Perdas e desilusões

O romance "Sem nome", de Helder Macedo, trata da busca da identidade por meio de dois personagens de gerações diferentes
Helder Macedo: obsessão por discutir as formas do romance contemporâneo.
01/05/2006

A obra de Helder Macedo tem sido cada vez mais estudada no Brasil. Trata-se de uma produção intelectual de muito interesse, bastante variada, e que já atravessa algumas décadas. Poeta, estreou na literatura com Vesperal, em 1957; crítico literário, escreveu importantes ensaios como Nós — uma leitura de Cesário Verde, e Viagens do olhar – Retrospecção, visão e profecia no renascimento português, este último em parceria com Fernando Gil; romancista, estreou na ficção relativamente tarde, em 1991, com o inusitado e quase indefinível Partes de África. Seguiram-se Pedro e Paula (1998), Vícios e virtudes (2000) e, no ano passado, Sem nome, lançado agora no Brasil.

O escritor vem bastante ao Brasil. O que é bom: considerando o ritmo de compromissos que cumpriu ao fim de abril e começo de maio — lançamentos do novo livro e diferentes palestras em diversas cidades brasileiras — seu prestígio só faz crescer. Tal entusiasmo é recíproco: Macedo tem se mostrado um ativo defensor de um intercâmbio maior entre as literaturas de Portugal e do Brasil. E, quanto a suas influências literárias, faz questão de destacar, dentre outros, os nomes de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro, além de objeto de interesse acadêmico, é referência constantemente evocada em seus romances: Esaú e Jacó, por exemplo, foi um assumido modelo para o segundo romance de Macedo, Pedro e Paula.

Já Drummond, de quem Macedo se diz leitor contumaz, tem sido objeto de algumas de suas palestras. Em aula recente aos alunos da USP, Helder Macedo enalteceu a influência de Carlos Drummond de Andrade em Portugal, principalmente entre os poetas na década de 50. Localizou imagens e procedimentos drummonianos em escritores como Alexandre O’Neil, Mário Cesariny, António Ramos Rosa, José Cardoso Pires. E afirmou, um pouco provocativamente, que “se houve um segundo modernismo em Portugal, seu nome é Carlos Drummond de Andrade”. Tal interesse, infelizmente, anda meio esquecido. Hoje, se os brasileiros conhecem relativamente pouco da atual produção literária portuguesa, a recíproca é também verdadeira (e justiça seja feita: nos últimos anos, a edição de romances portugueses no Brasil aumentou bastante, embora ainda haja tantos poetas e prosadores importantes praticamente inéditos por aqui).

Drummond aparece também como uma das epígrafes de Sem nome, que tem sido recebido com entusiasmo pela crítica portuguesa. Trata-se, segundo o próprio autor, de um romance sobre a busca pela identidade, realizada por dois personagens, o quinquagenário José Viana e a jovem Júlia de Sousa. Símbolos de duas gerações diferentes, suas vidas se encontram em um episódio bastante insólito.

José Viana é um advogado português, residente em Londres desde o início da década de 70. Certo dia, recebe uma ligação da polícia do aeroporto londrino: Marta Bernardo, sua antiga namorada e desaparecida desde antes da Revolução dos Cravos, está presa, com problemas no passaporte. E, por incrível que pareça, ao reencontrá-la, José Viana vê a mesma mulher de há 30 anos, como se ela não houvesse envelhecido um dia sequer. Mas é claro que este não é um romance fantástico e, portanto, não pode se tratar da mesma pessoa. Além de uma grande semelhança física, a jornalista Júlia de Sousa foi confundida com Marta Bernardo por uma série de coincidências incríveis, ou mesmo inverossímeis, que deixaremos ao leitor o prazer de descobrir.

Tal equívoco promove o primeiro grande tema do romance, que é o reencontro de José Viana com seu passado. O advogado representa um personagem bastante comum na ficção portuguesa contemporânea: a figura do ex-comunista perdido na configuração política atual e em uma rotina de trabalho “mesquinha”, porque esvaziada dos valores aos quais se aferrara na juventude.

Lembremo-nos, por exemplo, do recém lançado Era bom que trocássemos umas idéias sobre o assunto, de Mário de Carvalho (Companhia das Letras, 2005), romance que conta como um burocrata cinqüentão, Joel Strosse Neves, reencontra um antigo conhecido da faculdade, o professor Jorge Matos, e passa a assediá-lo para ser aceito no Partido Comunista Português. Um sente-se à margem do processo histórico, e almeja a atuação política efetiva; o outro, por sua vez, fora um intelectual atuante contra a ditadura salazarista, e hoje se mantém em um estado de inércia, no trabalho e na vida pessoal.

