Há exatos sete anos conheci Wilson Martins. Eu, que até então, só conseguia colaborar em periódicos da periferia aqui da província, fui — inesperadamente — convidado por Eledovino Basseto Júnior, na época, editor da revista Top Magazine, para fazer uma entrevista com o renomado crítico literário. Havia muito alimentava o desejo de produzir material de cultura. Vinha, como continuo a fazer, lendo sistemática e ininterruptamente obras literárias e textos críticos — e aquela situação se revelou a oportunidade precisa para dialogar, com um interlocutor extremamente capacitado, sobre o que mais me fascina: literatura. O encontro foi no apartamento do entrevistado, no sétimo andar de um edifício do bairro Juvevê, em Curitiba. Fazia sol. Mas o frio, tipicamente curitibano, também se fazia presente naquela manhã. Lembro que me foi oferecido suco de tomate, algo inédito para mim. Como inédito, e decisivo, foi aquele contato.
Eu havia preparado algumas perguntas, mas, a exemplo do que tem acontecido nestas centenas de bate-papos que venho produzindo para jornais e revistas nos últimos anos, a entrevista aconteceu como se dá uma conversa cotidiana. Um tema leva a outro; surge, então, um novo mote; e assim vai. Assim foi. Wilson Martins revelou aspectos diversos de sua atividade. Resultado: o material se transformou em capa da edição de abril de 1999 da publicação mensal, com o título Um profissional da leitura. E, ainda hoje, sete anos depois, costumo voltar àquelas páginas, a fim de reler trechos em que o crítico fala, por exemplo, sobre o início de seu mais intenso hábito: “Desde o curso secundário, eu fazia parte de um grupo que gostava de ler. No entanto, houve um fato acidental que teve grande influência posterior na minha carreira. Quando a Biblioteca Pública do Paraná foi instalada na rua Ébano Pereira, no centro de Curitiba, eu comecei a ler sistematicamente, por prazer, todos os livros que tinham lá. Às vezes, penso que li todo aquele acervo, uma vez que passava todos os dias, todas as tardes lendo. Foi uma base extraordinária e assim criei o vício da leitura, deixando de lado carnaval, passeio e futebol. Me tornei um profissional da leitura”.
Senso de humor. Repertório imenso. Memória. Articulação. Enfim, inteligência. As primeiras impressões, em relação ao entrevistado, iriam se confirmar posteriormente. Um ano depois daquela entrevista, fui convidado para trabalhar na Imprensa Oficial do Paraná, durante a gestão de Miguel Sanches Neto. De 2000 a 2002. Foi o tempo da coleção Brasil diferente, que recuperou e editou centenas de títulos e autores paranaenses, com destaque para a reedição da revista Joaquim, publicada originalmente de 1946 a 1948 por Dalton Trevisan; Dois repórteres no Paraná, de Rubem Braga e Arnaldo Pedroso d’Horta; A linguagem prometida, de Sérgio Rubens Sossélla; entre outras obras. Tive a oportunidade de conviver, não apenas com o intelectual que estava à frente do órgão público, mas também com Wilson Martins. Dialogava por telefone e pessoalmente com o crítico a fim de esclarecer detalhes, nomes, informações gerais, sobretudo, durante a produção dos seis volumes dos diários do crítico literário Temístocles Linhares (1905-1993). E, em cada conversa, assim como naquela entrevista de 1999, um aspecto se repetia: todo bate-papo com Wilson Martins se traduzia — se traduz — em aprendizado. Sobre a literatura. Sobre a vida.
O tempo seguiu. Saí da Imprensa Oficial do Paraná. Passei a colaborar em jornais, entre os quais, no Rascunho. Fui aprovado e concluí mestrado em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E, por meio de meu amigo Jamil Snege (1939-2003), fui apresentado ao sujeito que havia editado o clássico snegeniano Como eu se fiz por si mesmo. O escritor, editor e jornalista Fábio Campana me honrou com um convite para trabalhar, e conviver, na Travessa dos Editores, onde hoje atuo como repórter na revista Idéias. A relação com Wilson Martins se consolidou. Sigo a dialogar com o crítico literário pessoalmente e, também, na condição de leitor. Ele escreve semanalmente, há mais de meio século, nos principais diários do Brasil. Esteve por duas décadas nas páginas de O Estado de S.Paulo. Passou por O Globo. Atualmente, assina coluna às segundas-feiras na Gazeta do Povo e aos sábados no Jornal do Brasil. A editora paulista T. A. Queiroz reuniu esse conteúdo, que ele produz desde 1954, na coleção Pontos de vista — o que gerou 15 volumes. A série só foi interrompida devido à morte do editor. Agora, os textos críticos se tornam mais uma vez livro. O ano literário — projeto capitaneado pela casa carioca Topbooks — traz em seu primeiro volume as críticas veiculadas na imprensa em 2000 e 2001.
