Autor de mais de duas dezenas de livros que cobrem diversos gêneros, Nilto Maciel percorre com desenvoltura várias temáticas, sempre se valendo de uma grande flexibilidade de linguagem, técnica e forma e da manipulação de cenários distintos para construir seus personagens e histórias. Em seu novo livro, A leste da morte, ele reúne 47 contos, matizando universos que extrapolam os territórios geográficos, porque são ressonâncias fiéis do psicológico, da memória, das lembranças e imagens ancestrais, que constituem as experiências afetivas, sociais e humanas que habitam a imaginação e são as referências que sustentam o vasto espectro criativo do autor.
Alternando textos breves ou longos com uma prosa que mantém um pé na tradição e outro na modernidade, Maciel consolida sua força narrativa em histórias que filtram a vida, principalmente a vida do interior, onde o autor colhe matéria para uma artesania literária que incorpora, na maioria das vezes, um vezo de surrealismo. Alguns textos têm a duração de um curta-metragem e trazem, nesse breve arcabouço, um mundo coroado de mistério e misticismo, de sagrado ou de profano, de lenda e de folclore, revelando sutilmente a alma sertaneja, distanciando-se dos clichês da escritura regionalista. Não obstante a cor local de seus contos, a dicção niltoniana ultrapassa as fronteiras dessa geografia carregada de mitologias, porque os dramas e acontecimentos retratados são próprios do homem em qualquer circunstância ou lugar, daí a universalidade de seus relatos.
Trem fantasma, texto que nos faz embarcar no conjunto dessas histórias, revela, tanto pela síntese quanto pelo inusitado e pela surpresa, a tendência fabulatória encontrada em muitos textos do autor, que busca na fantasia, no absurdo, na alegoria ou na caricatura um artifício para compreender a realidade. A exatidão minimalista e fotográfica de alguns contos também nos remete a perceber a influência da instantaneidade, peculiar à oralidade e ao coloquialismo encontradiços na rica cultura popular nordestina.
Nilto aproveita a carga metafórica das histórias do mundo anterior que traz no inconsciente e as reinventa, para guiar o leitor por diversas atmosferas. A ambientação da linguagem, embora sem localização territorial, nos faz reconhecer situações presentes no imaginário do homem do interior, em que prevalecem os velhos cacoetes da vida provinciana, dos burgos, do coronelismo e do cangaço, da religiosidade e das crendices, com seus coronéis, suas lutas de poder, em que vida e morte se digladiam em tênue fronteira. Enfim, um esboço típico dos contrastes entre a modernidade e o arcaísmo, aqui amalgamado por um sutil censo de humor e ironia.
O último vôo da rapina, conto em que o personagem principal é o anagrama do abutre, traz como simbologia a luta pela preservação da vida por meio da busca desenfreada da manutenção dos sonhos, num conto de acento hitchcockiano. Outro bom exemplo de tessitura ficcional encontramos em Os urubus e Deus, explícito viés do fantástico. Em outros momentos, Nilto repovoa suas histórias revisitando temas bíblicos, literários e históricos, como em Caim e Abel, O sonho esquecido, O sétimo aniversário de Branca de Neve, Apontamentos para um ensaio e o paradigmático Maneco, futebol e cerveja, reconstrução da decadência de um jogador, numa perfeita analogia sobre a fugacidade da glória e a transitoriedade do infortúnio.
A perícia de Nilto Maciel é marcante na confecção de Águas de Badu, ao utilizar-se da transcriação literária para dialogar com a profundidade narrativa de Guimarães Rosa, invocando os paradigmas de O burrinho pedrês. E no peculiar O livro infinito, uma espécie de conto dentro do conto, transita pela história, pela literatura, pela música, etc., num espectro em que se discute a própria arte. Impende dizer que para atingir o ápice ou convencer o leitor, Maciel não se vale de nenhum recurso estrambótico, como rupturas ou outros artifícios experimentais de linguagem. Sua prosa se revela moderna, mas sua estrutura é clássica, tradicional, porque o que importa para o autor é o domínio do conteúdo e não o extravasamento da forma.
A leste da morte é um caleidoscópio de temas e situações que consolidam a trajetória de Nilto Maciel, um autor que há três décadas vem se dedicando de corpo e alma à literatura e a cada novo livro, com seu timbre, suas vozes e seu sutil censo de observação, se afirma como um habilidoso artista, que conta e reconta as delícias e asperezas da vida, expondo as grandezas e misérias humanas, com inegável destreza literária.