Já fui jurado em alguns concursos de contos. Os textos nunca trazem o nome real de seus autores. À medida que os leio, costumo dar notas de zero a dez. Os poucos que recebem notas maiores que sete são guardados para serem relidos antes do julgamento final. Os demais (a maioria) vão para o lixo, já que nunca se é obrigado a devolver os contos para as comissões organizadoras. Estivesse em algum concurso em que eu fosse jurado, o conto Sem rodeios iria para o lixo na primeira rodada, com uma nota não superior a dois.
Pela primeira vez, reli um conto com nota baixa. Mesmo assim, não foi possível salvá-lo do latão. A tentativa de melhorar o conceito deste conto só existiu em respeito pelo seu autor, uma das grandes personalidades do mundo na atualidade: Oscar Niemeyer, talvez o brasileiro que mais admiro.
Sou fã de Niemeyer por dois motivos. O primeiro, óbvio, a genialidade na arquitetura. O segundo, a vitalidade. Com 98 anos, Niemeyer continua trabalhando, com projetos em vários lugares do planeta, e uma contínua evolução criativa.
Feita a deferência ao arquiteto, vamos tratar do autor de Sem rodeios. Infelizmente, a genialidade que Niemeyer apresenta nos traços é ausente em sua escrita. Pior ainda, ao arriscar-se numa área que não domina, Niemeyer expõe-se, mostrando que mesmo uma personalidade com sua capacidade intelectual pode soar ingênua ao tentar colocar suas idéias em forma de texto ficcional.
Sem rodeios é um bate-papo entre três amigos, Lucas, Coimbra e Sabino, que conversam sobre política, cultura, livros e mulheres, entre outros assuntos. Só que os temas são tratados com a obviedade dos livros infantis e com um didatismo irritante:
O capitalismo está acabando… e vai lutar até o fim. E Bush, que o representa, não tem outra alternativa… A pobreza cresceu demais, e as cidades, o Rio em especial, estão divididas entre pobres e ricos, e o ódio entre eles presente neste confronto violento a que assistimos todos os dias. Hoje a elite brasileira detesta a pobreza — os negros das favelas, inclusive —; é como se o problema racial estivesse crescendo de novo no país. É a questão racial que sempre existiu entre nós: se você ler o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, vai constatar que, no período colonial, quando um índio casava com uma negra, perdia o emprego.
Lucas, Coimbra e Sabino têm uma única voz, que claramente não pertence a nenhum deles. Mais parecem bonecos a dissimular o discurso de um ventríloquo politizado que quer fazer valer suas idéias sem revelar a identidade. Não vou arriscar-me a afirmar que o ventríloquo é Niemeyer pelo simples fato de que uma pessoa com sua reputação não precisaria de bonecos para expor suas idéias, conhecidas pelo seu caráter humanista e comunista.
É sempre complicado entrar na seara da política, mas não há como deixar de mencionar trechos em que os protagonistas de Sem rodeios defendem Lula, José Dirceu e, acreditem, Hugo Chávez, elogiado por Lucas: “A América Latina se faz mais forte com o aparecimento espetacular de Chávez, que passou a liderar um movimento de defesa desse continente tão ameaçado. Eu apóio o Lula quando o vejo de mãos dadas com Chávez e Kirchner, lutando por uma América Latina unida e mais justa”.
O que salva Sem rodeios de uma nota zero é justamente uma aparição do autor, citado por Lucas quando se imagina passeando pelo Parthenon e lamenta os grandes prédios construídos a sua volta, reduzindo a sua escala, tirando-lhe a imponência que antes exibia: “O espaço faz parte da arquitetura, como um dia li numa entrevista do Oscar Niemeyer. Mas isso não aconteceria se fosse ao Egito visitar as pirâmides, cercadas pelos espaços vazios do deserto, que, pelo contraste, as tornam mais imponentes ainda”.
Acabasse no parágrafo acima, Sem rodeios teria quase valido o esforço da leitura até o final. Mas Niemeyer volta a cometer o equívoco de trocar a magia de sua arquitetura pelas armadilhas da ficção, terminando seu conto com uma frase de Lucas que caberia melhor na campanha presidencial do PT. Relendo Sem rodeios, mantenho o dois para o conto, o que não diminui minha admiração pelo arquiteto nota dez.