As bombardas ribombavam sobre a cidade há mais de três meses, tombadas do céu como uma chuva de abutres armadilhados. Primeiro escutava-se, ao longe, o estrondo das peças de artilharia. Depois um silvo agudo enchia o ar com uma ameaça de tragédia. Por fim, as ogivas rebentavam de encontro às paredes e telhados, amortecendo-se num rumor de reboco desmoronando. Rara era já a casa que não tinha ainda amparado um destes balazos lúgubres, que não exibia as marcas das explosões nas paredes, fosse o estuque derrocado, as pedras remordidas pela fúria da pólvora ou as manchas escuras de sangue deixadas por quem se arrastava para fora dos destroços a procurar ajuda. O hospital estava cheio de mortalhas, corpos feridos, mutilados, desacordados — uma sucessão de embrulhos de algodão e gaze, de gemidos, carne putrefacta, gangrenada, dor espalhada pelo chão e por qualquer canto onde ainda sobrasse espaço suficiente para se acomodarem os novos feridos que a toda a hora chegavam, ora cambaleando como ébrios, ora agarrados pelos tornozelos e pelos braços. Porém, quase não se viam soldados entre os feridos; ficavam nas trincheiras vendo as bombas passar-lhes por cima, disparando ao acaso para mostrar coragem. Se algum era apanhado pelo tiroteio cego ou pelos raros ataques da artilharia que visavam a tropa, logo regressava à frente, mais assustado do que antes, com a arma tremendo nas mãos inúteis, a alma carregada de cansaço e medo e o corpo remendado por esparadrapos alvos que logo ganhavam nódoas de lama e sangue.
Era também nas trincheiras que habitava Genoveva. E digo que ali habitava porque parecia que estava sempre lá, embora fossem mais as vezes em que andava pelos bares da cidade insinuando o decote pelas mesas onde os homens sãos se embriagavam para esquecer o cerco e o som das explosões, os gritos dos aleijados e a expressão vazia dos filhos mortos. Genoveva morava, na verdade, na cabeça de cada um dos homens sitiados, e também entre as mulheres, pois não havia quem não tivesse ainda escutado o que por todo o lado se dizia sobre a puta louca que ensandecia machos e soldados com os seus ímpetos de cadela com cio, roçando-se lasciva pelos corpos ébrios e cansados. Apesar dos trapos rotos que trazia no corpo, nos quais se concentravam meses dos seus humores de fêmea e o cheiro de centenas de homens, insinuava-se irresistivelmente, mendigando carícias e copos de vinho em contínuo trânsito entre as trincheiras e os bares. Talvez o mito da sua existência excedesse a matéria da realidade, mas era com os seus olhos cor de lima, profundos, que sonhavam os soldados quando, vencidos pelo cansaço, cochilavam contra as paredes das trincheiras; eram os seus seios fartos que habitavam as fantasias dos homens bêbedos; e era contra Genoveva que as mulheres dirigiam a sua raiva quando os maridos tardavam, chamando-lhe puta, puta, mil vezes puta, enquanto os estrondos da artilharia aravam a sua sementeira de terror.
Para além disso, Genoveva era uma arma. Quando, à noite, as trocas de tiros se tornavam raras e a sequência das explosões o permitia, os soldados mais temerários da cidade cercada — que eram aqueles a quem a guerra não amputara ainda o sentido de humor — provocavam o inimigo berrando alto, gabando-se de terem entre eles a mais perdida das mulheres, coisas que entre os sitiantes não podia haver, empenhados como estavam no sucesso do cerco e na contínua alimentação das peças de artilharia. Gritavam obscenidades tremendas, descreviam as maravilhas que o corpo de Genoveva operava e, se calhava que a puta louca estivesse entre eles, pediam-lhe que gemesse alto enquanto gozava, deixando que se debruçasse no alto da trincheira enquanto beneficiavam do prazer do seu sexo, de modo a que os seus olhos tresloucados brilhassem no escuro quando tocados pelos holofotes que rasgavam a noite. Deste modo, Genoveva passou também a habitar os sonhos e os pesadelos do invasor.
