A coleção Lê Prosa, inaugurada há alguns anos com o relançamento do clássico A. S. A. — Associação dos Solitários Anônimos, de Rosário Fusco, ganha um novo livro: Todo sol mais o Espírito Santo, de Lima Trindade, brasiliense radicado em Salvador. O projeto conta atualmente com seis títulos e pretende lançar somente obras arrojadas e, de alguma maneira, transgressoras.
Os contos de Todo sol aparecem divididos em três partes. A primeira traz histórias sobre a descoberta e — para que o autor se distancie do narrador — apresenta narrativas em primeira e terceira pessoas. Dedicado ao escritor João Silvério Trevisan, o relato que dá nome ao livro é o mais bonito de todo o volume. Brincando com o “homem grego, o relato da Odisséia, os povos mediterrâneos, os ibéricos”, Lima compara um de seus protagonistas a Apolo e mostra ao leitor os entraves de uma paixão platônica entre um jovem e um homem maduro. Ao mesclar o ideário católico com a cultura negra do candomblé, o conto propõe um confronto entre a razão, simbolizada pelo sol, que representa a iluminação, e o espírito, ali considerado santo e isento de culpas.
A segunda parte oferece ao leitor uma linguagem mais seca, sem o lirismo ingênuo e mitificador da primeira parte, embora utilize mais adequadamente as metáforas, como se percebe no trecho inicial do conto Luz mortiça: “A vida me dói até às pontas dos dedos. E vem um esgueirar-se por saídas, um desespero — o quarto”. Mesmo com textos mais intimistas, o escritor consolida o seu distanciamento, recheando suas frases com uma ironia sutil e de qualidade, expondo a fragilidade e a impotência de suas personagens frente à potência destruidora do destino.
Distante dos clichês encontrados nos livros que usam como cenário o panorama caótico das megalópoles e a violência gratuita da sociedade, abordados pela maioria dos jovens autores incensados pelos grandes suplementos literários, Todo sol chega à terceira parte com um humor tão descabido, que beira o pastiche. É a maturidade rindo dos padrões de comportamento dos homens, da realidade absurda do cotidiano e das próprias histórias apresentadas nas duas primeiras partes, como nos trechos de alguns contos: “Lionel era um bom menino que não gostava de gatinhos. Seria engenheiro, professava a mãe. Chaninho fugia, mal despontava o bico do quichute. Por causa da mãe, cresceu sem deus e sem diabo.” e “o bar era daqueles que quando não trocavam de nome, trocavam de dono”.
Editor da revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br) e autor do romance Supermercado da solidão, lançado recentemente pela editora LGE, de Brasília, Lima não abre mão da influência dos quadrinhos, da música pop e da literatura marginal para sustentar seus argumentos e ironizar as panelinhas literárias que sempre germinaram no cenário cultural de São Paulo e Rio de Janeiro. Autor consciencioso, Trindade sabe das dificuldades que enfrentará para chegar aos cadernos culturais dos grandes veículos de comunicação, mas não pretende parar sua produção enquanto questiona o compadrio e as razões da falta de importância dos livros lançados por nossos ficcionistas nos últimos anos.
Lima Trindade honra a coleção inaugurada pelo modernista mineiro Rosário Fusco, um dos idealizadores do movimento Verde, trazendo um texto limpo, claro, escrito por alguém que sabe se posicionar como autor de seu tempo, discutindo temas contemporâneos e conscientemente experimentando os limites da linguagem.