trás ou na intenção, mesmo longínqua, do experimento ficcional de Roger Casement, exercício estranho que acompanha o fio de uma ação mantida mais ou menos fora da vista do leitor, através do artifício de fazê-la supor já entendida, etc. É isso? Trata-se do quê, aqui? Das virtudes de um assassino modesto? Parece que ele mata, “honradamente”, alguém que não fica se sabendo bem… Melhor dizendo, o texto flui para trás, sem esclarecimento, um rio secreto no alto de uma montanha que não poderia ter água a subir para o seu pico de neve pintado no biombo atrás do qual Sir Roger “oferece seu âmago ao Buda” — como um leitor anotou, com grosseria, à margem da reprodução do manuscrito que pode não ser autêntico, apesar de estar depositado na biblioteca do museu abarrotado do saque das ruínas de antigas civilizações, roubo oficial e operado pelo império colonialista inglês com o mesmo faro dos saqueadores tagarelas de uma fita de áudio gravada na escuta comunicações em Bagdá, em 2003, e que apareceu hoje transcrita no The Guardian, não em sânscrito antigo, mas em inglês atualíssimo (“Operação Saque Organizado”), de sacripantas à solta no meio da loucura promovida por Bush & Blair, ou Debi & Lóide, conforme continuam mais conhecidos por aqui:
“… garantindo-se, este jornal, de todas as provas possíveis (nas circunstâncias) da autenticidade inquestionável do material de áudio — submetido, que foi, à perícia rigorosa dos técnicos acima citados —, o que nos tornou seguros da origem, idoneidade da fonte e da natureza mesma do que aqui divulgamos com exclusividade. Leiam e julguem os leitores por si próprios, conforme a transcrição:
— Use a freqüência segura, porra.
— Desculpe. Agora?
— Agora. Pro resto do mundo, só tem iraquiano aí. Onde vocês estão?
— Na sala… acádio-sumeriana, eu acho.
— Acha? Em qual delas? “Acádio-sumeriano” são três.
— Eram. Eles mexeram nelas, pra tentar guardar. Tem umas caixas muito boas, vazias. Não tem nada dentro.
— Podemos até usar…
— Não, não podemos. Tem “Irak Museum”, bem grande. Em inglês e em árabe.
— Então, deixa pra lá. Temos as nossas.
— Uma pena. Estas são muito boas.
— Mas, espere aí. Vocês não terminaram com as salas de Ur, não é possível. Voltem lá, pra ter certeza.
— Tudo da “lista de Ur” já está com a gente.
— A peça “negra” de Wooley, inclusive?
— Também. É uma adaga esquisita.
— Espada. Ou punhal longo, de sacrifício. É isso que está aí?
— É. Mas parece que vai se esfarelar só de se pegar nela.
— Não é pra pegar…
— Estamos com as luvas.
— Foi de Abraão, pô. O que você queria?
— Mas fique sabendo: são muito frágeis…
— Alô!
— As duas…
— Alô!!
— É interferência. Tá me ouvindo? Que calor, o ar não funciona.
— Tem muita poeira?
— É, tem. E agora tem mais, depois que derrubamos os capitéis no chão. Alguns espalharam uma poeira fina…
— Vocês estão respirando pó de cinco, seis mil anos, porra. Espirro nobre, homem.
(Tosse)
— São lindas.
— O quê?
— As coisas de Ur. Os punhais… a harpa com o touro todo em lâmina de ouro!
— Cuidado com a caixa da harpa, é de madeira.
— Mas com faixas de ouro, lápis-lazúli e… calcário vermelho?
— Claro que é. É só ler na descrição das fotos que vocês têm aí.
— E as duas espadas de sacrifício…
— Você disse “duas”?
— São duas.
— Não pode ser. Havia só uma. A de Abraão.
— Tem duas, exatamente iguais. Uma, mais conservada.
— Não há cópia, cara. Pouca gente sabia que o museu tinha isso…
— Não falei em cópia. Não tem cópia aqui dentro, eu não sou burro.
— E então?
— Mas encontramos duas. Dois restos de lâminas…
— Wooley só encontrou uma, nas escavações.
— Tem uma legenda, aqui.
— Leia.
— Diz a data, o que é, e que “Lawrence encontrou a segunda”…
— T. E. Lawrence?
