Inquietações a propósito da vida

Crônicas de Rosiska Darcy de Oliveira surpreendem pela leveza, tom poético, sensibilidade e simplicidade
Rosiska Darcy de Oliveira, autora de “A natureza do escorpião”
01/06/2006

“Na solidão da África, no país mais pobre do mundo, na aldeia mais perdida e miserável, vi a noite mais linda, encontrei a mais cálida hospitalidade e serviram-me a melhor galinha da minha vida.”

Fosse pela regra jornalística, não deveria começar o texto com uma citação, técnica discutível e reservada para casos muito especiais, em que as citações são realmente impactantes para o conjunto do artigo.

Pois não há forma melhor de se iniciar uma resenha sobre A natureza do escorpião, de Rosiska Darcy de Oliveira, do que com a citação acima, da crônica Inquietações a propósito de galinhas. É um trecho que representa profundamente este livro, para o bem e para a surpresa.

Rosiska, conhecida pelo perfil intelectual, alta formação acadêmica, e pela luta sem concessões pelos direitos da mulher, surpreende com leveza, tom poético, sensibilidade e simplicidade, a começar pelos termos escolhidos, como a palavra galinha.

Num mundo de tanto pedantismo, de tanto luxo, nada mais divertido e relaxante do que ver uma pessoa escrever, com segurança e humildade, a palavra galinha. Não frango, ou ave, mas uma simples galinha. Não, não é ruim escrever galinha, e nem é ruim gostar de um bom prato de galinha, ensina Rosiska.

É com sua sinceridade — que só não soa ingênua porque antes de se abrir o livro é impossível desprezar o fato de que Rosiska é uma intelectual respeitada mundo afora — que a autora conquista o leitor.

E na primeira parte do livro, em que fala da infância, uma feminista conta que sua primeira batalha por direitos iguais aos dos meninos foi para também ter o privilégio de limpar o galinheiro e “portanto, a oportunidade de ascender à suprema felicidade: encontrar um ovo entre os gravetos imundos atrás do poleiro”.

E assim, sem medo de se expor, Rosiska nos mostra uma trajetória estritamente comum, com uma formação saudável e caseira, antes de surgir a ensaísta que deambulou pelo mundo.

É graças a esse apego ao caseiro e ao nostálgico que Rosiska consegue tornar mais factíveis suas crônicas, pois, independentemente do assunto, há sempre uma linha de comparação em que prevalece a simplicidade prática, e não o hermetismo intelectual.

Apaixonada pelo carnaval desde a infância, a carioca Rosiska relembra os tempos dos bailes infantis, ou das fantasias baratas e criativas, do tempo que carnaval era apenas carnaval, até chegar ao estágio atual, em que o que impera é a máxima de Nelson Rodrigues de que carnaval é mulher (nos dias de hoje, a mulher nua).

Em Fantasia de mulher, Rosiska recorda de quando o sisudo avô foi flagrado pela avó sambando na avenida de peruca ruiva e seios postiços. Enquanto a prática de homens fantasiarem-se de mulheres ainda persiste, Rosiska percebe um novo carnaval.

Hoje, no Carnaval do nu, são as mulheres que se fantasiam de mulheres. Uma fantasiada dela mesma quando era jovem, outra lipoaspirada dela mesma quando era magra. Uma terceira, que nasceu feinha, em versão passada a limpo, exibe a fantasia de mulher bonita. Nas avenidas desfilam as fantasias incorporadas na pele, o ano inteiro, e que nasceram de outras fantasias. As máscaras entraram nos rostos, para o resto da vida.

Rosiska, que discorre com propriedade não apenas sobre galinhas e carnavais, mas também sobre política, sociologia e economia, é também uma crítica mordaz da ineficiência dos governantes em combater a violência, do consumo pelo consumo, da pressão do mercado e das grifes (“os pobres compram produtos piratas não pelos produtos, mas porque os produtos têm a grife desejada”).

Apesar de algumas de suas crônicas serem datadas, a maioria continua atual. Não exatamente porque a autora desejasse, mas porque os problemas permanecem, se não no mesmo lugar, pelo menos da mesma forma, como revela em No subterrâneo dos sentimentos, para finalizar com uma citação: “Não nos iludamos sobre nós mesmos. A civilização foi uma lentíssima construção e, na ausência de normas, quando o entorno lembra a selva, a besta acorda, célere, pronta a atacar”.

A natureza do escorpião
Rosiska Darcy de Oliveira
Rocco
197 págs.
Rosiska Darcy de Oliveira
Nasceu no Rio de Janeiro. Viveu exilada na Suíça, onde estudou com Jean Piaget, e doutorou-se na Universidade de Genebra. É escritora, autora de Elogio da diferença, A dama e o unicórnio, Outono de ouro e sangue e Reengenharia do tempo, entre outros.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho