A mulher olhava para o homem, rijo no caixão, mãos empalmadas, a expressão serena no rosto pálido. Pelo canto dos olhos, espiou as meninas, ao pé do morto, a olhar para o pai finalmente acalmado de todo. De repente, como se soubessem que eram espreitadas, elas, juntas, olharam para a mãe sem o menor movimento de pálpebras ou lábios. Ela soube que poderia confiar. Então, ajeitou mais uma vez a camisa do defunto, olhou ao longo do corpo e, disfarçadamente, procurou alguma sujeira no piso, abaixo do caixão. Nada encontrando ali, tornou a se concentrar, lábios em suaves movimentos.
Maldito seja até no fogo dos infernos, murmurava, bem baixo para que sequer as crianças pudessem intuir das preces que resmoneava. E cada pensamento seu, em fingida oração, parecia brotar do estômago e vir queimando esôfago acima, até sair com acidez pela boca dolorida. Desejou cuspir, pois sentia que aquelas golfadas não eram produto da imaginação, mas do ódio a lhe sangrar as entranhas para alívio de tanta nojeira. Definitivamente, Deus lhe iluminara a ação, fortalecendo-lhe o braço e o grito de liberdade.
Tornou a olhar as crianças, estranhamente tranqüilas. Temera por elas. Espiou os poucos acompanhantes do velório. Eram os vizinhos menos distantes, do outro lado da lagoa. Foi então que ela se moveu em direção à janela. Espiou ao longe o gramado áspero, a figueira quase tombada, o início da praia de areia e juncos. A brisa penteava de leve a água, clara e rasa, ali; escura e profunda, na outra margem, renovava o ar que vinha pela janela e beijava as faces hirtas do senhor da casa.
Ela inspirou forte e se deixou embriagar pela brisa, se levar pela janela afora, levitar sobre a extensão das águas. Descobria-se com asas capazes de as levar dali, superar o cume dos costões da serra no outro lado, pegar o caminho para a cidade. Sim, determinou-se, venderia o que sobrara das terras e compraria uma pequena casa na cidade. Poria as crianças na escola para que adquirissem conhecimentos e tivessem sonhos. Estariam livres da sanha miserável do pai.
Do que mesmo morreu ele?
Ela se voltou para o velho, com lábios entreabertos, esperando que, do mais íntimo, a verdade não lhe aflorasse. As crianças mexeram braços, coçaram o rosto, descolaram pés do chão e olharam para a mãe, não como se pedissem socorro, mas como se fossem muletas para ela. A menor gemeu, dolorida, e a mãe foi imediatamente ampará-la, tocando muito de leve as costas da criança, para não mexer com feridas. A outra, um ano mais velha, mal soluçou.
Coitadinhas, murmurou quase inaudível o visitante. Tão pequenas e sem pai!
E a mulher, olhando com raiva para o homem, deixou escapar: Graças a Deus!
O visitante voltou-se para ela, assustado. Sabia quem fora o senhor da casa, sabia das cicatrizes no rosto da mulher, sabia das marcas no lombo das crianças, sabia das prostitutas e dos porres incontáveis, das brigas em canchas de bocha ou em carreiras. Mas, mesmo assim, ele permanecia com o olhar agudo, investigando a viúva que achou por bem completar a frase: Graças a Deus posso criá-las.
Sim, é claro! O homem sabia de coisas mais. E completou: Que Deus a proteja, filha. Ainda vais encontrar um bom homem.
Ela crispou o rosto. Sentiu que o sangue lhe vinha violento pela garganta e era podre, fétido, precisava se limpar. Abraçou as crianças com braços longos demais, longos no tempo, longos na dor, longos no amor que as protegeria. Então vomitou o grito:
Homem nunca mais! Só capado.
As meninas soluçaram.