Coordeno oficinas de criação literária há quatro anos. Meu método pedagógico baseia-se em parte no método de João Silvério Trevisan, cuja proveitosa oficina eu freqüentei no final dos anos 80, e em parte no método pedagógico da própria vida: tentativa e erro, decepção e surpresa, melancolia e epifania. Meu método é estocástico, ele se alimenta da contingência, do imprevisto, do acidente, da coincidência, do acaso, da incerteza, do aleatório. Tenho, planejados e anotados, todos os encontros de minha oficina, mas quase nunca sigo esse planejamento ou releio as anotações. Geralmente prefiro o improviso.
A dinâmica da oficina é muito simples e, talvez por isso, bastante eficiente: durante os encontros todos os participantes tornam-se autores e também críticos da obra alheia. Uma vez que o papel do coordenador não é exatamente o de professor ou juiz, mas de fomentador, cabe ao grupo avaliar a produção do próprio grupo. O coordenador propõe exercícios que devem ser feitos na sala ou em casa, recomenda textos teóricos sobre certos aspectos da literatura e incentiva o debate. Os participantes escrevem e lêem seus textos, que são avaliados pelo coordenador e pelos colegas. E assim vai.
Literatura é arte, e, sendo arte, é algo que está sempre em busca da liberdade plena (mesmo que a liberdade plena seja apenas ilusão). Quando o assunto é a prosa, a poesia ou a proesia, não há regras, fórmulas ou definições indiscutíveis e definitivas. Não há manual ou catecismo, ficções e poemas não são automóveis ou geladeiras. Na literatura, como na vida, tudo está em perpétua mutação, tudo é permitido. Estas notas sobre a atividade literária não foram gravadas em um disco de diamante que durará milênios, elas foram escritas em papel comum, que em poucos anos estará amarelo e mofado. São notas provisórias (como as de nosso pobre papel-moeda), à espera de algo melhor.
Definir é determinar a extensão ou os limites de algo. É limitar, demarcar, explicar o significado, dar a conhecer de maneira exata, expor com precisão, indicar o verdadeiro sentido. É enunciar os atributos essenciais e específicos de determinada coisa, de modo que a torne inconfundível com outra. Existem várias definições de conto (a definição clássica, a moderna, a pós-moderna, por exemplo), mas, na minha opinião, a melhor definição é a mais sucinta e abrangente: o conto é a narrativa curta, menor que o romance e a novela. Ponto final. Já a diferença entre o conto e a crônica é de natureza, não de extensão. O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar.
A diferença estrutural entre o conto e as narrativas mais longas (a novela e o romance) não é de natureza, é de extensão: o conto é sempre sintético (aqui a situação ficcional está superconcentrada, pois o conto trata de um único tema), ao passo que a novela e o romance são sempre analíticos (aqui a situação ficcional é constituída de vários temas e de muitas tramas paralelas). Não importa se o conto é fantástico, filosófico, psicológico, erótico, romântico, policial, de suspense, de ficção científica ou de aventura, ele sempre apresentará cinco categorias básicas, que são as mesmas da novela e do romance: o narrador, as personagens, o tempo, o espaço e o enredo.
Essas cinco categorias jamais surgem com a mesma intensidade. No preparo de sua especialidade culinária cada autor pode dosar esses ingredientes como bem entender. A variação na intensidade dos ingredientes é que possibilita os cinco diferentes tipos de conto. Há o conto em que predomina o narrador, há o conto em que predomina a personagem, há o conto em que predomina o tempo, há o conto em que predomina o espaço e há o conto em que predomina o enredo.
Estatisticamente existem mais contos de narrador, personagem e enredo do que de tempo e espaço. Os contos de narrador e os de personagem são muito parecidos e estão no extremo oposto do eixo que liga estes aos contos de enredo.
Levando em conta esses extremos e o cabo-de-guerra que sempre ocorre entre o narrador (ou a personagem, com a qual muitas vezes se confunde) e o enredo, o conto pode ser estruturado de duas formas: há contos de narrador simples (ou personagem simples) com enredo complexo (esses são os contos que seguem o modelo clássico: Boccaccio, Maupassant, Machado de Assis) e há contos com narrador complexo (ou personagem complexa) com enredo simples (esses são os contos que seguem o modelo moderno: Joyce, Guimarães Rosa, Clarice Lispector).
Eu particularmente prefiro o segundo tipo de conto, em que o universo psíquico do narrador ou das personagens surge com mais força. Esses contos tendem a ser mais passionais, menos harmoniosos, mais desequilibrados, exatamente como a maioria das pessoas. Neles, o antropocentrismo e a certeza clássica dá lugar à dúvida e a relatividade moderna. Mas é claro que não estou afirmando que o segundo tipo de conto é sempre qualitativamente superior ao primeiro. A literatura não é tão simples assim. Revelei apenas minha preferência atual (preferência provisória, como tudo na minha vida: não garanto que ela não vá mudar com o tempo).
