O senhor olhe, repare bem. É bem ali, do lado de quem vai pra Minas. Ali, naquele escurinho de mata. Ali, depois do morro, dá pra ver. Dizem que muito escuro. Foi ali que as coisas aconteceram. Naquele tempo que essas histórias aconteciam. Que as pessoas vinham de longe, cavalhadas, depois foram ficando — alguns. E Perdões começou a nascer. Tempo dos avós, dos bisavós de toda essa moçada que anda por aí. Tá sabendo? O povoado, foi acontecendo — de gente que passava. Nunca teve cara de coisa-com-acontecimentos, igreja no morro, casas, nada disso, gente passava, vinha, ia, alguns sentavam pé, casavam. Outros vinham casados, ou com amásia, mulher-dama, ninguém sabia. Era um lugar perdido do mundo, Perdões — quer ver que o nome também era uma coisa assim, de perdão? Talvez. De perdão, de não-sabimento, de crimes cometidos mundo afora, de casal fugido, de gente meio cigana meio índio arribado, acho.
Para lhe contar, de verdade, só sei da história de meu avô Francisco Leme. Seu Chico. Minha avó Ana. Essa história, lá pelos longes de 1880, 90 — que me contaram, coisa de tias, no borralho, noites de inverno que aqui na serra são brabas, sabe. Esse, seu Chico, que sim, que sabiam das suas andanças, sua gente era daqui, paulista, era mocinho bom, filho de coronel dos lados de Sorocaba, paresque. Veio passando por aqui brigado com o pai, coisa de mocidade, nenhum crime, nem nada, aqui se amoitou, tinha algum dinheiro comprou casa, negociava com tropa, paresque, não sei bem, essas coisas de contado no borralho a gente nunca soube direito, eu nem conheci. Era homem de poucas falas, dizem, como a gente daquele tempo, não era de se meter com a vida de ninguém, solitário, não gostava de baile, nem de jogo de carta, nem bebia. Dizem que sempre ficava, de tardinha, aqui fora da casa, sentado num banco de madeira, que nem a gente, agora. Olhando fixo para aquele ponto que eu mostrei para o senhor, no meio da mata.
Que um dia encilhou cavalo ligeiro, arranjou embornal, cantil pra viagem longa, por esse mundo. Se largou a trote solto, sem despedir de ninguém. A casa fechada, ninguém sabia o que fazer. Passado quase ano, repontou no horizonte, vindo do lado do Norte, do muito-que-longe, parecia — daquilo que nunca se via, do mais além do Ponto do Nunca-Mais, seria? Vinha com Ana, quase-menina, de trança solta e olhar de sol, vinham ambos sujos e cansados, muito cansados — dizem — seu Chico nunca falou nada com ninguém, eu lhe disse, Perdões era terra de perdões, ninguém perguntava, ninguém sabia, todos viviam. Apeou, deu a mão para Ana, amarrou os cavalos, abriu a casa e ali moraram 40 anos.
Ah, mas não no sem-mais, assim, não. Foram se estabelecendo, enricaram, seu Chico fez venda grande dessa que tem de um tudo, castiçal e vela, cordame, faca, sapato, rifle, lampião, até sabonete vindo da capital, água-de-cheiro — o senhor sabe. Comprou fazenda e gado, tiveram onze filhos, um por ano, criaram oito, deram instrução. Era meio arredio de igreja mas até padre ajudou a trazer, pra aumentar o comércio de domingo com a caboclada que vinha pra missa. Acho que era o homem mais importante do povoado, casa de muita gente, casa alegre, aberta, que foi crescendo daquela casinha do início da vida, se alargando, cabendo mais gente, pomar, criação, até festa de São João com mastro e fogueira.
Mas tinha ainda aquele costume, ficava aqui na porta principal da casa, essa que vai do alpendre para a sala, olhava fixo para aquele ponto ali, já sabe, no escurinho da mata, o ponto do Nunca-Mais, não sabe? Punha cadeira aqui, onde o senhor está, assim, sentava na beirada dela, meio ansioso, olhando longe.
E foi aí que um dia as coisas aconteceram. Depois de uns 30, 40 anos. Meu tio Chico Filho já tinha uns 38, tia Mariquinha uns 36, os outros seguindo, maior parte casada com filhos, eu era pequeno — como lhe disse não me lembro de lembrado. Só de contado. Pois, veja só: uma tarde de tardinha anoitecendo quase, de repente seu Chico levantou de golpe, corpo inclinado pra frente, franzindo o olhar para aquele lado — o do escurinho da mata, aquele do lado de Minas, no horizonte, já sabe. Dois cavaleiros vinham se chegando. Não no galope, não, não como quem quer chegar logo. Vinham a trote pausado, emparelhado, corpo alto, como quem sabe que vai chegar — como quem quer marcar chegada, eis. Vieram reto, sabiam o destino? Sabiam o que iam encontrar? Nunca se soube. O que se sabe é que seu Chico se levantou teso, num repente remoçado mas o cenho carregado. Passou a mão na cinta, como quem procura arma. Ele que nunca andou armado. E que gritou seco, pra dentro da casa, mas sem voltar a cabeça: “Nhãna!”. Que minha avó veio de dentro, enxugando a mão no avental. E parou hirta, no umbral.
