O olhar crítico de Forster

Em “Howards End” e “Maurice”, E. M. Forster desnuda a decadência da aristocracia e a falência do rígido código de valores da sociedade inglesa
E. M. Forster: teoria e criação ficcional de grande força.
01/04/2006

Poucos são os críticos ou teóricos literários que podem se orgulhar de ter atravessado com sucesso e alguma relevância a fronteira que os separa da criação artística. Uma exceção a essa regra, talvez uma das mais notáveis, é o britânico E. M. Forster (1879-1970). Ele é o autor de Aspectos do romance, obra de teoria literária considerada um clássico do gênero. Referência obrigatória em cursos de literatura ao redor do mundo. O escritor, contudo, também deixou como legado à posteridade um punhado de romances, listados entre os mais importantes da língua inglesa na virada do século 20.

O cinema, a partir da década de 80, foi um dos maiores responsáveis pela difusão e popularização internacional da obra de Forster, que jamais deixou de ser lido e discutido em sua terra natal. O diretor norte-americano James Ivory, em parceria com o produtor indiano Ismail Marchant, levou para tela os romances Uma janela para o amor, Maurice (de inspiração autobiográfica e publicado postumamente) e Howards End. A trilogia — cujas adaptações venceram vários Oscars e prêmios importantes em festivais internacionais — captou como poucas manifestações artísticas o processo de transição social pelo qual a Inglaterra do fim do século 19 atravessou. São contundentes, ainda que sutis, estudos sobre o confronto de classes, a decadência da aristocracia e a falência do rígido código de valores de uma sociedade que tentava se desvencilhar do peso vitoriano e adentrar, de alguma forma, a modernidade.

Depois de publicar Uma passagem para Índia também transposto para o cinema, sob a batuta do mestre David Lean (do clássico Lawrence da Arábia) —, a editora Globo acaba de lançar no Brasil Howards End e Maurice. A leitura de ambas as obras proporciona um painel fascinante e por vezes assustador de uma sociedade que, como o escritor e dramaturgo Oscar Wilde fez questão de frisar, nunca foi muito afeita a compreender as vicissitudes da natureza humana.

Howards End
Considerado por muitos críticos o mais perfeito dos romances de Forster, Howards End, publicado em 1910, faz um interessante contraponto entre dois mundos avizinhados, mas essencialmente diversos. De um lado estão os Schlegel. Descendentes de intelectuais alemães, as irmãs Margaret e Helen e o caçula Tibby preferem discutir música, literatura e filosofia a freqüentar salões de festas. No extremo oposto do espectro estão os Wilcox, legítimos representantes da alta burguesia inglesa. Desconfiados de quem expressa em público opiniões — e, sobretudo, emoções —, eles preferem falar de negócios ou trivialidades.

Com o objetivo de revelar as transformações que se desenhavam na sociedade de seu tempo, Forster entrecruza habilmente os caminhos das duas famílias. Primeiro, Helen Schlegel vive um breve e desastrado idílio com Paul, filho mais novo dos Wilcox. Quando percebe o quão materialista e superficial é seu pretendente, afasta-se sem olhar para trás. Sua escolha, contudo, não impede uma nova aproximação — desta vez mais duradoura e complexa. Margaret, sua irmã mais velha, torna-se amiga de Ruth, mãe de Paul.

A matriarca, portadora de uma doença incurável, vê em Margaret uma espécie de janela para um mundo muito diferente do seu. Encanta-se pelos saraus literários, pelas longas discussões regadas a chá e madeleines na casa da nova amiga. Em sinal de gratidão, Ruth, em seu leito de morte, deixa para Margaret Howards End, a propriedade rural onde nasceu e cresceu. Esse último desejo, contudo, é interpretado pelos Wilcox como um desatino e ignorado solenemente, para, anos mais tarde, cumprir-se de forma inusitada. Henry Wilcox, viúvo de Ruth, também se rende aos encantos de Margaret e com ela se casa, unindo de vez o tortuoso caminho de encontros e desencontros trilhado pelas duas famílias.

