Retrato impressionista

“Marca d’água” traz o olhar do poeta russo Joseph Brodsky sobre Veneza
Joseph Brodsky, autor de “Marca-d’água”
01/04/2006

Você pode não estar nem um pouco preocupado com o derretimento das calotas polares e a quase certa conseqüente destruição das cidades litorâneas ao redor do mundo (Nova York e Rio de Janeiro incluídas). Você pode até achar que se algumas destas cidades forem destruídas, isso significará uma vingança de Gaia, que as elegeu como as Sodomas e Gomorras dos tempos modernos. Mas na eventualidade de isso acontecer, tenha certeza de que a humanidade levantará luto oficial por pelo menos uma cidade: Veneza.

Veneza é singular. Não adianta dizer que Recife é a Veneza brasileira, que Amsterdã é a Veneza holandesa ou que São Petersburgo é a Veneza russa. Pode até ser que estas cidades (e outras tantas que tenham quase tantos rios e canais quanto ruas) lembrem a italiana Veneza. Mas nenhuma delas chega aos pés de Veneza. Sua singularidade no mundo e sua beleza seriam argumentos muito mais eficazes na luta contra o efeito estufa do que as mudanças climáticas.

Chega-se a Veneza de três maneiras. Uma delas é óbvia para quem pensa em uma cidade à beira-mar — na verdade, à beira-laguna, pois não é bem um mar aberto à frente de Veneza: de navio. Claro, este é um privilégio para poucos endinheirados, pois se necessita de uma boa carteira recheada para se fazer um bom cruzeiro pelo Mediterrâneo.

A maior parte dos turistas chega a Veneza de trem. Mas a chegada é por si só única também. Você está no trem olhando a paisagem pela janela e de repente ela desaparece para dar lugar ao mar, à água. Você não vê os trilhos, parece que o trem adquiriu a capacidade divina de caminhar sobre as águas. Quando você já está quase se acostumando com este fato, o trem perde velocidade e aparecem as paredes da estação de Veneza. O trem pára, você desembarca e, se tiver sorte, vê no último binário o Expresso do Oriente — sim, o verdadeiro e original — encostado, aguardando os próximos aventureiros. Já um pouco atordoado pelas situações inusitadas, você deixa o saguão da estação pela porta principal e não vê carros nem ruas, mas um grande canal, um rio praticamente, à frente, engarrafado de barcos de variados tamanhos. Há a ausência de um som ao qual já estamos acostumados, infelizmente. Depois de cinco minutos, você percebe que o silêncio, ou melhor, que o som abafado deve-se à água e à ausência de carros, motos, ônibus e caminhões. A sensação é impressionante e única, não há outra cidade no mundo que possa oferecer isso.

Por fim, e se as calotas realmente levarem para o fundo das águas Veneza e outras cidades, pode-se chegar a ela pelos livros. Um dos últimos guias para se chegar a Veneza lançado no mercado brasileiro é Marca-d’água, do russo Joseph Brodsky, prêmio Nobel de Literatura de 1987. Mas nem chegue perto do livro se você pretender encontrar ali uma descrição de seus monumentos mais famosos. Brodsky, felizmente, escolhe mostrar Veneza de uma outra maneira, muito mais ligada aos seus sentimentos em relação à cidade. Marca-d’água foi publicado pela primeira vez em 1992, e agora ganha uma excelente tradução de Júlio Castañon Guimarães e uma bela edição da Cosacnaify, simples e fiel ao que se propôs o autor, descrever sem definir.

Visão pessoal
Nossa imaginação é que visualiza a Veneza de Brodsky. Não saberemos se a Catedral de San Marco tem influências bizantinas ou mouras misturadas, se o Palácio Ducale é grande, pequeno, bonito ou feio, ou a cor das pedras da Ponte dos Suspiros. Não, Brodsky não nos contará. O autor nos presenteia com uma visão absolutamente pessoal da sua Veneza, de seu objeto de paixão. Ao mesmo tempo, temos esta visão condicionada pela época do ano em que Brodsky sempre viaja a Veneza: o inverno. Lembre-se, o sol de inverno na Itália ilumina mas não esquenta, clareia mas não ofusca, aquece um pouco sem nunca afastar totalmente o frio. E em Veneza, umidade é a lei. Estas condições físicas condicionam as impressões de Brodsky e nos mostram um dos infinitos tipos de Veneza que existem.

Como nos conta Mário Sérgio Conti na orelha do livro, antes mesmo de conhecer Veneza, o poeta desejava morrer nela. Ele não conseguiu, pois o coração falhou, em 1996, antes que ele conseguisse cumprir seu desejo. No entanto, desde 1972, quando foi expulso da União Soviética pelos motivos habituais dados como desculpa pelos comunistas da época — escrever idéias que não iam ao encontro do pensamento oficial, ser independente e original — e buscou asilo nos Estados Unidos, Brodsky esforçou-se para passar sempre cinco semanas por ano em Veneza. Conseguiu 17 vezes. E é o relato destas dezessete vezes que encontramos em Marca-d’água.

Mas o Brodsky poeta não lança mão da confissão de diário. À exceção da narrativa de seu primeiro contato com Veneza — e mesmo este recheado de impressões, não de fatos —, todos os outros relatos do livro não estão datados. Brodsky relembra Veneza sem se preocupar com detalhes temporais ou arquitetônicos, mas a partir de suas sensações e sentimentos ao estar naquela cidade, nas pessoas que via, nas situações que vivia e em como a cidade transformava-o e transformava-se com o passar dos anos. Se for possível comparar a literatura à pintura, Marca-d’água é um livro impressionista de Veneza. Só é possível ter alguma nitidez quando estamos um pouco distantes do quadro ou, neste caso, do livro. Tentar entender ou visualizar cada pedaço individualmente é perda de tempo. Cada pedaço se refere a um momento de Brodsky na sua relação com Veneza. Pode ser um jantar com amigos, uma noite com uma mulher, um peixe delicioso que o faz sentir-se um gato a ponto de miar, uma visão de uma ou outra janela, enfim, uma série de instantâneos desfocados em que temos uma impressão do que acontece, sem nunca termos certeza de exatamente o que ele relata.

Esta relação absolutamente livre de preocupação com o real pode ser encontrada também em As cidades invisíveis, de Italo Calvino. Neste livro, o escritor italiano coloca o veneziano Marco Polo descrevendo para Kublai Kahn as inúmeras cidades que visitou ao longo de suas viagens e que fariam parte do império do Kahn. No entanto, cada nova cidade é sempre um novo ponto de vista sobre a mesma cidade, a Veneza natal do navegador. Para o Polo de Calvino, Veneza continha todas as cidades do mundo.

Brodsky não chega a fazer esta ligação, aliás, ele não pretende fazer ligação alguma. O livro é a maneira que ele encontrou para materializar a sua definição de arte, “uma reação do organismo a suas limitações de retenção”. Brodsky não retém detalhes, apenas vagas lembranças e sensações. Esta é mais uma das “n” Venezas possíveis, e quando Veneza afundar, serão estas “n” Venezas descritas por “n” escritores, registradas por outros tantos fotógrafos e pintores, que darão testemunho da mais bela cidade do mundo. Há um conselho que merece ser escutado neste mundo: vá a Veneza antes que afunde.

Marca-d’água
Joseph Brodsky
Cosacnaify
96 págs.
Joseph Brodsky
Nasceu em Leningrado, em 1940 e morreu em 1996, nos Estados Unidos. Em 1987, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. De sua autoria, além de Marca d’água, foram lançados no Brasil Menos que um: ensaios (Companhia das Letras) e Quase uma elegia (7Letras).
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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