Estilo e vaidade

Biografia de José de Alencar escrita por Lira Neto faz uma releitura necessária da obra e do pensamento político de um dos maiores romancistas do Brasil
Lira Neto, autor de “O inimigo do rei”
01/07/2006

De uns tempos para cá, as biografias têm despontado como gênero de não-ficção ideal para que o público leitor possa conhecer a performance de autores, cineastas, artistas, intelectuais e grandes nomes que, para o bem e para o mal, tiveram uma contribuição significativa para o desenvolvimento de suas respectivas áreas. E o leitor deste artigo não se espante com a frase inicial deste parágrafo, pois há pouco tempo a biografia foi (re)descoberta no Brasil. Só isso explica o fato de só muito recentemente termos acesso às abrangentes obras interpretativas acerca de Machado de Assis (escrita por Daniel Piza) e de José de Alencar, assinada pelo jornalista e escritor Lira Neto, lançada agora pela Editora Globo. Em O inimigo do rei, Lira Neto traz um elucidativo relato da trajetória de José de Alencar, apontando os indícios de como a vida e a obra do escritor estiveram muito próximas uma da outra.

Nas primeiras linhas da biografia, como que para mostrar de cara a personalidade de José de Alencar, o autor já indica um pouco de seu estilo. Não se trata de crítica literária, mas do relato de uma polêmica travada entre Alencar, já consagrado homem público, e seus desafetos na política. Características realçadas: ironia, capacidade de irritar o interlocutor e, acima de tudo, vaidade. Tudo é vaidade, está escrito no livro bíblico dos Eclesiastes. E houve quem dissesse também que o estilo é o homem. Aprende-se, logo de cara, portanto, que o estilo e a vaidade são marcas indeléveis desse que foi um dos grandes artífices da literatura brasileira.

No entanto, a fim de refazer os primeiros passos de José de Alencar, Lira Neto discorre em dois capítulos acerca do pai do escritor, o padre José Martiniano Pereira de Alencar. Em poucas palavras, pode-se dizer que foi um padre liberal em todos os aspectos. Pois tanto na vida pública quanto na privada esteve cercado de polêmica, já que não escondia que era um namorador ávido e, por outro lado, era membro de sociedades secretas, como a que conspirava a favor da maioridade do imperador D. Pedro II. Pode-se dizer que a contextualização histórica é excessiva, uma vez que pouco se fala do biografado diretamente. É indiretamente, contudo, que a referência fica valendo. É evidente, por exemplo, que o debate de idéias dentro de casa faz brotar no menino José de Alencar as raízes da polêmica. E como o outro diria: “O menino é pai do homem”.

Outros elementos surgiriam nesse primeiro momento, como a vaidade de José de Alencar. Já naquela época, por exemplo, ele queria ser o primeiro da classe e se entristecia com a possibilidade de não sê-lo. Lira Neto ressalta, ainda, o fato de o menino Alencar ler os romances populares da época para sua mãe. Declamava-os em voz alta e, assim, adquiria não somente o gosto pela leitura, como também um certo apreço por uma leitura que hoje qualificaríamos como popularesca, mas que falava diretamente aos interesses dos leitores.

Juventude
Essas primeiras impressões da juventude seriam fundamentais na construção literária de Alencar, que não apreciava em nada o rebuscamento de uma literatura que se afirmava como nacional. Cabe ressaltar que essa percepção só foi possível a partir da leitura de obras que lhe serviram como base. Nesse aspecto, o seu escritor de formação foi ninguém mais ninguém menos que Honoré de Balzac. Lida com esforço graças ao francês (naquela época) atualizado do Napoleão das Letras, a Comédia humana tornou-se, para o autor brasileiro, um referencial para aquilo que desejava fazer. Nas palavras de Lira Neto:

Foi como uma revelação. Para Alencar, desde já, o grande desafio seria escrever, em português, obras que representassem para o Brasil o que as de Balzac, Dumas, Chateaubriand e Hugo representavam para a França. Em outras palavras, inventar uma literatura de sabor nacional. No caso do Brasil, criar um estilo tropical. Um caminho que nem de longe ele imaginava ainda poder trilhar.