É importante assinalar que um dos personagens mais intrigantes de Howards End não carrega nem o sobrenome Wilcox nem o Schlegel. Leonard Bast, jovem da pequena burguesia interiorana, pertence ao universo dos que tentam em vão encontrar um lugar ao sol em uma estrutura social que lhes nega esse direito. Bast está condenando à obscuridade. Sua trajetória, um tanto trágica, é a forma encontrada por Forster para denunciar que, embora mudanças estejam ocorrendo, alguns conceitos estariam fadados a permanecer intactos não fosse pela fina ironia do autor, que reserva para o fim do romance uma surpresa.

Maurice
Uma informação biográfica sobre Forster é fundamental para compreender a importância de Maurice na obra do escritor, que traça um retrato complexo da repressão à qual os ingleses da época estavam submetidos. Ao mesmo tempo em que não deixa de ser uma história de amor, aos moldes do conto O segredo de Brokeback Mountain (de Annie Proulx), o romance, publicado postumamente, também pode ser interpretado como um poderoso libelo político, ao tecer críticas não muito sutis à perversidade de uma sociedade que recusava ao indivíduo o direito básico de buscar a felicidade.

Maurice Hall, personagem-título e alter ego de Forster, é um jovem da alta burguesia rural inglesa que perde o pai ainda na infância e é criado sem uma referência masculina forte. Quando atinge a idade adulta, vai estudar em Cambridge. Na tradicional cidade universitária, conhece Clive Durham, aristocrata por quem se apaixona e com que vive uma história de amor clandestina e platônica, embora partilhada. Clive acredita que, enquanto o sentimento que os une não se concretizar no plano físico, permanecerá puro. Maurice, no entanto, não se sente da mesma forma e acumula anos de frustração por não poder consumar seu amor.

O idílio entre Maurice e Clive chega ao fim quando um amigo comum, de origem nobre, é preso e levado a julgamento por assediar publicamente o mensageiro de um hotel. O escândalo faz com que Clive decida romper sua relação com Maurice sob a alegação de que a homossexualidade pode acabar por destruir suas vidas. Quer se casar, constituir família e seguir carreira na política. Qualquer mancha em sua conduta pode impedi-lo de concretizar seus planos. Resta ao protagonista conformar-se com o papel de amigo e tentar, de todas formas, libertar-se também de seus instintos. Mas não consegue.

Um posfácio revela, ainda que nas entrelinhas, que não é mera coincidência a semelhança entre os dilemas de Maurice e Forster, apesar de o personagem não ser um escritor ou um intelectual. O livro, no entanto, reserva ao seu herói um final feliz, romântico. Contrariando todas as normas vigentes, Maurice decide abrir mão de sua posição social para viver uma paixão proibida, por um jovem de classe social muito inferior, uma espécie de primo distante de Leonard Bast, anti-herói de Howards End.

Como Bast, o jardineiro Alec Scudder (os ecos aqui de O amante de Lady Chatterley, clássico do erotismo de D. H. Lawrence, não surgem ao mero acaso) representa o início inevitável de uma quebra nos rígidos limites que separam as classes sociais na Inglaterra eduardiana. O mundo começava a mudar, para nunca mais ser o mesmo.

Howards End
E. M. Forster
Globo
388 págs.
Maurice
E. M. Forster
Globo
258 págs.
Edward Morgan Forster
Nasceu em Londres, em 1879 e morreu em 1970. Deixou uma obra extensa: romances, contos e textos de crítica literária. Destaque para os romances Uma janela para o amor (1908), Howards End (1910), Uma passagem para a Índia (1924) e Maurice (1971, póstumo). É autor também de Aspectos do romance (1927), clássico da crítica literária.
Paulo Camargo
Rascunho