— Deve ser. Ele trabalhou com Wooley, não foi?
— Não em Ur. Lawrence trabalhou com Wooley em Carchemish, nas ruínas hititas. Nada a ver.
— Bem, é o que está escrito aqui, “Lawrence encontrou a mais antiga”, e cita: “a espada que conduz à morte, conduz também à pureza”. O que significa?
— Sei lá. Estamos conversando como duas tias velhas, uma em Bagdá e outra no Kuwait, olhando para mesquitas em forma de cogumelo.
— Temos tempo.
— Não todo o tempo do mundo. Os outros, estão onde?
— Aqui na “acadiana”?
— Quem está nas outras salas?
— O “Moma” e o judeu trabalhando na embalagem das coisas de Ur.
— Se partir a asa de um vasinho sequer, a gente não paga.
— Tamos sabendo.
— E os outros?
— Estão aqui comigo. Vasculhando e conferindo. Moussa está na entrada. Ele fala árabe e está armado.
— A cabeça de Sargão, a de orelhas cortadas, estava aí ou na reserva?
— Na reserva. Faltam os olhos, você sabe.
— Já foi achada assim. Cuidado com as terracotas. São as mais antigas, isso até você sabe.
— Você não imagina o calor. Estamos embrulhando os selos de cilindro, neste momento. Uma porrada deles.
— Também são muito frágeis. Todo cuidado é pouco.
— Fique frio.
— É o que estou, aqui no ar-condicionado, apartamento cinco estrelas, hotel das Arábias. Tomando uma cerveja.
— Que inveja! Aqui tá um forno. E bomba lá fora…
— Já acharam o “Bocal de Libações”?
— Qual?
— O “Bocal”, de calcário. Foto 16. Todo em relevo, com umas cabeças de animais…
— Ah, já. Os animais inteiros, embaixo, é isso?
— Isso. Terceiro milênio antes de jota cê. Já tem cliente certíssimo. Texano. Pagará o que a gente disser.
— Linda é a estatueta feminina do templo de Abu. Parece uma escultura de Giacometti.
— Ainda mais bonita. Também tem cliente certo…
— Espera um pouco. Parece que…
— Hein?
— […]
— Alô? Alô!
— Oi, cara. É que teve um… acidente aqui.
— O que foi?
— As peças…
— Quais?
— As de Abrãao.
— O que foi, cara, diz logo!
— Caíram. A gente estava…
— O que foi que caiu? A espada do sacrifício?
— As duas.
— Caíram?! A peça mais…
— Porra, é. Caíram! Aqui tá uma confusão, cara. Tem os iraquianos, também, que ficam enchendo o saco, parece que estão meio arrependidos…
— Os porras estão recebendo muito bem para fazer a “figuração”. Mas, a espada, cara!, logo a porra do punhal…
— Era só uma lâmina carcomida. Duas, aliás, em péssimo estado…
— Meu Deus! Vocês não sabem o que… E como ficaram?
— Viraram quase pó. Muito frágil…
— Que merda. Praticamente foi por elas que montamos o circo.
— Junto os cacos?
— Esfarelaram-se… de fato?
— Pode se dizer que sim. Deve ser uma liga primitiva e aqui tá muito seco, o museu foi desligado desde março, tinha água na reserva técnica, infiltração de cima, talvez tenha caído qualquer coisa lá, na última semana…
— O museu tava intacto, cara. Nós é que estamos…
— Já era. Vou ter que desligar. Os caras tão armando de novo…
— Quem?
— A turma que veio, a figuração, porra. Os “saqueadores” iraquianos…
— Os filhos da puta tão ganhando!
— Tão dizendo que quebramos Nimrud…
— Diz a eles que estamos pagando, e vamos quebrar o que for preciso. Tem de ficar com cara de saque.
— Quebramos um bocado, já.
— Pois quebrem mais, as peças grandes. E as peças da lista vocês tragam sem quebrar mais nenhuma, que merda. Esta operação não foi barata, pô…”
17. Intermezzo
Dentro do museu-símbolo de Londres, pude sentir muito bem o tremor sutil que a grande manchete do Guardian — com o subtítulo GRAVAÇÃO REVELA COMO MUSEU DO IRAQUE FOI SAQUEADO — causara no interior das salas, naquela quinta-feira. Um arrepio descia entre as colunas da venerável instituição britânica, frisson intramuros, de museólogos chocados… com o quê? Com um saque às escâncaras, um roubo cínico comandado de fora do Iraque, há quase dois anos, por traficantes especializados?
