Está me acontecendo uma coisa bastante sinistra, Raúl. É que, quanto melhor é o livro que estou lendo, mais me repugna. Quero dizer que me repugna a qualidade literária, ou seja, repugna-me a literatura.
[…] Porque a toda hora encontro algum livro que não se pode classificar de grande literatura e que, no entanto, não me dá nojo. Começo a desconfiar por quê: porque o autor renunciou aos efeitos, à beleza formal, sem por isso cair no jornalismo ou na monografia dissecada. É difícil de explicar, eu mesma não o vejo claramente. […] Esse novo estilo só poderia ser conseqüência de uma nova visão do mundo. Mas se um dia chegarmos lá, como vão nos parecer estúpidos esses romances que hoje admiramos, cheios de truques infantis, de capítulos e subcapítulos com entradas e saída bem calculadas…
Esse fragmento de diálogo de Os prêmios, livro de 1960 e primeiro romance publicado de Cortázar, aponta para um destino certo: O jogo da amarelinha, o “anti-romance” de Cortázar e sua obra mais importante, publicada três anos depois. Os prêmios não chega a romper com a convenção narrativa, como fez o seu sucessor, mas o questionamento da tradição está bastante presente. A busca pelo novo, pela quebra de contrato com o leitor, é uma constante em Cortázar, que só começou a publicar quando considerou que de fato tinha uma contribuição a fazer. E que contribuição!
Em Os prêmios, Cortázar já sinaliza a mudança da postura do escritor que leva seus leitores “pela ponta do nariz”, pela do autor que constrói a narrativa a contrapelo das expectativas e que tem o leitor como “cúmplice”, alguém pronto para enfrentar o absurdo ao lado do narrador. No entanto, é difícil fugir das fórmulas, é impossível negar a realidade da presença de um autor por trás de qualquer narrativa, por mais que ele tente se esconder. Assim, em outro diálogo metaliterário, dois personagens concluem que os romances são interessantes pela arbitrariedade de seus autores em reunir personagens extraordinários. A conclusão é de que é muito mais fácil o encontro entre pessoas interessantes dentro de uma obra literária, por ação do autor, do que na vida real. Pois, conclui um deles, o navio em que estão embarcados “é uma instância qualquer da vida”. Isso seria verdade apenas se considerássemos a ficção como, de fato, uma instância do real. A discussão sobre a natureza do romance, e da própria literatura faz parte de inúmeros diálogos do livro, são questionamentos que se incorporam à própria caracterização dos personagens e apontam para o próprio autor, oculto por trás de suas criaturas.
Cortázar espreme o texto de Os prêmios entre uma epígrafe de Dostoiévski e uma nota explicativa ao final. Diz a epígrafe:
Que faz um autor com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares? Como colocá-las perante seus leitores e como torná-las interessantes? É impossível deixá-las sempre fora da ficção, pois as pessoas vulgares são, em todos os momentos, a chave e o ponto essencial na corrente de assuntos humanos; se as suprimimos, perdemos toda probabilidade de verdade.
A nota do final começa assim:
Este romance foi começado com a esperança de levantar uma espécie de biombo que me isolasse o mais possível da amabilidade que animava todos os passageiros de terceira classe do Claude Bernard (ida) e do Conte Grande (volta). Como provavelmente o leitor o escolherá com intenções análogas, uma vez que os livros vão se tornando o único lugar da casa onde ainda se pode estar sossegado, acho justo assinalar-lhe tão fraternal coincidência na arte da fuga.
Chama a atenção o paradoxo entre as duas citações, estrategicamente colocadas na abertura e no fechamento do romance. Na primeira, Cortázar se pergunta, junto com Dostoiévski, como trazer as “pessoas vulgares” para dentro da ficção; na segunda, a questão é justamente o contrário — a ficção serve para erguer uma “espécie de biombo” entre o escritor e “os passageiros de terceira classe”, num primeiro momento, e, num segundo, entre seus leitores e o restante da casa. Observe-se a expressão usada: “passageiros de terceira classe” e não “da terceira classe”. A nuance permite inferir uma generalização para todos os ocupantes dos navios como pessoas “de terceira classe”. O livro é um “lugar da casa”, o único em que “se pode estar sossegado”. Mas, é justamente para este lugar que o escritor leva as mesmas pessoas vulgares das quais deseja se isolar.
Assim, buscando esse paradoxal isolamento, Cortázar inventa uma insólita loteria cujo prêmio, um cruzeiro de três longos meses, reúne um eclético grupo dessas pessoas das quais autor e leitores (nós) procuramos nos isolar. No entanto, a única maneira de concretizar esse isolamento é subirmos a bordo e conviver intensamente com o vulgo.
Um último questionamento nessa linha. Raskolnikov, de Crime e castigo, e a família Karamazov, de Os irmãos Karamazov, seriam pessoas vulgares na opinião de Dostoiévski? Talvez o fossem nas mãos de um outro escritor, mas são transformados em seres assombrosos ao caírem sob a pena do genial escritor. Nas mãos de um grande escritor, qualquer criatura, por mais medíocre e vulgar que seja, pode revelar toda a grandeza e a baixeza humanas com o mais comum dos gestos. Não é por outro motivo que Harold Bloom, em seu Gênio, coloca Shakespeare acima de todos os outros. Para Bloom, a superioridade de Shakespeare resultou de sua capacidade de criar personagens plenos de humanidade, encharcados de realidade e verossimilhança. Exatamente o que Dostoiévski buscava com a noção de “probabilidade de verdade”. Isso tudo por um motivo muito simples: se “de perto ninguém é normal”, imagine-se de dentro? Quem há de ser normal ou vulgar visto por dentro?