Fosse pelos gritos de prazer que enchiam a noite ou porque o mito de Genoveva acabou por se agarrar como uma carraça à alma dos homens, não há na cidade, agora ocupada, quem não saiba que a puta louca esteve perto de ganhar a guerra. “Se ela tem abrido as pernas, acabava-se o cerco” — é o que ainda hoje se comenta nos bares e nos mercados, onde as pessoas se habituaram a falar baixo, olhando continuamente sobre os ombros para se certificarem de que não há estrangeiros por perto. Poucos defendem a louca daqueles que julgam que Genoveva podia ter derrotado numa só noite o exército invasor, embora haja entre estes alguns dos melhores homens da cidade, que são aqueles que conspiram ainda contra o novo poder e a ele resistem activamente. Dizem estes que Genoveva, ao contrário daqueles que a ofereceram ao invasor, provou ser uma verdadeira patriota e que só por essa razão recusara servir o capricho daquele que, durante três meses, mantivera a cidade cercada e sob uma chuva de chumbo e aço. Afirmam uns que o entrepernas de uma mulher é a mais poderosa de todas as armas e o mais cobiçado dos objectivos militares sempre que a guerra seja um negócio em que os homens mandam — e que, portanto, Genoveva podia ter triunfado. Alegam os outros que sim, o corpo de Genoveva tinha passado à condição de objectivo militar; mas que, como é sabido, nenhum exército se satisfaz com a conquista de uma cidade, excepto enquanto ponto de passagem para a cidade seguinte; que, assim que Genoveva tivesse sido conquistada, o invasor teria atacado fosse como fosse, pois era para isso que ali estava, para tomar de assalto e avançar sobre as ruínas.
A realidade, porém, não confirma nem desmente uns ou outros, sendo que o que aconteceu teve lugar após uma noite durante a qual Genoveva gritou mais alto do que nunca o prazer dos seus amantes militares. Nessa manhã, os defensores da cidade viram, com espanto, que se aproximava da trincheira um tenente inimigo, com um pano branco espetado no fio da baioneta. Avançava devagar, segurando a arma numa mão e erguendo a outra em sinal de trégua, sem, todavia, confiar demasiado em que todos aqueles homens que o tinham debaixo de mira, com os dedos tensos nos gatilhos, não acabassem por derrubá-lo a tiros. Quando chegou a poucos passos da trincheira, deteve-se e, esforçando-se por levantar a voz trémula, disse ser portador de uma mensagem do general sitiante para as autoridades da cidade cercada, a qual, a saber, constava do seguinte: os invasores estavam na disposição de cessar as hostilidades, levantar o cerco e retirar das posições actualmente ocupadas caso essa mulher chamada Genoveva aceitasse servir o general da tropa atacante. Ao ouvir isto, os defensores da cidade, ainda apontando as armas, olharam-se espantados e depois baixaram a guarda para rir em sonoras gargalhadas, não tanto pelo bizarro da proposta como pelo facto de se terem dado conta de que ali estavam havia três meses, com fome, sono, medo e frio, quando tudo isso poderia ter sido evitado pela intervenção de uma puta louca, à qual amavam e cuspiam com igual desinteresse e asco. Quando as gargalhadas cessaram, o oficial que comandava a trincheira mandou que dois soldados corressem à cidade a procurar Genoveva, para que a trouxessem imediatamente à sua presença, ordenando a outros dois que fossem chamar o general e o presidente da câmara, aos quais caberia decidir sobre a proposta inimiga.
Quando a puta louca chegou à trincheira, vinda directamente dos escombros de uma casa derruída onde a custo fora localizada, já o edil, o general e o comandante da trincheira haviam decidido entregar Genoveva ao inimigo, pelo que a mulher foi atravessada sobre a vala e entregue ao tenente invasor no decurso de um cerimonial grotesco: enquanto o autarca, em representação do poder civil e democrático, procedia à apresentação oficial da fêmea ao enviado do invasor, a soldadesca dava vivas a Genoveva, gritava-lhe adeus e chamava-lhe amorzinho querido, boquinha dourada e outras obscenidades cuja reprodução a solenidade do momento desaconselha. Enquanto isso, a notícia circulava já na cidade incrédula e feliz com o fim da guerra. As crianças corriam pela rua, as mulheres saíam às janelas para bater palmas e os homens emborrachavam-se como cossacos nas tascas e nos bares, sem que já a ninguém ocorresse que o fim do cerco era obra de Genoveva, a puta louca, ou que aquela mulher desgrenhada e suja pudesse guardar ainda uma centelha mínima de vontade própria, habituados que estavam todos a enxotá-la, a empurrá-la, a cuspi-la, a insultá-la — e a usar o seu corpo morno quando a necessidade o exigia ou a lascívia que os seus modos inspiravam suplantava o nojo que por ela sentiam.
