Se encontrássemos nosso vizinho de vez em quando, no elevador ou na padaria da esquina, e, durante breves conversas, ao interrogá-lo sobre as questões aparentemente banais do cotidiano, ele nos respondesse de maneira semelhante à do personagem sr. Keuner, criado por Bertolt Brecht, então, depois de ouvir algumas de suas respostas, concluiríamos: — Esse homem é um provocador. Mas se fôssemos inteligentes e perspicazes o suficiente para compreender nosso vizinho, alcançando algumas das intenções que ele esconde sob suas palavras, poderíamos complementar nossa conclusão, pensando: — Sim, ele é um provocador, mas adorável e genial.
É exatamente essa a certeza que nos acompanha durante a leitura de Histórias do sr. Keuner, publicado pela Editora 34 e traduzido por Paulo César de Souza, já conhecido por suas traduções de Nietzsche e dos poemas de Brecht, também editados, estes últimos, pela mesma editora.
Antes de ser um provocador, contudo, o sr. Keuner é um ironista. Ou, melhor dizendo, ele só alcança o mérito de ser um provocador pelo fato de fazer da ironia a sua melhor arma. E a ironia é, depois da postura ereta e do polegar oponente, uma das mais refinadas conquistas da nossa espécie.
Com o sr. Keuner, Brecht conquistou um lugar invejável no panteão dos ironistas, semelhante ao de, por exemplo, Jonathan Swift, que produziu uma demolidora crítica à desigualdade social, ao escrever o seu Uma modesta proposta, no qual o escritor recomenda que as crianças pobres sejam vendidas para servirem de alimento às famílias abastadas, reconhecendo “que essa Comida será um pouco cara e, portanto, mais adequada para Proprietários de Terras; que, já tendo devorado a maioria dos Pais, parecem plenamente fazer Jus aos Filhos”; e salientando os demais benefícios dessa prática, pois “os que aproveitam tudo (como devo reconhecer que os Tempos exigem) podem esfolar a carcaça, cuja Pele, artificialmente tratada, dará admiráveis Luvas para Senhoras e Botas de Verão para Cavalheiros finos”.
Brecht, de fato, equipara-se a Swift. No texto que talvez seja o mais conhecido da obra, o impagável sr. Keuner retrata o gênero humano com acidez avassaladora, respondendo à filha de sua senhoria, que lhe havia perguntado: “Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais amáveis com os peixinhos?”.
Na única história que ocupa duas páginas, o sr. Keuner usa de uma finíssima irreverência — e de um inigualável bom senso — para vilipendiar alguns de nossos principais costumes e instituições. Ele diz que “se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos […] e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. […] Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes”. Nas escolas que existiriam nas gaiolas, “os peixinhos aprenderiam como nadar em direção às goelas dos tubarões” e “o mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos”, por meio da qual “eles seriam informados de que nada existe de mais belo e sublime do que um peixinho que se sacrifica contente”. E também, é claro, não poderia faltar uma religião: “Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões”. Ao final de sua elucidativa explanação, o sr. Keuner conclui: “Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens”.
A fala do sr. Keuner é mordaz, mas igualmente didática; ele zomba, mas ensina; é inconveniente, mas avança muito além do gracejo. Ele repreende e desaprova, caricatura e escarnece — sempre com elegância e sutileza, pois, acima de tudo, o sr. Keuner é um homem educado.
Um recurso viável?
Há quem considere, no entanto, que a ironia já não pode cumprir qualquer função. Theodor Adorno, no fragmento 134 de seu Minima moralia (Ática), parte do princípio, de que, em um mundo no qual a diferença entre ideologia e realidade desapareceu, “não há mais nenhuma fenda na rocha da ordem estabelecida, onde o irônico possa se agarrar”.
A ironia pressupõe, para que se efetive, um jogo no qual ou utilizamos as palavras em sentidos diferentes dos usuais ou empregamos os vocábulos num determinado sentido, mas de tal maneira, usando recursos estilísticos tais que acabamos por inverter a idéia expressada. Ora, esse processo de aproximação e, ao mesmo tempo, de contraste é impossível de ser realizado, segundo Adorno, em uma sociedade “que recolheu toda a instância a ela contrária”, uniformizando, assim, os discursos e as mensagens.
Mas, caso abdiquemos da ironia, não estaremos pactuando com a mentira que, institucionalizada, pretende se transmutar — ou, no dizer de Adorno, já se transmutou — em verdade absoluta?
Sem dúvida, é discutível se o arcabouço ideológico em que estamos enredados ainda possui fissuras por onde a ironia — e, portanto, a crítica — poderia penetrar. Mas o próprio Adorno faz uso dela, em diferentes momentos, como, por exemplo, no início do fragmento de número 4 — ainda em Minima moralia —, quando inicia suas reflexões partindo do necrológio de um homem de negócios, no qual a linguagem utilizada pelos familiares dá a entender que o falecido era, na verdade, um inescrupuloso, o que permite ao filósofo concluir, com evidente ironia: “Quando se enaltece num homem de idade avançada o fato de ter se tornado uma pessoa especialmente serena, é de se supor que sua vida constitua uma série de feitos infames”.
