“Em nenhum momento tive a presunção de esgotar o que há na poesia pernambucana neste volume de 629 páginas. Mas consegui reunir 161 poetas que nasceram em Pernambuco ou que fizeram de Pernambuco seu domicílio literário. Acredito que a mostra é expressiva para a pretensão de um painel mais histórico que crítico, não-seletivo, apenas amostra mesmo.”
É o que afirma a ensaísta Cláudia Cordeiro, professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Recife, que organizou, juntamente com Antonio Campos, Pernambuco, terra da poesia, um painel da poesia pernambucana do século 16 ao 21. O livro faz parte do projeto Vozes Pernambucanas.
Todo mundo sabe que organizar uma antologia poética é dar um mergulho no inferno. Significa arrumar desafetos para o resto da vida. Houve quem utilizasse a expressão “canalha” para se referir a um dos nomes que compõem essa antologia, o que exemplifica bem os ânimos que cercam obras com este feitio.
A verdade é que este livro representa um documento consistente sobre a poesia produzida em Pernambuco, terra de nomes expressivos da poesia brasileira. O crítico e poeta Hildeberto Barbosa Filho observa que o livro “impõe-se como um dos mais ousados projetos de organização da cultura, em especial da cultura literária no segmento da poesia”. Explica que não se trata de uma antologia, e sim, de uma coletânea, uma reunião, de um mapeamento da poesia de Pernambuco.
Gilberto Mendonça Teles chama a atenção para o critério de escolha dos nomes reunidos: “Percebe-se a interferência de critérios sutis, psicológicos e analógicos, de gosto, de estilo e de conhecimento estético-literário”. Observa que, de qualquer forma, Pernambuco, terra da poesia, “é uma preciosa representação da produção cultural de uma região do Brasil”.
Está correto. O livro é isso mesmo, a começar por Bento Teixeira (1550-1600) e Rita Joanna de Souza (1696-1718), até a geração 65, lembrando grandes nomes da poesia brasileira, entre eles Manuel Bandeira, Olegário Mariano, Ascenso Ferreira, João Cabral de Melo Neto, e até Ariano Suassuna e Gilberto Freyre — presente com dois poemas —, sem contar Dom Hélder Câmara. Destaque-se, ainda, que os organizadores incluíram no livro até aquelas figuras que se dizem poetas de uma corrente melancólica e que representa uma espécie de deboche da poesia brasileira.
De qualquer maneira, trata-se de um documento importante. No Brasil pouquíssimas coisas são importantes. Especialmente no que diz respeito à poesia. Neste caso, mais documentos assim deveriam existir, até porque este é um país que cultiva apenas mentiras. Quando aparece algo que não se confunde com a mentira, isso chega a chocar alguns indivíduos que têm poder na cena literária do país.
Outros
Tanussi Cardoso é um belo poeta do Rio de Janeiro e isso pode ser visto em Exercício do olhar, no qual sinaliza a poesia desse livro com Marcel Proust como epígrafe: “A verdadeira viagem não consiste em chegar a novas terras, mas em ver com outros olhos”. Um poeta sério, o que já seria o bastante. Tanussi demonstra mais nos poemas com uma elaboração consciente de quem conhece o ofício de escrever poemas com honestidade. Sobre ele escreveu Affonso Romano Sant’Anna: “Sua poesia é mesmo da melhor qualidade: densa, criativa, funcionando oral ou escritamente, reinventando-se continuamente”. Exercício do olhar é uma viagem nessa densidade que exige o poema: “a vida se vai como o gelo se desfaz;/ lento, frio, queimando as mãos./ nem as baratas me comovem mais./ nem as moscas. nem os cães”. Tanussi sabe onde está pisando, tem os pés no chão em relação à poesia e ao poema: “os sons sibilam na noite/ febre rindo dos umbigos/ e o poema e sua insônia e seu ruído/ é sílaba assonante e insana/ miragem de rimas/ é na noite que o silêncio se faz/ e o poeta esgrima”.
Na verdade, os poetas verdadeiros esgrimam mesmo e sempre saem feridos. Aí reside a poesia. Aí está a palavra.