Ali estava um bando de larápios bem informados, cultos, invadindo o importante Museu de Bagdá, desprotegido, enquanto soldados americanos montavam guarda aos poços de petróleo até com tanques. As faces coradas dos gentis ingleses do Museu Britânico empalideciam na tarde, e, no entanto, estavam todos cercados pelos produtos de saques e expropriações em nome da ciência, operados, durante mais de 150 anos, por compatriotas ilustres, sábios de chapéus de cortiça e pesquisadores de farda nos sítios arqueológicos da Mesopotâmia e do Egito, da Arábia e da Palestina, da Turquia e da Grécia desfalcada até dos mármores “Elgin” — que vinham a ser a parte principal do friso do Parthenon, levada para qual museu de Londres (adivinhem, por favor)?…
Naquele ambiente de claustro da história, todos transpareciam o choque (murmuradamente embora, ou num vago semblante de discreto aturdimento pelo que acontecera aos tesouros arqueológicos iraquianos), perante a desfaçatez dos ladrões se intercomunicando sob as bombas…
Era desconcertante, para eles, a notícia serelepe, os detalhes daquela conversação objetiva sobre relíquias de extrema fragilidade e preços estratosféricos, tudo no jornal da manhã abalando senhoras delicadas e senhores da reserva técnica do museu londrino abarrotado de roubo sob outro nome. Diverti-me imenso, vendo mudar o ar calmo do dia anterior, enquanto todos aqueles guardiões londrinos da espoliação em nome da “exploração científica” se sentiam inatacáveis no seio do MB inexpugnável, após ter, a querida instituição, promovido o patrocínio de arqueólogos tão brilhantes quanto metódicos no saque disfarçado de tesouros, levado a cabo por escavadores notáveis como Layard, Petrie, Evans, Wooley, Carter, T. E. Lawrence (trabalhando nas ruínas hititas de Carchemish, na juventude), e, isso, para citar somente os estudiosos britânicos, embora franceses, alemães, italianos, russos e americanos tenham também armado acampamento nos vales e nas necrópoles, com as barracas fornecidas de caixas de vinho importado e sombrinhas protetoras para as senhoras trazidas às escavações escaldantes, a fim de admirarem reis que elas jamais teriam defrontado, na etiqueta do mundo antigo. Múmias, túmulos, deuses e sábios, oh, tudo era tão “excitante”, na fase pioneira da arqueologia, que é forçoso pensar numa feira de altos estudos, privada e refinada, levantando lonas de circo em lugares antigamente sagrados que todos pisavam com o espírito entusiasta da ciência positiva e dos espetáculos de magia e homens-elefantes — além de boa bebida e comida quente, preparada nas cozinhas ambulantes que eram parte das instalações de pesquisadores independentes, bem financiados, ou, então, a serviço de museus tão cobiçosos como o britânico…
Senhores, eis aqui os hipócritas ingleses, a exercitarem a sua característica mais tradicionalmente querida — seja na inspeção de algum colégio sombrio, num romance de Dickens, ou seja onde diabo for, Sir, foi o que pensei, olhando, pelas altas janelas, as suas expressões compungidas, ao ler a reportagem-denúncia do The Guardian (que afirmava ter obtido a cópia da fita na esteira do desmoronar da ocupação ianque, quando Bagdá provou ser armadilha fatal para os marines e os garotos de Tony, muito longe de casa).
Nas dependências daquele museu, nosso olhar se tornava reverente para com o acervo monumental de peças — portas, tumbas, esculturas gigantes, vasos, armas, moedas, selos, papiros e mármores antigos — que nada mais eram do que o resultado da expropriação de bens culturais do Oriente (na sua maior parte), organizada para o orgulho da Europa.
