As peças do mosaico

Nos contos de "Guatá", Flávio José Cardozo parte de histórias banais para explorar os sentimentos humanos
Flávio José Cardozo: contos bem escritos, com ritmo e fluência.
01/05/2006

Somos seis bilhões no planeta. E seis bilhões sem história, a levar em consideração a mídia. Uma rápida análise dos fatos veiculados mostra apenas os grandes movimentos da humanidade: o crescimento econômico da China, o aquecimento global, a corrupção generalizada no Brasil, a guerra no Iraque e por aí vamos, descontando, é claro, os fatos bizarros e hediondos. Destes movimentos, pinçamos apenas alguns nomes: Bush, Lula, Jintao, Dirceu, Saddam e outros poucos. Sobram seis bilhões ainda que de alguma maneira contribuem para a história deste planeta. Na maior parte dos casos são apenas estatísticas nas manchetes de jornais.

Mas cada pessoa tem a sua contribuição para a história maior. Cada um é um fragmento do mosaico que, ao fim, será a história da civilização. Resgatar a parte de cada um em determinado momento, seja esta parte verdadeira ou inventada, é o trabalho a que se dedicou Flávio José Cardozo em Guatá. Treze contos, ou melhor, treze relatos diversos compõem o mosaico para contar um momento específico da vila de Guatá, no sul do Brasil. Todas as histórias são independentes mas se entrelaçam, ora pelos personagens, ora pelos seus locais. O conjunto dos textos narra um pedaço da história desta vila, mais especificamente em seu auge, quando a economia era movida pelo carvão que saía de suas minas.

Guatá tem como um de seus pontos fortes o fato de Cardozo levar em consideração a universalidade dos sentimentos humanos. Chineses e brasileiros, indonésios e americanos — basta ser humano para se apaixonar, para odiar, para sentir fome e sede, para ter ambição, para sonhar e desejar. Pouco importa onde estejam as pessoas, estes sentimentos estarão sempre entre elas. E é com base nestes sentimentos que Cardozo constrói seus relatos. No entanto, sem esquecer de onde ele fala, Cardozo usa as minas de carvão e todo o universo que gravita em torno deste ambiente específico para gerar os sentimentos que permeiam o livro.

Pois dois homens se apaixonarem pela mesma mulher é comum. Mas Cardozo faz um tropeiro e ex-assassino de nome Cilião Palheta se interessar pela irmã menor de Belmiro Coan, o dono da venda, e disputar o amor da moça com Rosalvo Duas-Foices, melhor mineiro do Guatá, com braços e pernas capazes de ceifar a cabeça do vivente que o desafiar. Do mesmo modo, também é comum a filha desapontar o pai quando este acha que ela é que foi ultrajada. Mas Cardozo faz com que o acusado seja Aldírio Patrício, responsável pelos pagamentos da mineradora, e que a moça, a princípio inocente, mas culpada até o último fio de seus cabelos, seja Doneda, filha de Uriel, mineiro respeitoso e prestes a se aposentar por invalidez.

Assim, todos os dramas pessoas estão sujeitos também às características da economia do local. Existe uma empresa mineradora cujos donos não estão no Guatá. Existe o gerente geral da mina, visto sempre como um preposto divino na terra, responsável pelo destino das vidas de todos na cidade. Há os capatazes, os mineradores, os ajudantes, as famílias de todos e os outros que vivem por ali. A habilidade de Cardozo está em contar fragmentos de tudo sem que as histórias fiquem perdidas ou desconectadas.

O contraste entre empregadores e empregados é marcante e perpassa todo o livro. Se por um lado os empregados não suportam as condições quase inumanas a que são submetidos, por outro lado vêem-se impedidos de lutar por melhorá-las, pois aquele é o único ganha-pão nas redondezas. Já os empregadores, ou melhor, os representantes destes, moram no vilarejo distante por obrigação, sem prazer e quase sempre sem saber como se relacionar com seus subordinados. Desta tensão nascem relatos como O agrimensor e seus ajudantes, Almoço no castelo e Santa Bárbara, para citar alguns.

Na entrevista que acompanha o release de lançamento do livro, Cardozo explica que não fez pesquisa além do necessário para seu livro. Além das lembranças (o autor nasceu no Guatá verdadeiro, povoado do município de Lauro Muller, em Santa Catarina), ele entrevistou alguns mineiros antigos sem entrar no documental dos fatos. Assim, o livro é história sem o ser, pois se os “causos” são inventados, eles são a coletânea das vidas que por ali passaram. Além disso, a abertura (Descida) — e o fechamento (Saída) reforçam o caráter memorialista do livro. Neste último, o autor se coloca como um viajante que retorna à cidade natal, primeiro descendo a serra mítica de sua infância, que o atraía pelo misterioso, e depois saindo da cidade rumo ao mar, desejo de quem vivia longe do litoral.

Os contos de Cardozo são bem escritos, têm ritmo e fluência. No entanto, há um detalhe que incomoda: os finais abruptos de alguns contos. Em quase todos há uma virada final que, se por um lado surpreende positivamente, pois realmente não era esperada, por outro deixa uma sensação de que o autor, tendo feito já tudo o que podia no conto, resolve simplesmente terminá-lo. Pode ser uma característica de Cardozo, e na entrevista ele conta que “a quebra de expectativa obedece a um conceito de conto como um jogo que travo com o leitor”. Pode ser um conceito, mas parece que falta alguma coisa. O que não chega a incomodar tanto. Guatá é um belo trabalho que satisfaz.

PS. Pode ser que não exista uma história individual sendo contada, mas para quem tem acesso à internet, é possível eternizar a história de cada um. Visite o Museu da Pessoa (www.museudapessoa.net) — uma iniciativa muito bacana, que dá espaço para mostrar que cada um merece ter seu lugar na história, independentemente do que fez.

Guatá
Flávio José Cardoso
Record
304 págs.
Flávio José Cardoso
Nasceu na região carbonífera de Santa Catarina, em 1938. Formado jornalista pela PUC-RS, trabalhou no departamento editorial da Editora Globo de Porto Alegre e foi diretor da Imprensa Oficial de Santa Catarina e da Fundação Catarinense de Cultura. É autor de Singradura, Zélica e outros e Longínquas baleias. Tem se dedicado também à crônica e à literatura infantil e já participou de diversas antologias.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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