Primeiro pesadelo

“Memória de elefante”, livro de estréia do consagrado Lobo Antunes, é marco do romance português pós-Revolução dos Cravos
Lobo Antunes: arredio a badalações.
01/06/2006

António Lobo Antunes é um escritor singular. Arredio a modismos, premiações e entrevistas, o autor de Esplendor de Portugal já se mostrou um crítico mordaz não apenas de José Saramago, com quem é constantemente comparado, mas de muitos autores de sua geração: Agustina Bessa-Luís, Virgílio Ferreira e Lídia Jorge são alguns representantes do que Lobo Antunes já chamou de uma literatura menor, chata, interessante apenas à crítica universitária. Tais julgamentos (injustos, é preciso que se diga), além de anedotas com sabor de fofoca, ajudam a compor uma imagem bastante particular, de artista original e algo excêntrico, que não faz concessões ao bom gosto e a literatices. Imagem confirmada por sua literatura, que já foi chamada de anti-acadêmica e barroca, e escapa aos padrões mais correntes de definição. Não à toa, seu Não entres tão depressa nessa noite escura (2000) recebeu, um pouco provocativamente, o subtítulo de “poema”.

Médico “por acaso” (leia-se: conveniência familiar), Lobo Antunes pôde se dedicar exclusivamente à literatura após o sucesso de seu primeiro livro, Memória de elefante (1979). Trata-se, de fato, de um marco no romance português pós-Revolução dos Cravos. Após a revolução, em 1974, seguiram-se alguns anos de silêncio criativo, e os esperados títulos que se julgava estarem escondidos no fundo das gavetas, aguardado o fim da ditadura para se revelarem, custaram um pouco a sair.  Talvez de início favorecido por certa avidez por novos títulos, o romance de Lobo Antunes foi um sucesso de crítica e público, junto ao hoje pouco comentado O que diz Molero (1977), de Dinis Machado. A estes se seguiram os próprios livros de Lobo Antunes Os cus de Judas (1979) e Conhecimento do inferno (1980), além de Levantado do chão (1980), de José Saramago, O dia dos prodígios (1980), de Lídia Jorge, e um sem-número de títulos de qualidade, responsáveis por aquilo que muitos chamaram de boom do romance português. Além dos estreantes, mantinham uma produção intensa autores como José Cardoso Pires, Fernando Namora, Maria Velho da Costa, Almeida Faria e Augusto Abelaira. Tratava-se, convenhamos, de um time nada desprezível de ficcionistas.

Hoje em dia, Memória de elefante não parece agradar ao seu autor. Lobo Antunes o julga um livro de principiante, charmoso em seus defeitos, cujo mérito seria guardar alguns dos procedimentos desenvolvidos em sua obra posterior. Falsa modéstia ou não, é aparentemente comum entre os críticos de sua obra considerar seus primeiros três romances (que, segundo o autor, comporiam um grande romance em três partes, e não uma trilogia) como textos de aprimoramento de sua obra posterior, mais madura. Mas apenas uma leitura comparativa mais detalhada nos daria a real dimensão destas afirmações. De qualquer forma, é preciso deixar bastante claro que romances como Memória de elefante e Os cus de Judas são muito mais do que projetos literários incompletos: são obras de uma força narrativa e uma originalidade de que poucas vezes se aproximou a literatura contemporânea.

Lembranças de guerra
O enredo de Memória de elefante, com forte inspiração autobiográfica, é relativamente simples: acompanhamos a vida de um médico psiquiatra durante 24 horas, no hospital, na rua, em um bar. Após uma dolorosa experiência na guerra colonial em Angola, seu casamento se desfaz e o psiquiatra se encontra em um estado de depressão e autocomiseração que se alterna com ataques irados contra a sociedade portuguesa e as instituições de que faz parte.

Logo nas primeiras páginas delineia-se um personagem rancoroso, envolto numa “revolta que o transcendia”: revolta contra o porteiro do hospital, com seu gordo sorriso “a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar”; revolta contra a classe dos psiquiatras, estes “etiquetadores pomposos do sofrimento”, cuja atividade consiste em recolher dinheiro e exercer a “única forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia”; e revolta contra si mesmo: “puta que pariu a mim”, pragueja, depois de maldizer todo o hospital.

A narrativa inicia-se em terceira pessoa, mas é de tal modo contaminada pela voz do protagonista que, por vezes, estabelece-se um único fluxo de pensamento, que discorre sobre pequenas observações do espaço e das pessoas à sua volta, ao mesmo tempo em que é assaltado por esta memória “de elefante”, que não pode simplesmente ignorar. Misturam-se lembranças da guerra, de um núcleo familiar desfeito e de uma infância não idealizada: “Quando é que eu me fodi?”, pergunta a si mesmo, em busca de um “trauma” primordial na infância que tivesse provocado seu atual estado.