Eu não estava tão estarrecido (também comprara o meu Guardian) com o modus da operação cínica levada a cabo pelos traficantes do mercado negro de antiguidades invadindo o Museu de Bagdá como se fosse a “invasão” de uma turba bagdali saqueando o próprio passado. E nem podia estar, atento a que não existia museu europeu capaz de “olhar nos olhos” daquela desgraça, ouvindo a fita como se ela fosse muito diferente da ação de arqueólogos de várias gerações — durante um século, pelo menos —, no antigo Crescente Fértil, no Oriente Médio e noutras regiões do planeta cansado de escavações enlouquecidas, com os “sábios” por sua vez se movendo como numa parada científica, em aposta de quem chegaria primeiro aos despojos mais notáveis. Desvendar o passado importava menos do que fazê-lo instrumento do espanto dos patrocinadores das pesquisas, dos leitores de jornal e dos clientes de antiguidades contrabandeadas do inventário dos achados dessa rapinagem oficializada através de alvarás e permissões compradas nas ante-salas das autoridades locais, muitas das quais muçulmanas, para quem o mundo antigo não passava de uma idade de ignorância pagã e brutal, no meio do ouro… Na posse dos alvarás, os europeus haviam se lançado à disputa das ruínas alheias — enquanto não existiam os arqueólogos nativos, nascidos nos espoliados países, sábios locais finalmente preparados para o estudo e a preservação do passado das suas regiões.
18. Breve contestação do Dr. Johnson
Estava eu, então, cansado da vida (porque estava já cansado de tudo), naquele meu terceiro dia de frio londrino de outubro?
Você pode não se cansar da Necrópole colorida — assim tão cedo —, porém se cansa, muito rapidamente, de carneiro no almoço e ovelha no jantar (se pensam que é diferente). Talvez fosse possível ficar cansado de ambos, precocemente, na cidade onde são mais consumidos, junto com salsichas apimentadas pela manhã, e ainda não estar cansado da vida cheia de surpresas?…
A conversa sobre o saque do museu iraquiano — do modo organizado como se dera, há dois anos, com pleno êxito — prosseguia como assunto de conversas no pub vizinho do museu, o Tavern simpático que Karl Marx costumava freqüentar (não avisem aos turistas). E Casement, alguma vez estivera aqui?
— Sir?
— Casement, ele fez alguma pegação comunista aqui dentro?
O jovem garçom não sabia, é claro, quem fora o traidor ou o patriota irish Roger Casement. E não gostara da gíria cockney, meio antiquada, que eu usara para “pegação” (era uma garçom gay punk), lembrando-me dos entusiasmos de Sir Roger, nas observações quase diárias sobre os “meninos de aluguel”, os estivadores e marinheiros citados pelo primeiro nome, quanto haviam recebido e quanto mediam: “o maior desde aquele de Lisboa, em 1904”, etc.
Era curioso pensar que fora o deslocamento de Casement para a esfera dos postos coloniais, como funcionário público, o fator preponderante na derivação… Bem, ali está ele, olhando para baixo das coisas, no centro de uma espécie de queda livre que inclui os “prazeres de encosta abaixo” e sua exigência de justiça, um peso na balança da alma. Soa estranho? Li a respeito do que, acaso, poderia tê-lo levado para a “militância revolucionária” — na linha mais horizontal sobre “o Congo”, “o Brasil”, as frases alinhando os motivos, naquela forma burocrática de um ensaísta tentando explicar uma motivação íntima, uma descoberta retardatária, a surpresa de encontrar no amor dos homens rudes uma involuntária explicação política delicada. Eles escrevem: “o fato é que os fatos haviam lhe mostrado como funcionava uma parte do colonialismo impiedoso”, e isso é o modo de ver as coisas com a luva cirúrgica das palavras afastando a realidade, sem compreender porque alguém resolve seguir mais do que a tal convicção íntima que toma “a forma de um dorso castigado”, conforme o poema de Wilfrid Blunt cujo centro misterioso refere aquela sua visão mística (e não sexual) de “povos libertados”, como sempre entendi que fosse o significado de “S. A.”, no poema sensual de Lawrence: Amava-te. Por isso tomei nas mãos essas ondas de homens/ E a minha vontade eu inscrevi entre as estrelas/ Para ganhar-te a Liberdade, o solar de sete pilares…
Blunt também estivera no Brasil, em 1867, de passagem para assumir seu posto diplomático na Legação britânica em Buenos Aires. Para Elizabeth Longford — autora da biografia A pilgrimage of passion, visão muito acadêmica de uma vida fora das regras — ele não tinha especial interesse em conhecer o Rio, mas se detivera, na cidade, para visitar Isabel Burton. Um belo homem vestido como o personagem de um romance (teria Lawrence se inspirado nele?) desembarca no porto de Santos, procura pela mulher que ele ama, fica sabendo que ela se encontra na capital do “país misterioso”, e não perde tempo: dirige-se para lá, a fim de declarar o seu amor, de novo, pela jovem casada com “um bruxo capaz de fazer infeliz qualquer moça honesta e pura.”
