Aos poetas que freqüentam minhas oficinas recomendo que também sigam os seis conselhos publicados no Rascunho de junho e principalmente este, de longe o mais importante de todos: inventem sua própria métrica, evitem o verso de medida fixa, fujam da rima. O poema regularmente metrificado e rimado pertence ao passado glorioso. Hoje seu ritmo mecânico e engessado (cafona até à medula) só faz sentido na música popular e no canto lírico de baixa qualidade. Pensando bem, nem mesmo aí. A literatura não deve ser tratada como passatempo de burocratas afetados e pedantes. Repito: inventem sua própria métrica, evitem o verso de medida fixa, fujam da rima. Se quiserem apreciar a arte do decassílabo ou a do alexandrino, há nas livrarias e nas bibliotecas tamanha quantidade de poemas curtos, médios e longos — os melhores já escritos neste planeta —, que dez vidas serão insuficientes para dar cabo de todos eles.
A poesia está em toda parte, em toda arte. Poesia vem do grego poíesis (de poien: ação de fazer algo, criar, fabricar, transformar), pelo latim poese + -ia. Na literatura a palavra poesia virou sinônimo de poema, causando certa confusão (todo poema é poético?, todo poema encerra poesia?). Inúmeras são as definições dessa poesia literária, dessa qualidade impalpável capaz de, sempre que presente na prosa e no poema, provocar a emoção estética. Cada grande escritor, seja ele prosador ou poeta, tem a sua própria definição. Para Coleridge a poesia são as melhores palavras na sua melhor ordem; para Dante é a ficção retórica posta em música; para Goethe é a fala do infalível; para Heidegger é a fundação do ser mediante a palavra; para Jakobson é a linguagem voltada para sua própria materialidade; para Octavio Paz é a linguagem em estado de pureza selvagem; para Valéry é a permanente hesitação entre o som e o sentido; para Wordsworth é a emoção recolhida em tranqüilidade.
Também essas definições são do tipo lírico, elas comovem o leitor, mas pouco definem, pouco especificam, além de servirem bastante bem para caracterizar certo tipo de prosa menos prosaica. São como a definição sugerida por Albert Camus para a literatura (o exercício da inteligência a serviço da sensibilidade nostálgica ou revoltada), expressão que, em vez de demarcar e restringir determinado sentido, apaga as marcas e amplia os nossos sentidos. Exatamente como fazem os bons textos literários.
Se poesia é a qualidade presente em certos artefatos culturais, capaz de despertar o sentimento do belo e provocar o encantamento estético, se poema é o texto composto em versos (linhas breves) e estrofes, então não é novidade para ninguém que nem todo poema obrigatoriamente é ou contém poesia. Assim como não é novidade para ninguém que a boa prosa de ficção só é boa, verdadeiramente boa, porque está sempre carregada de poesia.
Duas acepções
O fato de o vocábulo poesia ser usado como sinônimo de poema às vezes provoca imprecisão, distorção e desordem. É difícil não sentir a alfinetada do contra-senso, nas ocasiões em que o mau poema ou a má coletânea de poemas são taxados de má poesia. Mas isso acontece todo dia em toda parte e já não tenho certeza se vale o esforço ficar cultivando semelhantes preciosismos. De qualquer forma, tentarei fazer uso apenas da primeira acepção dessa palavra (poesia = qualidade estética). Porém espero que os leitores façam a gentileza de relevar toda vez que, imobilizado pela necessidade sintática ou pela minha pobreza de vocabulário, eu não conseguir deixar de usar o termo na sua segunda e menos proveitosa acepção.
Em literatura, a poesia brota do atrito entre a estrutura física do texto e o conjunto de imagens expressas por esse texto, ou seja, ela brota da fricção entre, de um lado, o som e o desenho do enunciado (ritmo e disposição gráfica do texto) e, de outro, o sentido do enunciado (imagem verbal). Isso vale para as peças em prosa ou em verso. A imagem poética é a associação inesperada e surpreendente de duas outras imagens mais ou menos distantes, mais ou menos banais. Essa associação se dá ora pela condensação das duas imagens em uma só ora pelo deslocamento violento das partes que as constituem. Exatamente como nos sonhos. Ao aproximar as palavras ou as idéias que normalmente não pertencem ao mesmo campo retórico, essa infração semântica, esse desrespeito ao código do idioma cria a faísca que desperta o fascínio poético.
Se a prosa de ficção e o poema precisam estar carregados de poesia, caso queiram ser considerados obras literárias, então a única característica que os distingue e define não é mais a maior (no poema) ou a menor (na ficção) intensidade lírica, não é mais a presença ou a ausência do metro fixo e da rima, ou de outros elementos antes exclusivos do poema: a aliteração, a assonância, a repetição, o refrão, a peculiaridade tipográfica, a inesperada disposição do texto na página branca. Muito do que até há pouco tempo se escreveu sobre a arte do poema hoje também vale para a prosa. Um exemplo: as categorias popularizadas por Pound, que classificava os poemas em melopaicos, fanopaicos e logopaicos, atualmente se prestam muito bem para inúmeros textos em prosa. Afinal a musicalidade (melopéia), o fluxo da imaginação visual (fanopéia) e o jogo de idéias (logopéia) estão bastante presentes na ficção moderna e na contemporânea.
Então não há mais nada que diferencie a prosa do poema? Não há mais nada que os defina? Há, sim. A única característica é o aspecto visual, é a maneira como as palavras estão reunidas na página: em linhas curtas (poema) ou em linhas longas (prosa).
Métrica e rima: verso controverso
Octavio Paz, no ensaio Verso e prosa, afirma que a poesia, por estar ligada ao pensamento analógico e à intuição mítica, é tão antiga quanto a própria linguagem verbal. Filha da imaginação e do ininterrupto fluxo de sons, cheiros, imagens, sabores, sustos, desejos e palavras que circula por nossa mente, a poesia é o estado natural do inconsciente humano. Nesse ponto os antropólogos e a maioria dos poetas estão de acordo.
O homem, antes de chegar à etapa em que forma as idéias universais, forma as idéias imaginárias; antes que possa articular definições, canta; antes que fale em prosa, fala em versos; antes de usar termos técnicos, usa metáforas (Benedetto Croce). Ou seja, o aparecimento da linguagem falada se fez acompanhar de vários atributos: o grito modulado, a mímica, a emoção, a interjeição, o ritmo dos movimentos que se repetem com regularidade (o ato de semear ou remar). Só mais tarde é que surgiram os expedientes da formação lexical: a onomatopéia, a comparação e a metáfora. As culturas intocadas pela civilização letrada só conhecem a poesia, que, esférica, sem começo nem fim, ignora o conceito de progresso tecnológico. A prosa, ao contrário, é linear: filha da razão e do método científico, ela é algo que surgiu tardiamente em nosso planeta. Porém, quando veio, veio com a violência que sempre caracterizou o raciocínio e a lógica.
Nesse mesmo ensaio Paz estabelece duas diferenças: entre metro e ritmo e, em seguida, entre literatura versificada e poesia. Para o poeta mexicano o ritmo é o elemento mais antigo da linguagem verbal, e também o mais presente. Na verdade o ritmo e a linguagem nasceram juntos e caminham juntos, sendo que aquele não existe sem esta e vice-versa. Todas as expressões verbais, líricas ou didáticas, são manifestações do ritmo. Mas é apenas na grande literatura em prosa ou em verso que o ritmo se manifesta plenamente, produzindo poesia. O metro, por outro lado, é o ritmo cristalizado, paralisado, emoldurado, engessado, é a regular sucessão de sílabas átonas e tônicas congelada em certas formas fixas: a redondilha menor e a maior, o hexassílabo, o verso heróico, o alexandrino, etc. No corpo de todo poema metrificado as imagens, querendo a liberdade plena, duelam com a métrica que as cerceia.
O ensaísta pede que não confundamos ritmo com compasso. O primeiro é próprio da criação poética, o segundo é a fórmula mecânica que sustenta o andamento musical, é a batida rigorosa (tensão seguida de repouso, tempo forte seguido de tempo fraco) de sonatas e sinfonias.
Depois dessa hábil reorganização de idéias, Paz subverte a definição convencional de poema e de prosa. Para ele, enquanto boa parte da literatura metrificada não merece ser chamada de poema, textos como Alice no país das maravilhas, Finnegans wake e os contos de Borges, por serem a plena manifestação do ritmo, são bons poemas, não prosa. Valéry dizia que o poema equivale à dança, ao passo que a prosa equivale à marcha militar. Trazendo essa correlação para a arte poética, eu digo que o verso metrificado equivale à marcha, ao passo que o verso livre equivale à dança. Os textos mencionados há pouco, obedecendo ao misterioso e subterrâneo chamado do ritmo, trocaram a marcha militar (a rígida organização imposta pela lógica aristotélico-cartesiana) pela dança (a liberdade associativa do poema, capaz de produzir poesia).