Se o escritor ainda não estava pronto, era necessário forjá-lo. Para tanto, direta ou indiretamente, José de Alencar foi às portas do jornalismo para fazer algo pelo que tomou apreço: polemizar. Se o seu jeito aparentava uma certa timidez, que poderia ser confundida com gravidade de espírito, era nas palavras que se transformava. Passava a ter a verve, a contar com a fluidez literária, características cruciais para atrair a atenção do leitor. Afora isso, sempre buscava como tema algo que pudesse ser do interesse da classe intelectual do Segundo Reinado.

Foi assim, aliás, que conseguiu a atenção da chamada classe artística da Corte. Num texto assinado por pseudônimo, Alencar espinafrou o poema A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães. A obra, conforme explica Lira Neto, fazia parte do projeto proposto por D. Pedro II para criar a nacionalidade brasileira. Alencar — ou melhor, Ig — não pensava assim. Por isso, desancou a peça literária em quatro longas cartas e, quando já não esperava mais por qualquer resposta, obteve-a de um intelectual de renome, o escritor e pintor José Manuel de Araújo Porto-Alegre. A resposta deste desencadeou inúmeras outras manifestações, réplicas e insultos, alcançando, inclusive, a figura do próprio Imperador, que teve de, por fim, responder ele mesmo (sob pseudônimo) às intervenções de José de Alencar. Este, por sinal, já se deu por satisfeito e até publicou a série de Cartas sobre a Confederação dos Tamoios em livro.

Questões fundamentais
Nesse momento, duas questões passam a ser fundamentais para José de Alencar: a política e a construção de uma literatura genuinamente nacional. E esses intentos foram perseguidos com afinco, muito embora se reconheça, hoje, muito mais o segundo do que o primeiro. O motivo parece, nesse aspecto, bastante visível, uma vez que obras como O Guarani e Iracema tornaram-se verdadeiros símbolos da chamada literatura indianista brasileira. Em certo aspecto, contribui para tanto o fato de os romances de José de Alencar serem permeados das mesmas causas e urgências — leia-se aqui dramas — que ele encontrava nas festas freqüentadas naquela época. Lira Neto, nesse ponto, explica de que maneira ele transformava tragédias e desilusões amorosas em literatura. E a dor dos românticos era, sobretudo, sentimental, repleta de adjetivos, algo que representava muito bem a forma que explicitava Alencar.

Já no que se refere à política, a participação de José de Alencar como um antípoda de D. Pedro II é mostrada por Lira Neto como um projeto ainda mais audacioso do que a sua literatura. Nesse sentido, para o autor de Lucíola¸ o Imperador era uma esfinge a ser desconstruída, fosse por sua aparência ilustrada — D. Pedro II sempre aparecia nas imagens rodeado de livros —, fosse por sua parca análise política em momentos decisivos da História do Brasil, como durante o período da Guerra do Paraguai. E o curioso é que, diferentemente da oposição de ocasião, José de Alencar atacava o imperador mesmo quando estava sem o apoio dos liberais e dos conservadores.

Entre uma polêmica política e outra, não parava de escrever. E o biógrafo revela que as viagens serviam como períodos em que ele preparava o material de seus romances, como ocorreu com Ubirajara e O sertanejo.

O estudo da literatura brasileira costuma analisar a obra de José de Alencar sob um viés comportado, de alguém que inclusive estava ligado a um conservadorismo estético, sendo por esse motivo tema de um ensaio de Machado de Assis, Instinto de nacionalidade, acerca de questões estéticas e da produção artística nacional. A biografia de Lira Neto, nesse sentido, é importante porque traz uma releitura necessária daquele que foi a grande referência do romance brasileiro durante boa parte do século 19. Certamente, sua obra foi superada pela de Machado, mas, ainda assim, este não existiria sem Alencar, o primeiro a abrir as portas de uma publicação para o Bruxo do Cosme Velho.   

Para além de uma biografia sobre as querelas da vida de um escritor brasileiro, Inimigo do Rei é também uma ótima introdução para uma releitura da obra de José de Alencar.

Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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