Quem é o “bruxo”?
É Richard Francis Burton, o orientalista que, juntamente com John Hanning Speke, partiu em busca das nascentes do Nilo, em 1856, numa aventura muito próxima da que Joseph Conrad descreve no Coração das trevas. Soldado, cientista, escritor e explorador, o famoso marido de Isabel nasceu em Torquay, no sudoeste da Inglaterra, filho de pai irlandês. Gosto que esteja soando assim, jornalístico, na minha mente abarrotada de informações, enquanto eu tomo sopa e atravesso as ruas da city, pensando que estou livre, perfeitamente livre, aqui, de cruzar com…
Burton. Eu falava de Burton. Talvez dele tenha herdado a visão nada lisonjeira que manteve, a vida toda, sobre a pátria vista dessa maneira: “A Inglaterra é o único país onde nunca me senti em casa”.
Leia qualquer verbete escrito com enfado. Eles dirão o mesmo, todos eles: “viajante e membro da Real Sociedade Geográfica Inglesa, Burton falava dezoito idiomas fluentemente, e tinha um interesse não menos que vasto, cobrindo largas áreas do conhecimento. Era, ao mesmo tempo, um renascentista tardio, um elizabetano de temperamento e um vitoriano no apego às ciências”.
Cinco anos após a aventura africana, Sir Richard entrava para o serviço diplomático inglês e, depois de outros postos, viria para o Brasil em 1865, designado para o consulado de Santos.
Acompanhado da mulher — Isabel Arundell, a autora apaixonada de The life of Captain Sir Richard Francis Burton —, o cônsul errante ficou quatro anos no posto e, da cidade paulista, não poucas vezes viajou para o interior do país, produzindo duas importantes obras de viajante: Highlands of Brazil e Letters from Battlefields of Paraguay, 1870.
Wilfrid Scawen Blunt — o celebrado poeta vitoriano e também orientalista de firmes posições contra o imperialismo — não gostava de Burton (o que talvez seja dizer pouco). Blunt, a elegância em pessoa, ou “a justiça encarnada em forma de gente” — segundo Dante Gabriel Rossetti — tinha mais do que cismas a respeito do colega. “Sei apenas que é um homem capaz de tudo, de grande e de pequeno. Tenho aversão pelo modo como ele pode transformar as coisas, as razões mais limpas em motivações sujas” — isso é o depoimento mais lisonjeiro que consignou, em carta, sobre o esposo de Lady Isabel, objeto do seu ciúme. Quanto a ela, todos dizem que despertaria paixão mesmo num frade de pedra, pela beleza e por inteligência supostamente “rara nas mulheres” (é a primeira metade do século 20 falando). Isabel Arundell tornou-se conhecida em função da obra do marido, porém essa é uma injustiça a mais, oriunda dos valores daquele mundo regido por uma mulher (Vitória) para ser o triunfo de egos masculinos a serviço da glória imperial prestes a se transformar em ferro dourado que o mar oxida. Mulher admirável, a senhora Burton mereceria ser conhecida por si mesma e não apenas como a esposa fiel do viajante e explorador de Meca (foi ele o primeiro não-muçulmano a fazer a peregrinação a Caaba, vestido de árabe sobre a pele queimada pelo sol do deserto. Não foi identificado como ocidental, estrangeiro, infiel. Falava sem sotaque e fazia, pontualmente, as orações prescritas no Livro).
