A história de Jó não tem muito a ver com paciência, não. Tem, sim, com fé e temor a algo que vem lá do alto. Mesmo que não se saiba exatamente de onde. Jó foi um homem privado de tudo o que tinha de mais valioso: propriedades, fortuna, família, e até mesmo de sua saúde. Tudo resultado de uma espécie de aposta entre Deus e o demônio. Deus dizia que Jó era um cara de fé inabalável. O cão duvidou, disse que era fácil alguém ter fé quando tinha do bom e do melhor. Mas Deus disse: “Faça o que quiser com ele e com o que ele possui, só não estenda a mão contra ele”. Cão que era, tirou de Jó sua casa, suas vaquinhas, seus filhos, e ainda lhe cobriu de feridas todo o corpo. Jó continuou na dele. Não por paciência, mas por respeito a Deus. Ele sabia — ou pensava que sabia — que Deus sempre ajuda aqueles que o temem. E Deus ajudou, é claro.
Essa é uma das histórias mais interessantes da Bíblia. Porque é dramática, é emocionante, tem questionamentos, tem dúvidas. E tem a recompensa a Jó no final. É fácil gostar dessas histórias, porque os dramas das vidas das pessoas nos atraem muito. Olhar, de longe, o sofrimento dos outros nos dá mais força para que enfrentemos o nosso próprio. Muitos escritores sabem disso e tentam recriar situações como essa de Jó. Nem sempre com muita eficiência. O pernambucano Gilvan Lemos fez isso mesmo. E o fez muito bem. Ritual de danação, o primeiro e melhor conto (ele chama de novela, assim como as duas outras histórias seguintes, mas há uma linha tão tênue separando esses dois gêneros…) do livro A era dos besouros, é exatamente uma paráfrase dessa história bíblica. Simão Pedro morava num sótão com a família (Laura, a esposa, e os filhos Maria, Geraldo, Jonas e Letinha). Era sapateiro e o cara mais gente fina das redondezas. Meio mosca-morta aos olhos da mulher, é verdade. Mas um homem trabalhador e bem visto pelos vizinhos. Sua fé em Deus era inabalável. Mesmo quando Jonas foi assassinado por causa de uma briga de traficantes. Mesmo quando Maria fugiu com o vizinho para nunca mais. Mesmo quando Geraldo morreu num acidente de carro. Mesmo quando Laura morreu de câncer. A ficha só começou a cair quando a caçula, Letinha, foi seqüestrada, estuprada e morta. Aí, só Jó mesmo para suportar o fardo.
A segunda história, Alugam-se quartos, também é definida por Lemos como uma novela. Pode ser. Os rótulos não significam muita coisa. O que vale é que é bem contada. Tem muitos personagens e histórias diversas que se entrelaçam ou não. E também não faz diferença. Fala da vida, das vidas em uma cidade grande. Ou mesmo de uma cidade nem tão grande. De amor, da falta dele, do amor entre iguais, de pobreza, ilusões, medos… A terceira história, que dá nome ao livro, é a menos interessante entre as três primeiras do livro — que ainda tem outros quatro contos menores — embora tenha seus momentos. Fala daquele período nebuloso da ditadura militar no Brasil. Coisa que já lemos, escrevemos ou ouvimos muitas vezes. Os outros contos (Amenidades, Bloqueio, Dias e dias e Queima de arquivo) falam de amores pecadores e saudades, de memórias apagadas pelo horror, a vida comezinha, da pobreza e das formas nem sempre muito católicas que se encontram para combatê-la.
Pode até parecer que escrever contos sobre dramas alheios — mas tão nossos — seja fácil. Engano dos grandes. Dar cores, texturas e sabor às pequenas histórias — especialmente àquelas tão próximas às nossas — requer prática, habilidade e talento. Gilvan Lemos tem tudo isso. Sabe escolher muito bem os dramas que estão aí, pelas ruas, nos jornais, na tevê… E sabe botá-los no papel com simplicidade, beleza e competência.