Guiar e conduzir
“O crítico é um sujeito que sabe ler e ensina os outros a ler”. Frase de autoria de um intelectual francês — citada por Wilson Martins naquela entrevista de 1999 — ajuda a compreender a sua atividade. Afinal, nas críticas semanais, ele está a guiar, conduzir, orientar o leitor. Nos textos publicados durante 2000 e 2001, reunidos em O ano literário, e mesmo no que ele publicou nesta semana, sempre há algo que modifica quem lê. Wilson Martins emite pontos de vista em todo e qualquer texto que produz. A partir de seu repertório, estabelece comparações. Interpreta fatos e temas. O crítico não se limita, por exemplo, a analisar apenas um livro, apesar de fazer isto também. Ele chega a incluir até mais de uma obra em uma única coluna. Analisa sim romances, livros de contos e de poesia, mas também publicações sobre sociologia, história, economia, etc. Na realidade, Wilson Martins está a discutir a literatura e a própria cultura brasileira. Cada texto dele se traduz em uma oportunidade para o debate. “Sempre entendi a crítica como um diálogo, ou antes, um ‘triálogo’, no qual se ouvem as vozes do Autor, com a obra, do Crítico, com a análise, e do Leitor, com o julgamento final, instituído a partir das perspectivas abertas pelos dois primeiros”. Em alguns casos, ele retoma questões tidas como verdade, desmistifica ilusões e, até mesmo, polemiza. “É preciso muita cultura para não dizer bobagem”. Palavras daquela entrevista que ainda ecoam toda vez que sai um artigo dele nos jornais. Cada linha, e entrelinhas, de um texto martiniano é carregada de erudição, reflexão, enfim, de sabedoria. Não por acaso, um livro em sua homenagem, com textos de Affonso Romano de Sant’Anna, Ivan Junqueira, Antonio Candido, Moacyr Scliar e Edson Nery da Fonseca, publicado em 2001, tem o título Mestre da crítica.
A atuação do mestre da crítica se destaca, também, pela responsabilidade em relação a informações. Recentemente, em mais de duas oportunidades, Wilson Martins solicitou que eu conferisse citações e documentos. E ele, realmente, fez — e faz — da pesquisa algo sistemático em sua carreira. Isto é possível conferir nas 494 páginas de Um Brasil diferente — ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná, que acaba de ser reeditado. Martins, nesta obra publicada originalmente em 1955, apresenta um contraponto a Gilberto Freyre e, a partir de minuciosa pesquisa, elabora uma leitura inédita do Estado do Paraná. Em recente entrevista a Irinêo Netto, publicada na Gazeta do Povo, Martins faz uma interpretação de seu Um Brasil diferente: “Esse livro teve, em certo sentido, a desventura de contrariar pontos de vista estabelecidos no Brasil. Todos estão convencidos de que o homem brasileiro é um produto do negro, do português e do indígena. Contrario essa idéia porque, aqui no Paraná, não houve escravidão como sistema econômico de produção. Houve escravos, o que é diferente. Historicamente, o Paraná teve tipos de cultura econômica que não exigiam grande número de trabalhadores: a pecuária, o mate, a madeira. Essa situação, ligada ao fato de que o Estado apareceu na história ligado à imigração estrangeira, impediu que a escravidão fosse necessária aqui. Tudo isso deu ao Paraná uma fisionomia diferente. Essas idéias contrariavam os lugares-comuns aceitos e o livro foi recebido em silêncio. […] Tanto que não tive críticas desfavoráveis — nem favoráveis. E espero até hoje”. Um Brasil diferente, título da obra, se tornou sinônimo de Paraná. A expressão é muito citada aqui na província. No entanto, facções acadêmicas — da província — até hoje implicam com a obra, sem apresentar contestação à altura.
“Na verdade eu nunca tive projeto nenhum. As coisas foram acontecendo e eu fui vivendo”. As coisas, efetivamente, aconteceram para o entusiasmado leitor. Formou-se em direito. Tornou-se doutor em letras. E, então, professor de literatura francesa na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Lecionou literatura brasileira em universidades norte-americanas. Um ano no Kansas, dois em Wisconsin-Madison e 26 em Nova York. E, durante a temporada no exterior, além de atuar como professor e dar seqüência à militância crítica, escreveu obras consideráveis, entre as quais, História da inteligência brasileira. Atualmente, aos 85 anos recém-completados, este paulistano, apaixonado pela leitura, segue em sua missão. Lê, praticamente, tudo que é editado no Brasil. Evita o convívio com autores, o que, naturalmente, lhe proporciona autonomia intelectual. Não faz parte de clubes ou grupos literários. Nem troca elogios. E, a partir de sua experiência, segue a manifestar idéias, iluminadoras também para as novas gerações, por exemplo, ao se posicionar contra o papel de mecenas e do Estado no incentivo à cultura: “Não há exemplo de grande escritor, em qualquer lugar do mundo, que tivesse dependido de incentivo externo para se expressar. Quem tem algo para fazer, faz. Se a pessoa tem algo para escrever, não precisa estimular. O iniciante precisa de obstáculos e desafios”.