Dos dois cavaleiros, as pessoas muito falaram, depois. Embora quase ninguém tivesse visto. Digo, gente de fora da família, compreende. A família, não sei se viu bem. Se inventaram algumas coisas, depois… quem sabe? Meu tio Afonso, que estava no jardim da frente da casa, disse que eles não vieram vindo, assim, como todo mundo vem. Que apareceram de repente. Que parados, em silêncio, sem se apearem. Que era gente já de uma certa idade. Como o pai. De cara fechada e tostada de sol. Que gente de muito longe, seria. De olhar fixo no velho, no alpendre. Que demoraram para apear, amarrar os cavalos, vieram subindo devagar a pequena rampa diante da porta principal da casa. Bota com espora, ressoando. Que os cachorros se lançaram, num alarido, que eles nem se importando, avançando no meio deles, do policial e dos dois mateiros. Que o Pai se afastou da porta, em silêncio, eles entraram, sem tirar o chapéu. Olharam para minha avó, de relance, passaram.
Que meu avô abriu com gesto largo a porta das cerimônias, aquela da sala de visitas que ninguém usava nunca. Depois moveu a cabeça para tio Afonso, num gesto de que se afastasse, fechou a porta. Ficaram muito tempo trancados. Que minha avó Ana, muito branca, correu para o quarto, ajoelhou chorando no pé da cama, agoniada, que para as filhas, minhas tias Branca e Nina que eram solteiras e ainda moravam na casa e perguntavam que foi Mãe, ela só sacudia a cabeça, sem poder falar.
O que se passou depois, no em seguida mesmo, é meio nevoso, ninguém sabe, e depois de tanto tempo. Paresque passado tempo meu avô abriu a porta da sala, passaram, ele e os cavaleiros, diretos para a sala de jantar, meu avô chamou uma negra mandou servir janta para eles, vinho até, comeram os três em silêncio, com educação, mas os homens sujos ainda da viagem, as botas largando um pouco de lama no tapete. E minha avó chorando no quarto — e as moças sem entender, comendo na cozinha, estranhadas. Depois os viajantes foram dormir naquele quarto que as casas daquele tempo sempre tinham, o quarto dos viajantes, pronto para quem passasse, e com porta que dava para o alpendre, não para a casa. Que no dia seguinte começou um dia normal com as negras soprando o fogão de lenha, esquentando água, fazendo café com quitanda, e que então minha avó Ana saiu do quarto do casal, já aprumada, o olhar fixo, sem dizer nada, que as filhas perguntavam e então Mãe e ela só olhava para elas e ia indo pelo corredor. E caminhando caminhando como se sua alma tivesse sido roubada. Como se não-mais. E que ela e meu avô se olharam, entendidos. Durante muito tempo. Depois ela seguiu pela sala, atravessou o alpendre, se colocou entre os dois cavaleiros e foi andando, e já havia um terceiro animal que tinham mandado arrear, uma égua de boa andadura onde ela montou de lado, mas desenvolta. Era ainda uma mulher rija e bonita, de uns cinqüenta e poucos anos, ainda de trança longa e basta, enrolada em coque no alto da cabeça.
