Muito já se escreveu a respeito desse gênero fluido, não afeito a sistematizações, que adquiriu características peculiares no Brasil — a crônica. E talvez não exista melhor forma de compreendê-lo do que folheando uma coletânea dos textos de Rubem Braga, quando relemos o que foi escrito sob o impulso do momento, para suportes efêmeros como jornais e revistas, mas que alcançou uma densidade metafórica semelhante à dos melhores contos ou romances.
Saliente-se, contudo, a peculiaridade da crônica: a poesia, o drama ou a carga humorística encontram-se em pouquíssimas linhas, jamais concentrados a ponto de se tornarem imperceptíveis, nunca diluídos em dezenas ou centenas de páginas, num vaivém às vezes estonteante de personagens, mas oferecidos ao leitor naquela dose exata, precisa, que se equilibra entre o fato comum e a construção textual que eleva o dia-a-dia corriqueiro a um exercício não só de fantasia, mas de verdadeira recriação do cotidiano, revelando-nos o que Antonio Candido definiu com perfeição e simplicidade: “a grandeza do miúdo”.
Essa é, certamente, a melhor vocação desse gênero: erguer o circunstancial à categoria da metáfora que se espraia para além do texto e nos comunica a mensagem que obriga a refletir, nos conduz àquele instante no qual a verdade — ou somente um delicado prazer — surge de maneira inesperada. E com um detalhe fundamental: sem qualquer grandiloqüência.
No que se refere ao leitor de jornal ou de revista, a crônica se assemelharia a um momento de suspensão do real, quando, ao virar a página, nos distanciamos do sobe-e-desce dos juros, das denúncias de corrupção e da variedade de crimes que notabiliza nossa espécie, para adentrar o universo que oferece uma pausa entre tantas loucuras, uma viagem ao que se esconde nos meandros da realidade.
Entretanto, quando retiradas do seu veículo original e transpostas para o livro, as crônicas passam por um teste severo, exigente: encadernadas e postas lado a lado com os outros gêneros literários, elas nos dirão se, de fato, conseguiram colocar-se acima do que é meramente casual.
Melhores ou piores?
É exatamente esse tipo de prova que enfrentam algumas das crônicas de Roberto Drummond — o conhecido autor dos romances Hilda Furacão e Os mortos não dançam valsa, entre outros —, publicadas de 1989 a 2002 nos jornais Estado de Minas e Hoje em Dia, e agora reunidas para formar um volume da coleção Melhores Crônicas, da Editora Global.
Há textos deliciosos, como O mistério do telefone tocando no meio da madrugada, que nos oferece o lirismo e o humor nascidos do imprevisto, mas temperados com uma simpática mineirice. Ou Envolvendo Many Catão, na qual o autor conseguiu mesclar memória e processo de criação, revelando, em cenas breves, duas vidas que se cruzam: a do autor e a de uma mulher que parecia aguardá-lo há muito tempo, apenas para servir como sua personagem. Em um preciso jogo de tempo e imagística, Roberto Drummond nos revela não apenas parte de seu percurso como escritor, mas insere a figura de Many Catão em uma penumbra fascinante, na qual ela se torna a personagem que sempre existiu, que se antecipou ao seu criador e que já o aguardava, latente, silenciosa, escondida.
Na crônica Recordações de Belô City quando Deus estava feliz da vida, encontramos um texto evocativo, pungente graças ao eterno tema da amizade e à maneira sincera com que o autor se desnuda. E se desejarmos um exemplo de como recursos extremamente simples podem criar uma beleza tocante, basta lermos A menina das rosas ou Uma história de amor. Nesta última, inclusive, o autor utiliza certo recurso estilístico que provoca um desvio no enredo, resolvido apenas no final. Recurso, aliás, usado também em Lembranças de uma noite em que aconteceu o apagão, na qual Roberto Drummond consegue deixar o leitor perplexo, ainda que desejando um outro final.
O autor abusa, entretanto, da anáfora, criando repetições cansativas. Insiste nesse recurso com pertinácia inaceitável e chega a dar a impressão, em certos momentos, de que está enfadado de escrever. Se lemos Para curar um mal de amor, chegamos ao final com a palavra “tinha” repercutindo cansativamente em nossos ouvidos. E o mesmo ocorre em Para torcer contra o vento: depois de séries de “é”, “cheira”, “muda”, “que” e “vi” repetidos ad nauseam, o texto termina deixando a sensação de não ter, efetivamente, se concretizado.