Neste romance, como em Sem nome, há um clima geral de desilusão com os rumos políticos tomados por Portugal e certo arrefecimento dos ideais da Revolução. Desilusão que, no caso do romance de Helder Macedo, adquire um significado maior. Militante do Partido Comunista, José Viana fora convocado pelo exército em 1973 e, ao invés de atuar como agente revolucionário infiltrado nas Forças Armadas, optou pela deserção, fugindo do país. À culpa por um ato de possível covardia, soma-se que a fuga resulta em seu afastamento definitivo de Marta. Portanto, a “reaparição” de Marta, na figura de Júlia, é, para Viana, como um acerto de contas com o passado, em que uma perda na vida afetiva mistura-se com a frustração ideológica.

E Júlia não age passivamente, apenas como duplo da outra, mas, ambiciosa, se propõe a escrever um romance sobre Marta Bernardo. Estabelece, então, uma versão possível para os eventos que culminaram no desaparecimento de Marta, a partir da qual se estabelece o segundo grande tema de Sem nome, o da criação ficcional.

Desde Partes de África, esta tem sido uma das obsessões da ficção macediana: discutir as formas do romance contemporâneo. Uma das maneiras de fazê-lo, além de evocar alguns grandes nomes do passado — Machado, Sterne, Castelo Branco, Garrett —, foi criar um narrador, intitulado Helder Macedo, que conduzia o romance enquanto teorizava sobre a escrita.

Em Sem nome, a mudança da voz narrativa para a terceira pessoa estabelece uma pequena diferença em relação aos livros anteriores: quase não há intervenções metaficcionais diretas por parte do narrador, e a história transcorre por capítulos inteiros, sem interrupções desta ordem. Apesar disso, uma voz narrativa que questiona a estrutura do texto ainda se faz ouvir, seja embutindo comentários sobre literatura nas falas das personagens ou dissimulado-os em outros trechos da narrativa. Destaca-se, por exemplo, a discussão a respeito do duplo na literatura, feita por um dos personagens, e que será central para a elaboração do romance de Júlia de Sousa.

Helder Macedo já disse, em mais de uma ocasião enquanto divulgava o livro, que se tratava, entre outras coisas, de um romance de aprendizagem, sobre o amadurecimento de Júlia. De fato, o processo de escrever sobre Marta Bernardo, composto por muitos equívocos e alguns acertos, reflete-se claramente na mudança da personalidade de Júlia. De início, ela é como uma personagem vazia, sem um caráter definido: divide-se entre dois amigos, com os quais mantém, em suas próprias palavras, relações de “faz de conta”. Com o amigo de infância, Duarte Fróis, é estabelecido um jogo de sexualidade com requintes de crueldade; com o quase namorado, o jornalista veterano Carlos Ventura, a relação entre mestre e pupila é balanceada com um relacionamento sexual absolutamente indiferente para ela. Para cada um dos dois homens, ela assume uma persona diferente. Já sua história com José Viana estabelece um outro patamar para o jogo de identidades, pois entra em cena um duplo fantasmático, Marta Bernardo. Reconstituir um passado plausível e possível para esta “presente ausência” que é Marta é ter que se enfrentar a si mesma, sem disfarces. E Júlia descobre que escrever sobre o passado é sempre escrever sobre si mesma. Nas palavras do narrador, “o que se imagina tem sempre mais a ver com quem imagina do que com que é imaginado”.

Enfim: se este não parece ser o romance mais bem acabado de Helder Macedo, é porque, estruturalmente, espelha o impasse de seus temas, principalmente a crise das identidades políticas e artísticas, e a função da ficção em um mundo onde as utopias entraram em colapso. Um romance inteligente como Sem nome promove as perguntas sem respondê-las didaticamente, e sem ceder às concessões da literatura de mercado.

Quanto ao título do romance, Macedo conta uma pequena anedota: aprendendo a manusear o computador, nomeou o arquivo do romance, temporariamente, como “Sem nome” até que, ao final da redação, descobriu que não poderia ser outro o título do livro. Ao leitor, restam algumas pistas: a expressão “sem nome” aparece ao menos duas vezes no corpo do romance. Uma delas, nas palavras de José Viana, ao se referir a novas formas de engajamento político no Portugal de hoje. A segunda, quando o narrador se refere à sensação de liberdade experimentada por Júlia ao sentir-se, pela primeira vez, “senhora de si própria”, experiência derivada de sua busca pela maturidade literária. Realizar-se como escritora é, para Júlia, poder criar uma nova identidade. E, nos dois casos — a luta política e a dedicação artística — trata-se de ações em aberto, que apontam para o futuro. Ainda a serem definidas.

Sem nome
Helder Macedo
Record
240 págs.
Helder Macedo
Nasceu em 1935, na África do Sul. Passou a infância em Moçambique, mudou-se para Portugal e, desde 1960, mora em Londres, onde rege a cátedra Camões no King’s College. Após o 25 de Abril, voltou por um curto período a Portugal e foi ministro da Cultura no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. É poeta, ensaísta e romancista. Autor de Vesperal, Das fronteiras, Partes de África, Viagem de Inverno, Pedro e Paula, Vícios e virtudes, entre outros.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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