Um livro de contos (por mais óbvia que pareça a afirmação), em geral, e em média, tende a ser irregular. Afinal, uma publicação de narrativas breves, de um mesmo autor, reúne (a obviedade surge outra vez) diversos textos, e nem sempre todos apresentam, por exemplo, a mesma intensidade. Cada leitor lê a mesma obra e aponta alguns dos contos como os seus prediletos (é óbvio, ululante). Raros são os autores que conseguem aglutinar apenas seus melhores contos em um único livro, mesmo quando se trata de uma antologia de seus melhores contos. Mas (eis o óbvio a retornar), talvez uma das características de um livro de contos seja, justamente, selecionar uma variedade de peças ficcionais breves. Algumas agradam a determinados leitores; outras, nem tanto. E tudo que foi dito neste parágrafo pode ser direcionado para A coleira no pescoço, de Menalton Braff.
Menalton Braff, neste momento da história (da história da literatura brasileira), é um autor conhecido e reconhecido, sobretudo, pela sua produção de contos. Em 2000, venceu o Prêmio Jabuti, um dos mais importantes do país, na categoria ficção, com À sombra do cipreste — antologia de contos. E seu mais recente livro, A coleira no pescoço, deve chamar a atenção da crítica e dos leitores e talvez venha a faturar algum prêmio. A coleira no pescoço revela um autor maduro que transita com desenvoltura pelo gênero. Trata-se de um livro temático. O escritor gaúcho que vive no interior paulista apresenta 20 contos em que problematiza a respeito das relações. Do humano com o outro. E do humano consigo mesmo.
A primeira parte do livro, Signo de Touro, reúne 10 contos — todos eles a orbitar sobre a relação do humano com e a partir do próximo. A dependência do outro está ficcionalizada no conto Signo de Touro. Os personagens Sebastião e Clotilde estão a construir a residência onde pretendem habitar depois de casados. Mas um evento os separa. Então, a existência de Clotilde deixa de ter sentido. Até que, no derradeiro momento da narrativa, Sebastião reaparece e marca o casamento. E, para Clotilde, tudo volta ao seu lugar. A interferência do próximo ganha representação no conto Caminhos cruzados. O personagem Daniel procura atrair uma garota de programa, a personagem Verônica, para os campos do Senhor. Ao final, Verônica se converte e ele, Daniel, também: assume a profissão dela e passa a comercializar o próprio corpo. O conto que empresta o título ao livro, assim como o conto Signo de Touro, também trata da dependência mútua, mas com outras nuances, no caso, a respeito de um cachorro e de um personagem apresentado como velho: “Os dois, acorrentados um ao outro, cumprindo uma interminável caminhada”.
Tanto nos três contos mencionados no parágrafo anterior como nos outros sete reunidos em Signo de Touro, a ficção braffiana sugere que isso que se chama futuro depende disso que se chama presente. Mas o que era presente na frase anterior já é passado, e isso também irá ecoar ali, na frase seguinte, no que pode vir a ser chamado de futuro. Enfim, os dez contos aglutinados em Signo de Touro variam sobre a gestação do porvir — em que, obrigatoriamente, uma trajetória depende de outra. Uma tarde de domingo, por sua vez, mostra como três existências se cruzam e de que forma caminham para um final trágico. Nesse conto e nos nove demais da primeira parte do livro, as narrativas ainda sugerem que são os sentimentos, nunca motivos racionais, que impulsionam o humano. É um descontrole, emocional, que faz com que o personagem Serafim, no conto Homens magros, mate a personagem Alzira, ex-prostituta que não se adaptou na função de esposa e dona de casa. Todos os contos de Signo de Touro trazem seres em conflito, tormentos que desejam se tornar calmaria, e inevitáveis acidentes durante os percursos.
Destinos inescapáveis
Já os dez contos que formam a segunda parte do livro, O bezerro de ouro, mostram personagens diante de seus inescapáveis destinos, sem que esses impasses dependam, necessária e aparentemente, da presença do outro. Há o sujeito sem nome nem identidade, em O caso das digitais perdidas. A cerca apresenta o personagem Joaquim Boaventura, destinado, unicamente, a cuidar de um terreno. “Um dia Teodoro sentou em cima do muro de sua casa.” Eis o início do conto De cima de seu muro, em que o protagonista — assim como aquele barão que subiu em árvores — abandonou a terra firme em busca de alguma altitude para dar sentido à sua existência. Doutor Armando, no conto O bezerro de ouro, isola seus domínios do resto do mundo. Assim, nos outros textos fictícios da segunda parte de A coleira no pescoço, os personagens também são, de certa forma, isolados, deslocados, enfim, solitários, mesmo quando há algum choque com outras existências — o que diferencia esses dez contos dos outros dez que estão na primeira parte do livro.
No entanto, os contos reunidos em Signo de Touro e os aglutinados em O bezerro de ouro apresentam pontos de contato. Em todos eles, os 20 contos que compõem o livro, são os aspectos emocionais que movem os personagens. Os seres fictícios tomam atitudes, de certa forma, inexplicáveis — e tais gestos terão conseqüências irreversíveis em suas trajetórias. Não há explicação fácil para decifrar, por exemplo, o que motiva o protagonista de O caso das digitais perdidas, ou Joaquim Boaventura em A cerca, ou Teodoro em De cima de seu muro, ou Doutor Armando em O bezerro de ouro. “Qualquer biografia tem necessidade de pontos cegos, porque a vida, com as janelas escancaradas, é simplesmente impossível.” A frase, retirada do conto O caso das digitais perdidas, ilumina não apenas o texto em que está inserida, mas todo o livro. Há pontos cegos nas constituições dos personagens. E, possivelmente, é dos pontos cegos que pulsam e emanam os sentimentos que fazem os seres inventados entrar em ação e colidir com seus destinos.
Os contos de A coleira no pescoço também se irmanam pelo fato de terem sido ambientados em espaços geográficos sem referências específicas, o que torna as cidades braffianas universais. Os seres que transitam pela sua ficção também não são, necessariamente, urbanos de uma determinada região. No entanto, o que, definitivamente, insere esses 20 contos na contemporaneidade é a sua linguagem. O autor se valeu de recursos — por exemplo, texto ágil, fluente, leve, etc. — usados por muitos autores do presente, muitos deles credenciados pela crítica como bons. Uma mostra disso pode ser conferida na abertura de A coleira no pescoço, conto inaugural do livro:
Nenhum dos dois conseguia disfarçar os danos da velhice, que suportavam em silenciosas e mútuas acusações. O velho parecia fazer um esforço enorme para puxar o cão ladeira acima. A sola seca de seus sapatos esfolava o ladrilho da calçada, arrancando-lhe um ruído ríspido, áspero, como de alguma coisa que se arrasta, e isso irritava o cão, cuja cabeça se mantinha o tempo todo virada de lado, o focinho apontando para a rua. Seu corpo todo era uma recusa tensa e escura, e ele tinha o olhar aborrecido de quem não pode esperar mais nada na vida além daquela coleira no pescoço, na ponta de uma corrente.
No primeiro parágrafo desta resenha foi sugerido que um livro de contos, em geral, tende a ser irregular, uma vez que nem sempre todos os textos apresentam a mesma intensidade, etc. — e que tal afirmação diria respeito a este livro de Menalton Braff. Dos 20 contos, nem todos foram comentados. Mas nove foram. E você, leitor do Rascunho, ao conferir a obra, segura e possivelmente, também pode vir a eleger a sua antologia pessoal — gerada a partir de pontos cegos do seu eu, impulsionada por aquilo que se chama emoção. Ou não.