Um dos grandes prazeres da literatura é acompanhar a obra de um escritor e ver que esta obra melhora com o tempo. É ver que o escritor, longe de ficar preso a uma fórmula de sucesso — como acontece com tantos por aí, que escrevem sempre o mesmo livro e do mesmo jeito —, consegue ver os temas que lhe são caros e a que sempre volta de uma maneira nova, instigante, que mexe conosco. Sonia Coutinho é assim. Seu último trabalho, o livro de contos Ovelha negra e amiga loura, mostra que os anos só fazem bem à qualidade da sua obra.
Neste trabalho, reencontramos os temas preferidos de Sonia — o convite à nossa reflexão por meio do encontro com histórias de vida arriscadas e não necessariamente bem-sucedidas. E nos 12 contos do livro vemos que a experiência se traduz em um texto preciso, enxuto, sem uma vírgula fora do lugar, sem palavras em excesso, nada. Tudo o que é necessário está ali. E nada além do necessário está presente. Ovelha negra e amiga loura é obra de uma escritora com pleno domínio de suas capacidades expressivas.
Uma das características de Ovelha negra e amiga loura é que o conjunto dos seus contos forma uma unidade. Mesmo que as personagens e as situações sejam completamente diferentes, há algo que une todos os textos. Essa característica se encontra presente nos outros trabalhos de Sonia, mas neste a unidade é quase palpável. É preciso concordar com Carlos Ribeiro, que assina a orelha da coletânea: “Os 12 contos deste livro — que, a despeito da diversidade de personagens e histórias reunidas, pode ser lido também como novela, tal a unidade do fio que liga os conflitos neles expostos — …” É isso, é uma novela. Sente-se com ele nas mãos e levante-se apenas ao terminar.
As histórias são de pessoas comuns, normalmente mulheres — mas desta vez com a presença de dois protagonistas —, pessoas que eventualmente convivem conosco mas que não conhecemos. No entanto, as histórias de suas vidas têm o poder de nos mexer, de nos incomodar. Não estou cem por cento de acordo com o que Ribeiro viu: “Assim, em vez de ler este livro a partir da amargura que pareça transpirar de suas páginas, deve-se lê-lo a partir da sabedoria que lhe é intrínseca”. Em muitos casos, entristece acompanhar a história dos personagens de Sonia — gente que sai da Solinas baiana, cidade conservadora que abriga pais conservadores, que obriga seus filhos a tentar seguir seus próprios desejos e ambições na cidade grande, no Rio de Janeiro, nem sempre com o sucesso que o mundo da publicidade jura que está ao alcance de todos, sem amigos ou parceiros, já naquela idade em que a juventude é apenas uma lembrança, nem sempre boa.
Mas uma das funções de um bom escritor é apontar as mazelas de nossas vidas sem ser um chato pregador, um professor de moral e costumes. E quando o leitor olha uma personagem literária e esta personagem o entristece ou incomoda, é porque o leitor reconhece nela um pouco de si próprio. E ao reconhecer isso, o leitor deve estar atento para a mensagem que o escritor, sem querer ser profeta, deixa. Deve tirar a bunda da cadeira para mudar o seu destino, se o que ele lê na continuação o incomoda ainda mais. Pode ser que a tristeza seja provocada tanto pelo medo da solidão sem recompensas no futuro como pelo medo de que sua postura atual possa conduzir a isto. Mas ao mesmo tempo, pode ser que um livro que mexa assim seja o marco para as mudanças necessárias, a água gelada que, ao bater na bunda, faz a gente se mexer.
Uma das qualidades da prosa de Sonia é que ela não tenta “dourar a pílula” da nossa existência. Mulheres que prezam a liberdade acima de tudo e são renegadas por mãe e filha; gente que tentou amar mas nunca conseguiu e no fim habitua-se à solidão, mas nem sempre com a decadência material; gente que sofreu abusos físicos e psicológicos, enfim, há toda sorte de dor no mundo. Sonia sabe dizer isso sem no entanto desfiar um rosário de dores interminável.
Uma das novidades de Sonia neste Ovelha negra e amiga loura é o tom com que ela fecha o livro. Diferentemente de seus outros trabalhos, Sonia escreve um conto — Sem entrar em pânico — com um final otimista, algo de que não me recordo em outros trabalhos seus. Neste conto, Sonia, novamente sem parecer uma pregadora chata ou uma escritora de auto-ajuda, deixa no leitor a impressão de que é possível para todos fazer alguma coisa para mudar um destino que à primeira vista parece imutável. E podemos tirar dali uma lição, a de que mesmo a pior dor pode ser uma coisa boa: “Sua experiência com a doença lhe ensinou o fundamental — a morrer. E, quando se aprende a morrer, aprende-se a viver”. É necessário ter consciência e viver o transcendental — a morte ou o além-vida, cada um chame como quiser de acordo com sua crença — para saber viver ainda melhor o presente. Sem contar, é claro, com um bocado de coragem para enfrentar a realidade.