Além das obras de tradução, ela é autora de um interessante diário de viagem — bem menos conhecido do que qualquer obra do marido —, o qual capta, com muita perspicácia, o Brasil da segunda metade do século 19, em descrições vivazes, “que primam pelo colorido” (oh, o elogio tímido)…
Seu olhar não deixa escapar nada, com aquele poder de penetração de uma inglesa observando tudo, enquanto parece (apenas parece) meio mosca morta. Qualquer um pode vê-la, ainda, no tombadilho do navio que balançou o tempo todo, durante a viagem para o país que ela tenta descrever o melhor que pode, firmando a pena na mão branca (que ela morde um pouco, por causa da enxaqueca), enquanto a luz crua do Brasil, lá fora, não dá trégua à sua dor de cabeça, toda vez que ela sai do camarote e se aventura pelas docas:
“No dia 30, alcançamos a Bahia. Mulheres queriam me vender pequenos bebês negros no mercado, por dois xelins. Zarpamos no mesmo dia e tivemos tempo fechado […]
Santos era apenas um pântano de mangue e, em muitos aspectos, exatamente como a costa Oeste da África, a estrada lamacenta e difícil. Richard tinha vindo antes e inspecionara o lugar antes de minha chegada […] Depois de ficar lá algum tempo com Richard, subi para São Paulo, onde encontrei disponível um velho convento (na rua do Carmo, n.º 72) cuja frente dava para a rua, e se estendia por um longo trecho aos fundos. Imediatamente fiquei com ele, limpei-o, pintei-o, mobiliei-o e empreguei escravos, pagando tanto a seus proprietários quanto a eles próprios, como se fossem homens livres […] Os brasileiros são para os portugueses o que os americanos são para nós, ingleses. O português é pesado. O brasileiro é leve, ativo, nervoso, spirituel. Tínhamos uma personagem curiosa em São Paulo. Era a Marquesa de Santos. Ela era uma beldade e a favorita, na época, do pai do então imperador; levava uma vida muito suntuosa e conturbada. Foi finalmente expulsa pela imperatriz (dizem) e mandada para Santos com uma pensão vitalícia; morava numa pequena casa muito próxima da minha. Eu costumava visitá-la com muita freqüência. Era uma verdadeira “grande dame”, muito simpática, muito interessante, cheia de histórias sobre o Rio, a corte, a família imperial e os acontecimentos daquela época. Ela fora obrigada a adotar os hábitos do interior; da última vez que a visitei, recebeu-me “en intime” em sua própria cozinha, onde se sentou no chão, fumando não um cigarro, mas um cachimbo. Tinha belos olhos pretos, cheios de simpatia, inteligência e sabedoria. Ela era algo de grande interesse para mim naquele lugar fora do comum…”
Blunt fica bem satisfeito ao saber que Sir Richard está em viagem “pelo interior do país” — o Sertao, conforme chamavam, com sotaque —, embora isso determine que não possa visitar Isabel sem a presença de uma terceira pessoa, do sexo feminino de preferência, em hora ainda clara e no ambiente de uma sala onde apenas se toque o cravo ou se fume olhando para a chuva que chove “com raiva”, como diz a mulher que ele encontrou com rugas pequeninas no canto dos olhos bem observados.
Afinal, não se podia viver com Richard Burton “sem envelhecer pelo menos sete em cinco anos” — dirá, mais tarde, o homem que, ainda em vida, foi reverenciado por William Butler Yeats, Ezra Pound, Richard Aldington e (sempre ele) T. E. Lawrence. Estamos andando em círculos à volta do seu nome, das suas aparições inesperadas, mas não faz mal. Blunt, naquela ocasião, era o muito estimado senhor de Newbuildings Place, o poeta de vasta cabeleira branca “como uma coroa de neve sobre a fronte nobre do passado”. Recebeu os quatro jovens em 1914, uma figura ainda impressionante aos 74 anos, o marido infiel de Anne Isabella Noel (a primeira Isabel da sua vida), alguns saberão de quem se trata, os que amam os cavalos e sabem que ela, a filha única de Lord Byron, foi a introdutora da criação do puro-sangue árabe no Ocidente. Recordam-na, ainda, em Sussex, uma senhora parecendo a encarnação de alguma beldade pré-rafaelita, de olhar profundamente infeliz. A mulher que odiou Jane Morris desde a primeira vez que a viu (Anne Isabella tinha premonições infalíveis)…
Há uma foto de Yeats, Aldington e Pound ao lado de Blunt, três meninos respeitosos, parecendo intimidados pela lenda viva junto da qual estavam posando para a posteridade. Dos três visitantes de Newbuildings Place, só Yeats já possuía um passado, naquela altura, e é ele quem esboça um sorriso para a câmara que estranhamente — segundo Aldington — apagou inteiramente a quinta personagem que deveria ter aparecido no retrato…