Na crônica Homem procurando Deus, aos intermináveis “procurou” vem somar-se certa religiosidade infantil, certa catequese disfarçada por um lirismo inconvincente. E a mesma religiosidade, acrescida da febre de repetir, fazem de Onde Jesus está um amontoado de material indistinto, próprio do proselitismo mais vulgar, encontrável também no texto Xô, Satanás!.
Além dos textos completamente datados — caso de Como é que pode, Brasil? e É tempo de herói —, encontramos crônicas marcadas por um comprometimento social fácil, destituído de qualquer reflexão e cansativamente apelativo. É o caso de Para ler (ou rezar), com suas entediantes repetições; A menina cor de chocolate — verdadeira peça de engajamento monótono —, e Abaixo o racismo, viva o negro! e Em defesa dos gays, duas litanias piegas.
Há também lugares-comuns desconcertantes, salientando-se os que terminam com a risível “cotovia que aprendeu a rezar”, em Para uma moça com Aids, ou a “língua do coração” de Carta a Milton Nascimento, ou, ainda, “a feia é linda” de Em defesa das feias. E, finalmente, a crônica mais decepcionante de todas: É Natal.
Questões mais sutis nos aguardam, contudo. Em Os meninos dos dias de hoje, um diálogo, que deveria ser marcado pelo humor, termina sem despertar qualquer interesse, prejudicado pela falta de timing e de precisão vocabular. Uma sucessão de acontecimentos comuns — acompanhados de recalcitrantes “tinha” e “é” — alcança seu final sem passar do estágio de uma lista recheada de ocorrências banais, na crônica Uma cena na praça. O clima de ansiedade não se materializa no texto Crime no parque, pois as expressões escolhidas mostram-se fracas na tarefa de gerar expectativa; e chegamos ao final sabendo qual será o desfecho. A repetição — mais uma vez — e a sucessão de frases soltas, como se colocadas a esmo no papel, matam o núcleo de A insônia dos amantes, cujo tema, se tratado de outra forma, poderia revelar o lirismo que Roberto Drummond soube expressar perfeitamente em outros momentos.
Estranhas ocorrências
A coletânea nos oferece também algumas ocorrências curiosas, pois há assuntos que se repetem de maneira incompreensível, obrigando-nos a acreditar que não houve qualquer critério de seleção na escolha dos textos, a não ser o estabelecimento de um período de tempo.
O cego e a bela e O cego e a bela desnuda são praticamente iguais. E diante da inocência da primeira, um dos melhores textos do livro — no qual, chegando ao fim, percebemos a vida que teima em prosseguir, apesar das decepções e das tristezas, amparada exclusivamente no sonho, mesmo quando ele é inatingível —, a segunda crônica perde completamente a razão de ser e de estar no livro.
O fantasma de tia Júlia e Um estranho episódio sofrem de um mal semelhante, tendo apenas três páginas a separá-las, de tal forma que o mesmo ladrão parece ter passado duas vezes, quiçá na mesma noite, pelo desconforto de ser confundido com uma mulher.
Por fim, o tema da adúltera é visitado em três oportunidades, sendo que a primeira — Cheiros e perfumes – é a crônica de melhor ritmo, culminada pelo marido triunfante e, logo a seguir, um final perfeito, em que o sentimento de culpa permanece irresolvido. Quanto às outras duas, Evelina… e a tentação nasce marcada pelo substrato moralista que acaba por prevalecer sobre os sonhos da personagem, e a terceira adúltera, devota do Menino Jesus de Praga, encontra o destino que o título mal escolhido já nos revelara antecipadamente: Com um tiro no coração.
Ao final do volume é impossível não nos perguntarmos se Roberto Drummond teria sido realmente esse cronista que abusava das fórmulas fáceis. Ele não dominava essa faceta do seu ofício de escrever? Ou, pressionado pelo tempo, preocupado com seus romances, não se dispunha ao desgastante trabalho de elaboração sintética que a crônica exige? São perguntas que, frente ao material escolhido para compor o livro, permanecem sem resposta.
Altos e baixos são compreensíveis naqueles que têm a obrigação do texto semanal ou diário, mas que tantos momentos infelizes sejam escolhidos para fazer parte de uma coletânea que pretende oferecer o melhor de Roberto Drummond, isso é cometer, no mínimo, uma terrível injustiça.