Em 1968, ao discursar durante a cerimônia em que recebeu um prêmio de incentivo do governo austríaco, Thomas Bernhard expressou-se de maneira categórica: “Os séculos são pobres de espírito, o demoníaco em nós é a prisão perpétua da terra dos pais, onde os componentes da tolice e da brutalidade mais intransigente tornaram-se necessidades cotidianas. O Estado é uma estrutura condenada permanentemente ao fracasso; o povo, uma estrutura condenada sem cessar à infâmia e à fraqueza de espírito”.
E prosseguiu, sem deixar qualquer margem de dúvida em relação ao seu pensamento: “Somos austríacos, somos apáticos; somos a vida, a vida como indiferença à vida, vulgarmente compartilhada; somos, no processo da natureza, a loucura das grandezas, o sentido da loucura de grandeza como porvir. Não temos nada que dizer, exceto que somos lamentáveis […]”. Ao final do discurso, num clima de absoluto mal-estar, o ministro da Educação e os responsáveis pelo prêmio retiraram-se do local.
O incidente, um marco na biografia do autor, é emblemático no sentido de revelar não só o lado corrosivo de uma personalidade, mas também a veemência que toda a obra de Bernhard expressa.
Não por outra razão, se iniciarmos a leitura de Origem pelo relato A causa (publicado em 1975), deixando para o fim o capítulo Uma criança (publicado em 1982) — ou seja, se seguirmos a ordem original em que os textos foram divulgados pelo autor e não a proposta pela edição brasileira —, veremos que o primeiro intuito da narração é radiografar, a seu modo, a realidade daqueles anos entre 1943 e 1945, durante os quais Bernhard estudou em um internato para meninos — “um cárcere projetado com refinamento”, diz ele —, sob o comando de um oficial-modelo do exército hitlerista e da SA, a temida milícia paramilitar do Partido Nacional-Socialista.
Naquela Áustria anexada à Alemanha, na Salzburgo “completamente entregue à estupidez do catolicismo e dominada por essa estupidez católica, bem como, à época, nazista até os ossos”, nasce o país apático que Bernhard condenaria, décadas mais tarde, não só em seus discursos e entrevistas, mas em todos os seus livros, até a morte, em fevereiro de 1989.
Hipocrisia e provincianismo
Para compreendermos, parcialmente, o que movia Bernhard — e termos uma visão mais ampla do universo focalizado em Origem — é importante recuperarmos os fatos históricos centrais daquele período.
Com o nascimento da República — depois da renúncia de Carlos I, o último imperador austro-húngaro, em 1918 —, a Áustria foi reduzida a um território diminuto, de economia frágil, e que passaria a experimentar crises cada vez mais graves, até o assassinato pelos nazistas, em 1934, de Engelbert Dollfuss, substituído na chancelaria pelo pusilânime Kurt von Schuschnigg, que, isolado pelos países do Eixo, renunciaria em 1938, permitindo a entrada triunfal de Hitler e a anexação da Áustria à Alemanha, ratificada por um plebiscito no qual os nazistas obtiveram 99% dos votos.
É exatamente nesse período que têm início os anos de formação de Bernhard. Ele conheceu não só o despotismo nazista, mas, posteriormente, as humilhações sob o controle das tropas aliadas e os difíceis anos de reconstrução do país, com sucessivas crises econômicas, até que a Áustria começasse a se recuperar, entre o final da década de 1950 e início dos anos 60. Em 1955, o escritor, adulto, respondeu a seu primeiro processo por difamação, em conseqüência de um artigo contra o teatro de Salzburgo, e encontrava-se na fase durante a qual migrou do mundo da música (Bernhard foi aluno de canto, encenação e arte dramática no Mozarteum de Salzburgo) para a literatura e a dramaturgia (seu primeiro romance, Gelo, data de 1963).
Na verdade, o apoio incondicional ao nazismo permaneceu como uma nódoa na história da Áustria majoritariamente católica. E é sob esse manto de hipócrita consensualidade que as forças políticas presentes nas décadas de 30 e 40 continuarão a atuar, agora sob novos disfarces. Em 1986, por exemplo, eleito presidente da Áustria pelo Partido Popular, Kurt Waldheim foi acusado de participação em crimes de guerra nazistas, mas permaneceu teimosamente no poder até 1992, condenando o país a seis anos de isolamento internacional.
Some-se a este panorama o provincianismo desalentador criticado por inúmeros intelectuais e teremos completado o cenário em que Bernhard gerou toda a sua obra — uma Áustria que parecia ter esquecido Albert Schnitzler, Hermann Broch e Robert Musil, para ficarmos apenas entre os escritores.
O narrador perverso
À parte o cenário histórico, no entanto, os relatos presentes em Origem inspiram a desconfiança inicial que toda narrativa autobiográfica desperta, pois, à medida que a leitura avança, torna-se claro que nos deparamos com a voz de um narrador cuja preocupação central não é contar a vida do autor. Essa suspeita transforma-se em certeza quando, depois de lermos os quatro relatos finais do livro (os primeiros a serem publicados na Áustria), passamos à leitura de Uma criança. Neste, surge uma voz coloquial cujo objetivo é, aí sim, principalmente relatar os fatos em um célere fluxo de acontecimentos, como se, finalmente, Bernhard se dispusesse a escrever sua autobiografia.