Genoveva, porém, não quis acabar com o cerco e ganhar a guerra, se é que alguma vez isso esteve nas suas mãos, ou, melhor dizendo, no alto das suas pernas encardidas. Quando foi levada à presença do general sitiante, a louca mirou o militar de uma ponta a outra: embora estivesse deitado numa espécie de cama de campanha, via-se que era um homem alto e jovem; era também bonito, apesar da barba por fazer e das olheiras castanhas cavando-se, quase melancólicas, sobre uns olhos verdes capazes de destroçar corações e arrasar cidades com igual desprendimento e destemor; usava, por cima das calças, botas de cano alto e brilhante que chegavam quase aos joelhos e tinha a camisa verde-oliva desabotoada até ao umbigo, exibindo o peito pulcro e musculado. Podia ser um poeta se houvesse um cachimbo de água ao pé da cama e a puta ali tivesse entrado após ter palmilhado meio deserto sob um céu que cintilasse mil estrelas.
Quando Genoveva entrou na tenda, os dois oficiais de ligação que a conduziam, um por cada braço, largaram-na diante do general, lançando-a de joelhos ao chão. E depois saíram, deixando que o invasor mirasse demoradamente a sua presa.
— És tu a Genoveva?
A louca assentiu com a cabeça, sem desviar o olhar vivo, de um brilho embrutecido, animal.
— És tu a mulher que dá prazer aos soldados da cidade?
E outra vez a puta fez que sim com a cabeça, o mesmo olhar de fera com cio destacando-se da sujidade do rosto, dos farrapos do corpo, um seio branco despontando do decote rasgado.
— Sabes porque aqui estás?
E Genoveva confirmou, os olhos fixos nos olhos do general, frios, metálicos, daninhos, traiçoeiros.
— Vais servir-me?
E, desta vez, a louca passou a língua pelos lábios rubros, sorriu, apoiou ambas as mãos no chão e gatinhou na direcção da cama de campanha, devagar, muito devagar, como uma pantera faminta cercando a presa. Depois, apoiando as mãos, numa carícia, nas botas do general, ergueu o corpo e, languidamente, subiu para a esteira; ajoelhou-se sobre o corpo do invasor, esfregando-se entre as pernas com a mão direita. Endireitou o tronco, para que o peito se pusesse mais firme, e, com a mão esquerda, segurou o cabelo grosso junto à nuca. Sempre olhando firmemente os olhos verdes do general, que principiavam a ganhar vida e fremiam de um sentimento mau, Genoveva pôs-se de pé, ergueu a saia rota acima dos joelhos e principiou a urinar sobre o invasor — um jorro cálido correndo rente às pernas sujas. Estava nisto quando gritou
— Viva a liberdade!
e saiu a correr da tenda, mais depressa do que o general pôde perceber o que ali tinha sucedido, passando como uma brisa pela tropa em posição de combate, os dedos tensos nos gatilhos, perfilados junto às peças de artilharia. Antes que pudesse atingir a linha de defesa da sua cidade, já as bombardas do invasor voltavam a atravessar os céus e a tropa inimiga corria nas suas costas, berrando e disparando, avançando de surpresa sobre soldados bêbedos e trincheiras quase vazias. Genoveva foi atingida nas costas, atirada ao chão e depois espezinhada no campo de batalha por centenas de botas duras e rudes. Ali morreu e talvez tenha sido melhor assim. Se tivesse regressado com vida à cidade, talvez o seu nome não estivesse hoje escrito a maiúsculas vermelhas nas paredes das ruínas que outrora foram casas — onde, às vezes, e por pouco tempo (aquele que o invasor demora a apagar a frase), também se lê que a liberdade é uma puta louca.