Boa prosa
Primeiro conselho importante para quem deseja escrever boa prosa (conto, novela ou romance): não deixe de ler bons poemas. Digo isso porque tenho notado que a maioria dos prosadores não aprecia a arte poética, assim como a maioria dos poetas não aprecia a arte da prosa. Isso não é sinal de inteligência. A arte da prosa e a do verso, quando dão as mãos, lucram bastante uma com a outra. Não resta dúvida de que a maior parte da má prosa escrita no mundo nasce de prosadores que ganhariam muito se fossem mais poéticos, do mesmo jeito que boa parte dos maus poemas escritos no mundo nasce de poetas que ganhariam muito se fossem mais prosaicos.
O prosador deve apreciar não só os bons poemas como também a boa música, o bom cinema, o bom teatro, a boa arte erudita e popular (os quadrinhos, os videogames, a MPB, os seriados de tevê). Como já foi dito (nunca é demais enfatizar), em seu sentido pleno, poesia é tudo o que, presente em algo feito por mãos humanas, desperta em nós o sentimento do belo. Daí ser bastante pertinente falar da poesia do conto, da novela, do romance, da música, do cinema e da própria poesia: do haicai, do soneto, da elegia, da ode, da epopéia…
As resenhas, os ensaios, as dissertações e as teses, ou seja, os textos teóricos, de análise crítica e de história das artes e da literatura, também têm que fazer parte da dieta do prosador e do poeta.
Segundo conselho importante para quem deseja escrever boa prosa: a literatura de ficção, da mesma maneira que os poemas mais interessantes, é antes de tudo linguagem, não enredo. Uma boa história não resultará num bom conto, numa boa novela ou num bom romance se o trabalho com a linguagem não for cuidadoso. O prosador não deve procurar com avidez o mínimo denominador comum: apenas a linguagem que é acessível à maioria das pessoas. Quem faz isso são os autores de best-sellers, simples contadores de histórias, não os verdadeiros escritores. Mas atenção: isso não significa que o inverso seja verdadeiro. A narrativa e o poema herméticos, acessíveis apenas aos poucos leitores iniciados, não são obrigatoriamente verdadeiras peças literárias. O valor poético de certas narrativas e de certos poemas experimentais brota muitas vezes do equilíbrio: a linguagem nem é cifrada demais nem banal demais.
Terceiro conselho importante: evite os estereótipos, fuja dos clichês, corra dos chavões, não marque encontro com os lugares-comuns. O critério originalidade não é exclusivo apenas do desfile das escolas de samba, ele ainda faz sentido também na atividade literária. Evite as representações engessadas do amor romântico, da luta de classes, do sentimento religioso. Evite principalmente imitar o estilo e repetir os temas dos autores canônicos, sejam eles realistas, surrealistas, concretistas, regionalistas ou existencialistas.
Quarto conselho: bons sentimentos não fazem boa literatura. Afaste-se do tratamento edificante, repleto de boas intenções. A sociedade está cheia de defeitos, porém a melhor forma de propor soluções não é produzir literatura doutrinária: prosa e versos panfletários, com o objetivo de defender determinada crença política, social ou religiosa. A literatura é sempre do contra, sua função é desmascarar a hipocrisia oculta em todas as causas, por mais nobres que sejam. É por essa razão que o poder muitas vezes rejeita a boa literatura, tentando amordaçar os autores mais críticos e contundentes.
Quinto conselho: a função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor. O pintor japonês Kazuaki Tanahashi diz isso de maneira mais suave: “O que é agradável aos olhos não é perigoso”. Se a narrativa e o poema passam o tempo todo adulando o leitor, dando-lhe somente o que ele deseja, evitando constrangê-lo ou contrariá-lo, essa narrativa e esse poema são péssimas peças literárias. Mas atenção: isso não significa que o inverso seja verdadeiro. A narrativa e o poema que passam o tempo todo insultando o leitor, criando constrangimento e mal-estar perpétuos, não são obrigatoriamente verdadeiras peças literárias. Muitas vezes o valor poético de certas narrativas e de certos poemas está no jogo entre a delicadeza e a grosseria, entre a suavidade e a dureza, entre o doce e o amargo.
Sexto conselho: liberte o humor e a fantasia. O senso de humor e a imaginação exacerbada têm grande importância na literatura contemporânea. A função da literatura é criticar a realidade em que vivemos, é mostrar as mazelas da sociedade e do ser humano. Não existe crítica mais contundente do que a do humor sofisticado, que faz o leitor sorrir e ao mesmo tempo refletir sobre os problemas do mundo. Muitas vezes esse humor nasce dos exageros da imaginação: para fugir dos clichês e dos estereótipos, o escritor passa a usar e a abusar da matéria literária, criando neologismos, fraturando o discurso e compondo mosaicos, parodiando autores consagrados, misturando matéria-prima erudita (os clássicos) e vulgar (a cultura de massas), ou seja, enlouquecendo saudavelmente seu texto.
O humor, o nonsense e a irreverência são ótimas portas para a liberdade plena a que eu me referia há pouco. Não estou falando da piada, do deboche ou da palhaçada, cujo objetivo é arrancar gargalhadas da platéia. Estou falando do humor sofisticado, também conhecido como “exercício de lógica sutil” (Pirandello) que revela os aspectos ridículos e incoerentes dos seres humanos e a hipocrisia das relações sociais. Mas é importante que o escritor saiba rir dos outros e também de si mesmo. Não levar tão a sério nem mesmo a prática literária, esse é o caminho para o autoconhecimento.