Divisões
Biombos, quem vai e quem fica, portas trancadas, lado de lá e lado de cá, duplos e simetrias. Essa bipolaridade é recorrente em Cortázar, culminando com a separação entre a vida interior e a vida exterior dos personagens. No caso de Os prêmios, o toque de absurdo separatista é dado pela proibição dos passageiros de circularem em determinadas áreas do navio. Todo o grupo deve ficar isolado na proa, o acesso à popa é bloqueado por portas intransponíveis. O que haverá do lado de lá? Quem são os ocupantes? Quem pilota e comanda o barco?
Tudo o que se sabe do prêmio é que se trata de um cruzeiro transoceânico de três meses para o ganhador e seus acompanhantes. Os passageiros embarcam em condições misteriosas, sem saber ao certo qual é o navio e sem a mais remota idéia de destino. A proibição de circular livremente, anunciada no embarque por um membro subalterno da tripulação provoca reações que vão da mais absoluta indiferença e acomodação à inquietação e à rebelião total. A revolta é alimentada pela inacessibilidade dos oficiais superiores. A muito custo, aparece um deles para anunciar que o isolamento deve-se à ocorrência de dois casos de “tifo 224”. A reação à notícia equivale à da imposição do isolamento, credulidade de um lado e o mais profundo ceticismo do outro. Fora das páginas do livro e dentro das páginas do Google, uma busca por “tifo 224” não traz qualquer resultado. Existirá tal doença? Ou, uma vez mais, devemos nos render à insuperável imaginação de Cortázar?
Em grande medida, a estrutura de Os prêmios já se anunciava no conto A casa tomada, publicado pela primeira vez em 1946 e depois no volume Bestiário. Neste conto, um casal de irmãos vive e envelhece só, em uma grande casa. A rotina de muitos anos é rompida quando o irmão começa a ouvir ruídos em partes da casa e vai fechando as portas atrás de si, isolando-se em áreas cada vez menores, até se verem do lado de fora. O tema é o eixo de Os prêmios e atravessa também toda a narrativa do anti-romance O jogo da amarelinha, em que ressurge com o personagem Horácio Oliveira alijando-se cada vez mais de si mesmo em uma viagem interior que termina na inevitável alienação.
Diálogos e referências
Cortázar é um dialoguista excepcional. As páginas de Os prêmios estão repletas de diálogos irresistíveis. Os diálogos, mais até do que as descrições e apresentações feitas pelo narrador, revelam a natureza diversa dessas incomuns pessoas vulgares. Por meio dos diálogos, vamos conhecendo opiniões, gostos, medos, desejos. Por meio dos diálogos e das referências a outros escritores, publicações, músicas do mundo externo, identificamos o extrato social e o temperamento de cada personagem. E temperamento ganha uma conotação especial nessa história, pois a têmpera dos personagens se revela na situação de enfrentamento diante dos limites arbitrários e inexplicados a que o grupo se vê submetido.
Nesse ponto, a visão política antiburguesa de Cortázar já se revela, ainda que não estejamos falando do Cortázar engajado com a revolução socialista e a causa sandinista, o que só viria a acontecer alguns anos depois. Por meio de uma série de referências a tangos, revistas, chargistas, marcas de bebida, menções a bares e ruas de Buenos Aires, Cortázar reúne a bordo uma seleção de tipos exemplares do mundo portenho. Do grupo mais intelectualizado e inconformado à reunião de senhoras de cabelo armado, preocupadas com receitas e reumatismos. A seleção de referências a pintores, músicos, filósofos é algo impressionante e se tornará ainda mais forte em O jogo da amarelinha. Um trabalho de sistematização dessas referências e citações nos livros de Cortázar, principalmente nos romances e ensaios, revelaria um escritor com vasta cultura e grande capacidade de fazer a ligação entre sua ficção e o mundo real. Nessa arte da referência, Cortázar talvez só seja superado pelo gênio portenho maior, que além das referências culturais baseadas na realidade, tornou-se mestre em criar referências a obras inexistentes, mas totalmente verossímeis. Borges, naturalmente.
Um dos pontos altos do livro são justamente as conversas em que os elementos dos diversos grupos falam dos membros do grupo simétrico. Cortázar tem o cuidado de não fechar os círculos, criando personagens intermediários, que permitem uma zona de interseção. Os encontros ocorrem no bar, no convés e nos corredores. Os mais dramáticos, acontecem nos níveis inferiores do navio, quando alguns dos personagens buscam furar o bloqueio e encontram “a terceira classe” da tripulação, marinheiros de vigia, prontos a usar a força sobre quem tentar furar o bloqueio.
O leitor a bordo
Não há como fugir da diversidade dos personagens e de seu magnetismo. Em algum momento, o leitor se identifica com um deles e é arrastado para dentro da trama. Existem destaques, mas não um protagonista. Cada um protagoniza sua história individual, com menor ou maior carga de drama ou vulgaridade. Não há um narrador onisciente, os leitores sabem tanto quanto os personagens. Ou ainda, não sabemos as mesmas coisas que os personagens. Também nos cabe escolher um lado e decidir se estaremos com os revoltosos ou com os acomodados. As respostas não são fáceis, não há nada transparente.
Se por um lado não temos um bilhete de embarque, que esta resenha seja o seu lastimável prêmio de consolação, uma vez que você a leu até o final. Que ela seja um colorido, ainda que incompleto, prospecto de viagem. O prêmio maior será mesmo a (re)leitura do livro e de qualquer Cortázar que lhe caia nas mãos. Em Os prêmios, a única certeza é encontrarmos as constantes estilísticas do autor, responsáveis por uma identidade literária única, que buscamos, encontramos e renovamos a cada nova leitura.