Haikuazes é o título do novo livro do poeta Hamilton Faria, que nasceu em Curitiba e vive em São Paulo há 25 anos. Autor de cinco livros, Hamilton diz que o poema deve ultrapassar o estado de livro. Por isso realiza recitais de poesia desde os anos 70 e isso inclui leituras de poemas até em outros países. Por exemplo: está agora voltando de Paris onde foi homenageado como poeta brasileiro. A ordem do poeta neste livro é resumir o poema numa forma que lembra o haicai. Observa, no entanto, que não se trata de haicai, do qual guarda apenas o espírito. Haikuazes pode representar poder de síntese. Explica: textos mínimos num universo de emoções onde o poeta solta seus rios que se bifurcam em pequenos fios cristalinos que se transformam em viagens sonhadas. Hamilton Faria sabe lidar com as palavras, sendo o poeta que é, longe das badalações literárias e compromissado especialmente com um trabalho árduo que é o poema, que é a poesia: “Pequena estrela/ Solitária habita/ minha vida precária”, escreve em A estrela e o precário. Rêverie diz: “Envelhecer/ Como uma luz/ Azul”. Outro pequeno poema, (In) Permanência, confirma o rumo poético de Hamilton Faria: “Poesia não pare de rodar/ O mundo é circular”. Sobretudo inteligente, coisa rara. Só um poeta de verdade poderia escrever o poema Eremita: “Na estrada um velho/ À procura do imutável/ Descobre o eterno”.
O poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo está comemorando 40 anos de poesia, publicando O cão de olhos amarelos (A Girafa). Nesses 40 anos, o poeta nascido em Jaboatão, em 1942, publicou 12 livros de uma poesia honesta. Essa é a expressão mais correta para falar destes poemas de um poeta de trajetória digna. Por que digna? Porque a poesia de Cunha Melo sempre trilhou os rumos da poesia que se respeita como poesia, do poema que se respeita como poema. O poeta explica que a primeira parte de seu livro são monométricos (octassilábicos). Homenageia, como diz, uma forma poética da poesia japonesa já extinta, a renka, que repete tercetos ou dísticos. Cunha Melo é um poeta preocupado com a forma do poema, com a estrutura do poema, sempre se dedicando a uma elaboração distante das facilidades atuais na poesia brasileira. Mesmo o verso livre — digamos — tem seu ritmo estabelecido por música. Alfredo Bosi destaca: “…quer-me parecer que O cão de olhos amarelos se vale da retomada frásica e rítmica com vistas a outro efeito, a rigor oposto ao da melopéia encantatória. Trata-se de um modo de compor que tem a ver com o desígnio intelectual de chamar a atenção para o cerne semântico do poema”. Correto. “Devo escrever aquele livro/ que sonho ler desde criança:/ um livro para mim, um guia/ de escoteiro, um mapa de estrelas”, escreve Cunha Melo, em O livro projetado, que diz ainda: “Alta parede sem limites,/ minha estante bate no céu/ mas está faltando o volume/ encadernado pelo sol”. É um poeta na mais correta acepção da palavra, o que mostra que não existe vida poética só no famigerado eixo Rio-São Paulo. Ainda se fala nisso. Nesse eixo existem, de fato, muitos equívocos e mentiras. A poesia de Alberto da Cunha Melo prova que nem tudo se perdeu.
Isso vale também para a poesia de uma mulher chamada Leila Echaime, de São Paulo, autora de vários livros e que publica agora Delírios, seguindo a linha que adotou para sua obra poética — uma palavra feminina de fina elaboração — desde Flauta silente (Roswitha Kemprf, 1981). Leila corre pela margem. Senhora de si. Nada de alardes. Pelo contrário: escondida num universo mágico. De poesia mágica, sem invenções. Uma poesia clara. Diz o que tem a dizer e ponto final, a exemplo de várias outras mulheres poetas desta terra, como Astrid Cabral, Suzana Vargas, Dalila Teles Veras, Maria Lúcia Dal Farra, Maria Carpi, Myriam Fraga, Beatriz Helena Ramos Amaral, Neide Archanjo, Eunice Arruda, Flora Figueiredo, Helena Armond, Lília A. Pereira da Silva e Marize Castro, para citar apenas alguns nomes. Leila Echaime fala de solidão, de noite, de dor, com uma linguagem de mulher: “É que me sinto entre/ Todos/ A mais contrita/ A de dor inaudita/ A de morte perdoada”. Pouco se sabe de Leila Echaime. Desaparece por anos. De repente ressurge num livro que publica com discrição. Está distante das palavras vazias de tanta crítica literária que vive de favores entre amigos. O trecho de um de seus poemas deste Delírios certamente pode ser o seu retrato: “E dos meus sonhos/ E tristeza/ Gerei em mim/ Uma trágica beleza/ e uma estranha/ Comoção”. Dora Ferreira da Silva se sentiria feliz em ler versos assim.