O melhor nos aguarda, contudo, em A causa, O porão, A respiração e O frio, quando nos deparamos com um discurso prolixo, no qual há uma deliberada intenção de amplificar os fatos por meio de um estilo persuasivo, hiperbólico, marcado de contínuos incrementos que somam, linha a linha, novas camadas de significados a um mesmo fato, como se o narrador construísse uma espiral ascendente, acrescentando, a cada nova curva, uma série de sinônimos e de imprevisíveis acumulações.
O leitor se vê, assim, enredado por sucessivos acréscimos de ênfases, conglomeradas nessa espiral audaciosa que busca, página a página, criar um clima de estranhamento e mitificação.
Torna-se evidente, no transcorrer dos blocos monolíticos em que os relatos se organizam, o objetivo perverso do narrador. O texto, impregnado de disfemismos, numa tensão incansável, atribui, de maneira exaustiva, características exageradas e negativas aos acontecimentos e aos estados de ânimo. Amplia-se o drama do “eu” protagonista, de forma a se expressar uma condenação absoluta.
A questão é que não se encontra em pauta a exposição da verdade. O narrador tem consciência de que “toda história sempre foi falsificada e passada adiante como tal”, e caracteriza a si mesmo como parcial e provocador:
Minha tarefa só pode ser a de comunicar minhas percepções, tenham elas o efeito que tiverem, relatar sempre as percepções que me pareçam dignas de comunicar aos outros aquilo que estou vendo ou aquilo que ainda hoje trago na memória, quando, como agora, volto os olhos para trinta anos atrás; se muita coisa já não me é clara, outras se revelam com demasiada nitidez, como se tivessem acontecido ontem. A fim de se salvar, os interlocutores não acreditam, e com freqüência descrêem do que há de mais óbvio. As pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser […]. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas.
Em um longo trecho entre as páginas 242 e 244, o narrador enfoca claramente o problema da verdade e da mentira, tratando-as como conceitos indignos de confiança:
A verdade, só a conhece quem foi afetado por ela, penso eu; e se desejar comunicá-la aos outros, será de pronto transformado num mentiroso. […] Escrever sobre uma época, um período da existência […] é coletar centenas, milhares, milhões de falsidades e falsificações conhecidas daquele que escreve como verdades, e nada além de verdades. […] O descrito clarifica algo que decerto corresponde ao desejo de verdade daquele que descreve, mas não à verdade em si, porque essa não é possível comunicar.
Mais à frente, ele concluirá, asseverando a supremacia da narração em si mesma, desvinculada do que poderia ser ou não avaliado como verdadeiro:
A razão já me proibiu há muito tempo de dizer e escrever a verdade, porque fazê-lo é apenas dizer e escrever uma mentira, mas, para mim, escrever é necessidade vital, e é por isso mesmo, por esse motivo, que escrevo, ainda que tudo que escreva nada mais seja do que mentira que, por meu intermédio, é transmitida como verdade.
Ora, esse narrador, para quem “apenas o desavergonhado é capaz de escrever, […] só o desavergonhado supremo é autêntico”, guarda consigo a consciência de que até mesmo “a língua é inútil, quando se trata de falar a verdade”, pois ela “permite àquele que escreve apenas uma aproximação sempre e somente desesperada — e, por isso mesmo, duvidosa —, aproximação em relação ao objeto, só refletindo o autêntico falseado, o terrivelmente distorcido”.
Mas, apesar de sua justificada desconfiança, ele nos oferece, em sua insistência pessimista e dramática, por meio de reiterações asfixiantes, contaminadas de ceticismo, páginas capazes de nos libertar da escravidão do senso comum, alertando-nos de que só “a desesperança” nos traz “clareza sobre as pessoas, as coisas, as relações, o passado, o futuro […]”.
Há trechos inesquecíveis, seja por sua crueza, seja por seu lirismo consternado, pleno de mágoa e de lucidez cortante: o menino que exercita o violino entre as estantes lotadas de sapatos suados e que pensa apenas em suicidar-se; o encontro com a mão decepada de uma criança, em meio aos prédios destruídos por um bombardeio aéreo; a permanente repugnância pela escola; o retorno ao internato nacional-socialista, depois do final da guerra, agora transformado em escola católica, na qual ele encontra a mesma realidade do período nazista, mas sob um cenário diferente (“onde antes estivera pendurado o retrato de Hitler, dali pendia uma grande cruz”); o contraditório relacionamento com a mãe; o amor absoluto pelo avô, a figura magnífica do livro; as cenas terrivelmente depressivas na casa de repouso de Grossgmain e no sanatório de Grafenhof; a descoberta de Dostoiévski, ao ler Os demônios. Trechos nos quais ele nos hipnotiza com sua mórbida retórica.
Dessas páginas, nas quais o narrador exercita até o paroxismo o método que propõe a si mesmo — “decompor, desmontar e desagregar os objetos de minha contemplação” —, não emerge a verdade certamente almejada por alguns leitores, que devem buscá-la na biografia escrita pelo tradutor espanhol de Bernhard, o premiadíssimo Miguel Sáenz.
Esse narrador despojado de qualquer inocência nos previne de que “somos tudo e nada”, e que “no exato meio-termo entre uma coisa e outra, sucumbimos cedo ou tarde”. Ele disseca a vida com esmero e frieza, convidando-nos a olhar, sem temor, para o caos e a escuridão que se escondem nas dobras da existência — e também dentro de nós.