E se foram, os três, não sei se desaparecendo aos poucos, no horizonte. Ou se de repente se desmanchando na paisagem, no escurinho da mata, ali, naquele ponto ali, do Nunca-Mais, eu não lhe disse? O que se disse depois, o que a família veio contando, não sei se é verdade ou se história arranjada para explicar o inexplicável — mas faz algum sentido. O sentido que a gente hoje quer dar para essa gente antiga que não falava muito, dizem. Que tudo, nas suas vidas, era cor de silêncio e mistério, e no abafado e triste viviam, comiam e dormiam, pariam, morriam — sem que muito se soubesse. O que se soube, e isso certo, foi que meu avô foi secando, depois que Ana se foi. Que parecia esperar por ela, sempre, que ficava ansioso na beira do banco de madeira, na porta da sala — que morreu de tristeza, de saudade irremediável dela. E que os filhos foram passando, de geração em geração, e passarão, a história meio adivinhada de um moço paulista — de gente boa, filho de coronel de Sorocaba — que um dia veio pra estes longes, nos confins com Minas, que gostou do povoado, que fez casa. Que um dia viajou para longe, viu Ana menina de tranças perto de um riacho, falou com ela, se enamorou perdido, e ela também, que se amaram descuidados, feito animais no pasto — mas que os irmãos dela, eram dois, suspeitosos, lhe vieram de faca em riste. Que não sei quem da família, ou um negro da casa, tinha contado que seu Chico tinha no flanco a marca deixada, da peixeira. E que ambos haviam vindo, fugindo, no disparo — até esta cidade de Perdões, para viverem felizes, uns quarenta anos…
Agora, nesta lenda, neste segredo de família — o que mais vou dizer, eu que nem sei? Porque, nessa história toda, tem uns poréns, uns como-é-que, que a gente não entende. Por que passados quarenta anos, ou quase? Por que tudo assim como em um ritual, gestos marcados, não parece, sem falas nem rastros, só as decisões nunca sabidas, uma espécie de dever cumprido, de assim-deve-ser, não é? Uma coisa de honra, sei lá. Como é que minha avó, que reconheceu os irmãos, que emendou as duas histórias sem mais, as duas pontas depois de quarenta anos…como é que meu avô, que amou Ana a vida inteira daquele amor desesperado, que até morreu de amor por ela, a entregou sem mais, sem luta, acovardado, para aqueles irmãos assassinos?
Não faz sentido.
Olhe, quer saber de uma coisa? No distante do tempo, quem pudesse ver e ouvir, estar presente naquela sala de visitas, naquela noite fatal para minha família? Naquela sala de jantar onde os viajantes, acolhidos com amabilidade, por certo comeram uma lingüiça frita e saborosa, com bastante farofa e batata frita, e beberam tudo com aguardente da boa, e sobremesa de requeijão e goiabada, depois certamente puderam se lavar, tomar café forte, e depois, quando todas as crias da casa, e as moças Branca e Nina, haviam se deitado, os três homens, de acordo, por certo tinham chamado minha avó Ana para uma conversa… e ela se chegasse, tímida, sem jeito, mas já passado o medo dos irmãos, e curiosa inquirisse, da família deixada, dos pais… tão longe, tanto tempo…
E então, um dos sinistros irmãos, já curtidos de idade também eles — e quem foi que disse que seriam sinistros? Quem foi que viu, realmente, a marca da peixeira, o cenho carregado, o gesto de procurar uma arma, do meu avô — que nunca teve arma?… Já curtidos de idade, os irmãos, e um deles, o mais velho com certeza, com ar grave, e ponderado, ou até um tanto suplicante, olhasse para Ana e lhe dissesse assim, “Ana, você sabe, nossa mãe… ela está tão velha”… e todos ficassem um momento calados, compreendendo, e completassem, para si, que a velha estaria morrendo, que os irmãos, passado tanto tempo haviam vindo procurar Ana para fazer-lhe a última vontade, queria ver a filha, enfim….
Que tudo assim se resolvesse, no comum da história de tantas famílias, naquele tempo de Brasil maior, mata mais densa estradas escassas comunicação nenhuma, o senhor não acha? Ainda hoje, tanta gente mandando recado para irmãos, filhos nunca mais vistos, por esse Brasil afora, as famílias que se perdem e se dissolvem no nada, não existem no todo-dia essas histórias?
Bem, mas há coisas que ninguém nunca entendeu, mesmo — que nunca mais minha avó Ana, aquela que ainda tinha tranças espessas e negras enroladas em coque no alto da cabeça, aquela tão amada de meu avô que ele até morreu de tristeza, por que ela nunca mais voltou? Nem uma palavra, nem nada, nem foi procurada, será? Que ela tenha deixado toda a família, e os oito filhos, a maioria casada, os netos, a casa, a pessegada por fazer na cozinha, o bordado no bastidor, as filhas que lhe perguntavam que foi Mãe, tão assim?
Não sei. Afinal, como vou saber essas coisas malcontadas do tempo antigo, já se passaram cinqüenta anos, sessenta quase — o que sei é esta inquietação em mim, esta vontade persistente de saber, e o meu sonho desta noite, com meu avô Chico Leme, com minha avó Ana, eu senti a dor deles dois, daquela separação, como se fosse minha e eu estivesse ali, neles, como é que a gente explica um sonho persistente com gente tão esmaecida no tempo, tão inexplicável?
Mas acordado, agora, neste alpendre desta casa tão antiga, conversando com o senhor, veja, há uma coisa concreta — ali, está vendo? Aquele ponto preciso, no escuro da mata, no mais escuro no escondido, lá do lado da fronteira de Minas, aquele ponto de onde ninguém volta, ninguém voltou, o ponto que dá medo em todos — o Ponto do Nunca-Mais.
Compreende?