O conflito básico desta personalidade tumultuada está condensado no fragmento abaixo:

Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência […]: no fundo era como se, através dele, se repetisse um Fr. Luís de Sousa de blazer.

No drama de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, dado como morto na batalha de Alcácer Quibir, retorna à sua casa e encontra sua esposa novamente casada. A vida prosseguiu sem ele, que não se encaixa na nova ordem da família e do país: daí ele se dizer “ninguém”. Em sentido semelhante, psiquiatra de Lobo Antunes é um estrangeiro, um estranho em sua própria cidade, em seu trabalho, em sua família.

A comparação revela também um dos procedimentos mais marcantes do romance, o da intertextualidade. Sem forças para racionalizar a crise que enfrenta, o psiquiatra só consegue dar forma a determinadas impressões e sentimentos por meio das referências literárias: em um momento particularmente curioso, ele se compara à gaivota de Anton Tchekhov, aproximando a angústia da referida peça à escrita de F. Scott Fitzgerald. Estão presentes ainda nomes considerados centrais na literatura de Lobo Antunes, como Louis-Ferdinand Celine e Dylan Thomas, além de Cesário Verde, Luís de Camões, e até Charlie Parker e Paul Simon.

E as referências à música popular e a ícones da cultura pop, como John Wayne, não são discriminadas da cultura mais letrada. Da mesma forma, o tom elevado e solene de determinadas reflexões alterna-se com um rebaixamento de tom que pode beirar o escatológico, e expressões de repertório poético substituem palavras do mais baixo calão. Tais contradições compõem não apenas um quadro de oscilações de temperamento, como também a dificuldade em achar um registro que represente sua crise pessoal. Resultam dessas contradições laivos de uma cínica ironia, passível até mesmo de gerar humor, mesmo que amargo.

Mas a característica formal mais marcante de Memória de elefante é o ostensivo uso da linguagem metafórica, da prosopopéia, e da animalização de coisas e pessoas. A cidade é transfigurada metaforicamente, em um procedimento que já foi apontado (equivocadamente) como tributário do realismo mágico latino-americano. Alternam-se muitas metáforas visuais, algo absurdas, fruto de um estado de quase delírio. Assim, os óculos da arquivista do hospital “lhe aumentavam os olhos até às proporções de hirsutos insectos gigantescos cercados de enormes patas de pestanas”; os internos flutuam “na claridade das janelas como viajantes submarinos entre duas águas”; uma estante rotativa é um “pinheiro de metal adubado por um estrume de jornais de direita empilhados no chão”; e, na rua, os carros se movimentam lânguidos, “à maneira de grandes gatos ávidos, tripulados por senhores que envelheciam como as violetas murcham, numa doçura magoada”. O resultado é de pesadelo.

O mundo do qual se está alheio se transforma, monstruosamente. Encadeiam-se idéias, imagens, em associações regidas pelo ritmo da memória, e que deixam entrever a angústia de não conseguir se comunicar, a assumida incapacidade em abandonar seu estado de isolamento interior, o adiamento constante de um novo início (que ainda é possível):

O psiquiatra desejou com desespero um esperanto que abolisse as distâncias exteriores e interiores que separam as pessoas, aparelho verbal capaz de abrir janelas de manhã nas fundas noites de cada criatura como certos poemas de Ezra Pound nos mostram de súbito os sótãos de nós mesmos num maravilhamento de revelação: a certeza de ter topado um companheiro de viagem em banco à primeira vista vazio e a alegria da partilha inesperada.

Talvez a saída seja mesmo escrever, apesar de tudo: não por acaso, no romance seguinte, Os cus de Judas, o protagonista assume a narrativa, em primeira pessoa. E foi assim com o próprio Lobo Antunes, que consolidou uma vasta produção literária, uma das mais originais dos últimos 30 anos.

Memória de elefante
António Lobo Antunes
Objetiva
198 págs.
António Lobo Antunes
Nasceu em Lisboa, em 1942. É psiquiatra e escritor, autor de cerca de 15 livros, entre eles Os cus de Judas, Boa tarde às coisas aqui de baixo e Esplendor de Portugal. Lutou em Angola, na Guerra Colonial Portuguesa, entre os anos de 1970 e 1973, fato que marcou profundamente a sua obra.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

Rascunho