O infinito Brás Cubas

A obra-prima de Machado de Assis atravessa o tempo sem perder o vigor e a ganhar significados
Machado de Assis, autor de “Memórias póstumas de Brás Cubas”
01/05/2006

Grande clássico de nosso romance moderno, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é uma obra assustadoramente contemporânea, embora tenha sido publicada em 1881. Ela atende a uma das mais precisas definições de clássico dadas por Italo Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Todos os romances da fase de maturidade de Machado de Assis trazem esta idéia, principalmente Dom Casmurro, mas é este Memórias póstumas a melhor tradução de uma conduta desumana da sociedade, e pode ser lido como obra publicada agora, se fizermos o exercício mental de substituir as referências ao universo histórico por outras mais próximas no tempo. Como clássico, ele é um livro cujas ações transcorrem num hoje, um hoje com feições do século 19.

Não se trata apenas de uma contemporaneidade de temas, mas principalmente de estilo. O conceito fragmentado e múltiplo de narrativa dá ao livro um formato up-to-date, como se ele tivesse sido escrito por algum adepto da vanguarda. A ausência tática da voz do escritor, pois o narrador se assume como o autor do livro, tira do texto qualquer filtro moral, permitindo um contato direto e tenso entre o leitor e um personagem-autor. E a ironia contínua e hiperbólica do romance corrói o sentimento ufanista, opondo-se ao projeto romântico de criar, pela ficção, seja na poesia ou na prosa, o mito da identidade nacional. Não é sem razão que escritores mais crentes em um destino da nação não encontrem em Machado de Assis um antecessor. Um Ariano Suassuna, por exemplo, vai buscar em José de Alencar nosso romancista fundador. Machado, assim, pertence mais a um discurso cosmopolita do que ao nacional. E este é mais um mecanismo de contemporaneidade de seu texto.

São as estratégias narrativas utilizadas por Machado que garantem esta permanência no tempo de um romance lido como novidade editorial pelo leitor que chega a ele pela primeira vez e não sabe qual deve ser sua reação diante de uma obra, temática e estilisticamente, tão desconfortável. Mas, como clássico, este livro exige do leitor uma trituração analítica lenta e minuciosa, ou seja, exige releituras.

A primeira distinção, meio primária mas nem sempre respeitada, que se deve fazer sobre esta obra é que existem duas vozes narrativas — a do autor biográfico (o que Umberto Eco chama de autor empírico) e o autor criado no âmbito na narrativa (o autor-modelo, para continuar com a distinção de Eco). Confundir os dois é o erro mais comum na leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas. O livro que o leitor tem diante dos olhos é uma ‘criação’ de Brás Cubas e não de Machado de Assis. Até por isso são memórias, pois pertencem a este autor ficcional. É bom lembrar que os romances de Machado de Assis, daqui para frente, trabalharão com o expediente de uma narrativa memorialística escrita pelo narrador, marcando a distância entre quem escreve no texto e quem escreve na vida real — os narradores de Dom Casmurro (1900), Isaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) se assumem como autores do relato que se está lendo. Machado isenta-se assim da autoria interna destes textos que são diários de lembranças de autores imaginários.

Cada livro, portanto, traz marcas que pertencem à voz narrativa inventada por Machado de Assis. É claro que podemos estabelecer pontos de contato entre essas vozes e a do autor real, mas isso guarda um interesse restrito e representa um perigo, pois a obra passa a ser lida em função da biografia, e o encanto pela literatura cede espaço para o desejo de comprovações históricas.

O homem Brás Cubas é uma trajetória e um estilo complementares, como mostra Roberto Schwarz em seu mais admirável ensaio sobre este escritor (As novidades de Memórias Póstumas de Brás Cubas, in Machado de Assis, uma revisão, In-Fólio, 1998). O rico proprietário trata o leitor e a escrita com o mesmo descaso praticado no relacionamento com as pessoas ao tomá-las como seres subalternos e descartáveis.

Assim, o leitor não conhece o caráter deste ser volúvel (para usar a expressão de Schwarz) a partir de uma visão exterior. Ele é atraído para o seu universo, entra em contato íntimo com o narrador, reencenando as relações sociais, mantidas vivas mesmo depois da morte. As tensões interpessoais se materializam na leitura. O leitor participa dos fatos, sofrendo as agressões de Brás Cubas, que exerce sobre ele um poder impiedoso, levando-o para aonde ele bem quer. O livro é cheio de idas e voltas, começa pela morte do narrador, o que por si só já é uma agressão à lógica, resume em poucas linhas muitos anos, deixa capítulos em branco, esconde fatos, remete o leitor para outros capítulos, afaga-o em alguns momentos, mas logo o engana. Várias formas de conflitos são representadas nas relações com o leitor, que deixa de ser alguém distante, para viver as mesmas experiências dos demais personagens que contracenaram com Brás Cubas num espaço textual que se apresenta como teatro. O leitor não lê o livro numa posição segura de voyeur, mas como partícipe dos fatos. Ele é tragado pelo texto num lance arriscado, pois receberá deste narrador um tratamento desestabilizador. Por isso, muitos leitores acabam odiando o livro, pois transferem para o romance a repulsa a estas atitudes de Brás Cubas, rebelando-se contra o texto, tamanho o realismo desta situação de conflito estrategicamente armada por Machado de Assis.