Portanto, se ainda resta uma única fenda de lucidez, não parece haver melhor instrumento para aumentá-la do que a ironia, pois, como afirmou Henri Lefebvre, em seu Introdução à modernidade (Paz e Terra), ela “tem um papel de salubridade”, e só ela, a ironia, pode “arrancar a máscara de autenticidade ao inautêntico”.
Notável variedade
Brecht escreveu, ao longo de 30 anos — de 1926 a 1956 —, uma variedade incrível de histórias, criando um universo que abrange as diferentes facetas humanas, tendo ao centro o sr. Keuner — ou apenas sr. K. —, pródigo em denunciar as preocupações fúteis da sociedade moderna (O escravo de seus fins); agindo como um sábio, ao caçoar de si mesmo (O esforço dos melhores); alertando-nos sobre o perigo de aceitarmos em silêncio as injustiças (O garoto desamparado) ou de simplesmente sermos sempre os mesmos (O reencontro); e denunciando como a perspectiva da miséria pode aniquilar o homem, a ponto de destituir sua vida de qualquer sentido (Uma boa resposta).
Com inesgotável versatilidade, o sr. Keuner também ensina como a verdadeira amizade exige mais do que a mera polidez (Duas cidades), ou que o critério da objetividade nem sempre é justo (Administração da lei). Ele não mede esforços para inverter certos raciocínios, denunciando, dessa forma, o absurdo de um sistema que busca, continuamente, justificar-se (O funcionário indispensável).
A lógica e as observações do sr. Keuner apresentam, algumas vezes, um tom aparentemente ingênuo, mas que, em seu substrato, carrega uma crítica severa (O horóscopo). Ele pode ser edificante (O sr. Keuner e a maré) ou absolutamente realista (O sr. Keuner e os jornais); sutil ao falar do amor e da convivência entre homens e mulheres (Quem conhece quem?) ou visceralmente ético ao mostrar como a vida e o funcionamento do mundo estão baseados em uma rede de inextricável dependência (Erro e progresso).
E o sr. Keuner jamais abdica do direito de criticar: os escritores (O sr. K. e a poesia), os atores (Dois motoristas) ou os mínimos aspectos do dia-a-dia (O sr. K. dirige automóvel).
Concisão para esfacelar
Além da dramaturgia e dos poemas, Brecht apreciava, na prosa, as formas breves. Fernando Peixoto (em Brecht — Vida e obra, da Paz e Terra) diz que uma de suas obras póstumas mais interessantes é Me-Ti — Livro das transformações, composto de “pequenas narrativas ou preceitos”. Para o biógrafo, Me-Ti — um filósofo oriental que se dedica a discutir, “com extraordinária lucidez, o socialismo e a revolução” — é o “irmão chinês do senhor Keuner”.
O exercício de escrever restringindo-se ao essencial revela um Brecht empenhado na tarefa de ser, antes de tudo, preciso. E seu estilo alcança, de fato, graças inclusive ao laconismo e ao rigor, uma precisão aguda, penetrante. Seu próprio personagem parece reafirmar o objetivo do autor: “Aquele que pensa não usa nenhuma luz a mais, nenhum pedaço de pão a mais, nenhum pensamento a mais” (Organização). E como bem observa Vilma Botrel Coutinho de Melo, no elucidativo posfácio de Histórias do sr. Keuner, “essas peças […] têm como objetivo o reconhecimento mais exato da realidade”.
As historietas do sr. Keuner também podem ser classificadas como chistes, o gênero equivalente, na prosa, ao epigrama (forma poética satírica, concisa, surgida na Antiguidade e que se tornou famosa, entre os latinos, com Marcial e Catulo). A maneira irreverente com que Brecht, em diversos momentos, implode a lógica formal, lançando o leitor em um instigante jogo de antíteses — no qual somos forçados a descobrir nossas próprias conclusões —, insere-se na definição de André Jolles (Formas simples, Editora Cultrix), segundo a qual, se o chiste é uma “forma espirituosa”, isso se deve ao seu “caráter de contra-senso, de contradição, de imprevisto”.
Aliando sua ironia a finais que não apresentam solução ou negam ao leitor a clareza e a facilidade da conclusão, Brecht crava sua cunha nas fissuras da ideologia.
Se o mundo, como afirmou Adorno, “é o sistema do horror”, “sua essência é a essência desnaturada” e “sua aparência é a mentira […], lugar-tenente da verdade”, então o sr. Keuner é o portador de um método de reflexão capaz de denunciar tudo que nos aliena. Adorno estava certo, portanto, ao se referir a Brecht, em seu ensaio Engagement (Notas de literatura, Editora Tempo Brasileiro), como aquele que “soube entender que a superfície da vida social […] encobre a essência da realidade”.
Ao final do livro, encerramos a leitura com a certeza de que a dissonância provocada pelas vozes irônicas continua sendo necessária. E, principalmente, de que precisamos do sr. Keuner — de sua sutileza para esfacelar certezas, denunciar contradições e admoestar os homens, clarificando, assim, todos os aspectos da realidade, pois construímos um mundo no qual tudo, de uma forma ou de outra, é passível de repreensão. E nada, absolutamente nada, é plenamente satisfatório.