O leitor, internalizado no livro, é levado por um mecanismo de agressão permanente que tem na ironia seu principal recurso. A ironia nasce da justaposição de elementos antagônicos. O livro é uma sucessão de imagens positivas e negativas, dispostas em seqüências binárias. Toda a ação terá sempre uma negação. O episódio que melhor ilustra esta dinâmica se encontra nos capítulos 23 e 24 — intitulados, respectivamente, Triste, mas curto e Curto, mas alegre. Até a inversão dos adjetivos nos títulos revela esta tendência de virar os fatos pelo avesso, num processo de frustrações das expectativas de leitura. Inicialmente, cria-se um clima de pesar, pois, no primeiro destes momentos, Brás Cubas volta ao Brasil para ver a mãe moribunda. A mãe parece ser a única pessoa por quem ele guarda algum sentimento verdadeiro. O capítulo é comovente, ele usa frases densas, mostrando certo conhecimento filosófico da vida: “o cancro é indiferente à virtude do sujeito; quando rói, rói; roer é seu ofício”. Esta situação leva o leitor a aderir aos sentimentos de amor filial, que são negados quando ele interrompe a narração com reticências e põe fim a este sentimentalismo: “Triste capítulo; passemos a outro mais alegre”.

Na seqüência, ele está feliz, falando das suas qualidades de morto, agora pode desdenhar a opinião alheia. É um capítulo fútil, brincalhão, que cita o exemplo de um cabeleireiro que vivia alegremente por não ter opiniões. Brás Cubas vai mais longe. Ele simplesmente não tem sentimentos. Nos capítulos seguintes, quando passa uns dias numa propriedade na Tijuca, para cumprir o luto, uma mera formalidade, embala-se por novos amores e pela oportunidade de uma carreira política. A morte da mãe não significou nada para ele, o monstro moral persiste em sua existência hedonista.

As agressões ao leitor também se tornam explícitas em alguns momentos em que o narrador se dirige a ele. Este leitor pode ser querido ou obtuso dentro deste mecanismo das variações do humor do narrador. São os famosos piparotes que ele dá no interlocutor. Esta palavra (“piparotes”) só aparece no primeiro capítulo, quando ele diz que se desfará do leitor se ele não gostar do livro, e no momento em que, depois de descobrir que encantadora Eugênia, filha de um caso adulterino, é manca, e de ter se aproveitado de seus carinhos, Brás Cubas mata uma borboleta preta, símbolo da moça e de seu caráter agourento, que seria um atrapalho em sua carreira. O narrador dá um piparote na borboleta, revelando que fará o mesmo com Eugênia — e conclui: “veja como é bom ser superior às borboletas”. Ao leitor é destinada a mesma violência que Brás Cubas usa para afastar as pessoas quando delas não precisa mais.

Em cada caso de desdém pelo ser humano, o leitor sente-se atingido, pois ele não é apenas um observador distante, mas um personagem presente ao longo de todo livro.

A coroação desta atitude de superioridade, que é social e estilística ao mesmo tempo, localiza-se na filosofia defendida por Quincas Borba, o Humanitismo, versão irônica da luta selvagem pela sobrevivência — tudo é permitido se o homem pretende sobreviver. Simbolicamente, os dois principais exemplos desta teoria envolvem luta entre animais — entre os cachorros e depois entre os galos. Ou seja, o Humanitismo é a lei dos selvagens, quando o homem comporta-se segundo seus instintos, fazendo prevalecer sua potência. É, na verdade, uma desumanidade. Isso positiva comportamentos como a inveja, a traição, a ingratidão, etc., tudo agora justificado.

O universo sem piedade que Machado de Assis faz surgir das lembranças de Brás Cubas encara o individualismo cínico que marca o homem e que só aumentou com o passar deste último século, quando o capitalismo se tornou sinônimo de civilização.

Memórias póstumas cria um mal-estar que pode ser modificador, sem fazer a apologia de mudanças, sem defender nenhuma causa, apenas colocando o leitor num papel sobre o qual age a mão do mais forte, fazendo-o experimentar o vergalho do proprietário.

Ao ler esta obra-prima de nosso romance, estamos sempre fazendo uma sobreposição temporal. Não conseguimos um distanciamento, por isso o livro é tão poderoso. Entramos em sua teia como se ele fosse nosso contemporâneo. É um clássico porque, ao não contemplar as idéias morais do homem Machado de Assis, fala-nos de um aqui e de um agora traduzível para outros lugares e outros tempos.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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