Passados setenta anos da publicação de Angústia, reafirmada sua excelência artística no âmbito da literatura brasileira, Graciliano Ramos parece ter-se enganado sobre seu livro mais polêmico. É conhecido o desconforto do escritor em relação ao romance que necessitava, segundo ele, ser revisto até chegar ao osso, sem as repetições e os excessos que julgava defeitos a serem sanados. A prisão em 3 de março de 1936 o impediu de realizar a revisão desejada, antes que o livro fosse editado com o autor ainda na cadeia.
O “livro infeliz”, como Graciliano se refere a Angústia em Memórias do cárcere, vai aos poucos se impondo por meio de um processo de atração e repulsa, que marcará para sempre a postura do romancista diante da obra. A primeira reação positiva, ainda na prisão, lhe é proporcionada pela escritora Eneida de Moraes: “— Li o teu romance de cabo a rabo, e não dormi um instante, apanhei uma insônia dos diabos. Pavoroso!” O elogio enviesado parece confortar um pouco Graciliano, uma vez que o livro “apesar de tudo, causava interesse e roubava o sono às pessoas”.
De certa forma se confirma sua “poética”, que tempos depois se mostra sucinta na indagação de carta dirigida a Portinari, em 15 de fevereiro de 1946: “Numa vida tranqüila e feliz, que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza”. Por isso também, a crítica à época, apesar de restrições de alguns setores, acabou unida em torno do livro: “católicos” e “esquerdistas” viam nele uma realização literária incomum.
Narrado em primeira pessoa, o texto caracteriza-se pelo transbordamento e pelo excesso: acúmulo e superposição de imagens e figuras desconexas, justaposição especular de micronarrativas encaixadas, reiteração obsessiva de elementos análogos, irredutíveis a qualquer tipo de ordenação que não seja a dos devaneios e alucinações da personagem que narra. A cronologia e a linearidade são desfeitas a favor da subversão formal, que desarticula e fragmenta o livro em processo de realização, o que o torna distante da “simplicidade e clareza” postuladas por Graciliano Ramos para o texto literário.
A história é aparentemente comum. Luís da Silva, funcionário público e escritor de província, apaixona-se por Marina, sua vizinha, mantendo com ela uma relação amorosa intensa, até que Julião Tavares, rico negociante seu conhecido, toma-lhe Marina. Esta fica grávida de Julião, faz um aborto, é abandonada pelo amante, que é assassinado por Luís da Silva. Em Angústia não se tem a mera reprodução narrativa de eventos desencadeados pela retrospecção que poderia resumir-se aos antecedentes e ao desfecho do crime realizado. Este se apresenta como elemento deflagrador do processo da escrita porque, para ele, convergem as contradições indissolúveis de um eu estilhaçado, cuja configuração tenta-se encontrar, para de certa forma justificar, do ponto de vista do criminoso, o ato praticado. A tentativa de individuação, no entanto, é frustrada desde o início: “Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca”, diz o narrador.
A “viagem” é na verdade muito longa. A evocação do crime cometido contra Julião Tavares não se reduz ao período imediatamente anterior à sua realização, mas desdobra-se num segmento pretérito bem mais remoto ¾ o da infância do narrador. Uma frase sai de uma frase, uma história de dentro de outra mais antiga, como destacou Rui Mourão. A rememoração da opulência do passado familiar acentua a decadência no presente: do avô Trajano Pereira de Aquino Cavalcante a Silva reduz-se a um “Luís da Silva qualquer”, como se nomeia o narrador pela primeira vez: “Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou”.
Movimento oscilatório
A visão do narrador dobra-se sobre si mesma, desencadeando um movimento oscilatório de aproximação e distanciamento da realidade circundante, similar à atração e repulsão que sente por Marina. Após narrar a dolorosa aprendizagem de natação com o pai na infância, Luís da Silva declara: “Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o suplício o dia inteiro…” A mesma imagem repete-se após o assassinato de Julião Tavares: “Eu escorregava nesses silêncios, boiava nesses silêncios como numa água pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo, voltava à superfície, tentava segurar-me a um galho. Estava um galho por cima de mim e era-me impossível alcançá-lo”.
Essa textura do passado que marca o presente da narrativa faz vir à tona o que deveria permanecer recalcado: a conflituosa relação familiar na infância repete, especularmente, a relação de Luís da Silva com Marina e Julião Tavares. A superposição de eventos traumáticos concentra-se na relação amorosa fracassada e reforça a desagregação psíquica de Luís da Silva, que começa a escrever o livro depois de matar Julião Tavares, o que faz pensar em qual seria o sentido da escrita para esse Narciso emaranhado nos reflexos da sua imagem estilhaçada.
Conduzido pela linguagem a regiões indesejáveis e por isso mesmo mais propícias à revelação de seu desejo, o escritor de textos de encomenda depara-se com a radicalidade de uma experiência ¾ a escrita do livro que será Angústia ¾ que não admite meio-termo e que, se possibilita a resolução sublimada dos conflitos enovelados, pode também agravá-los ainda mais. Encenar os conflitos não com a linguagem do todo, mas com a do fragmento e a da disseminação, é uma forma de ruptura com o sistema literário e social, uma opção pela mobilidade da busca experimental, pela ausência de acabamento no sentido estético e também no sentido de acabar uma história, assumindo um risco que não garante a unidade nem da escrita, nem de si.
Luís da Silva é obrigado a falar a partir do discurso que recusa ¾ em Memórias do cárcere definido pelos “estreitos limites da gramática e da lei” ¾, cujas verdades são colocadas à prova incessantemente. Sua linguagem plural e descontínua não fala em razão do seu poder de significar ou de representar, preenchendo vazios ou conjugando disjunções, como uma forma literária “bem acabada” faria supor. Prefere o devir incessante da palavra que puxa a palavra e do enigma que o sustenta: o enigma do sujeito em situação narrativa, ou melhor, em situação ficcionalizada.
Como toda interpretação é interminável, Luís da Silva está condenado a diferir, a dispersar-se em afirmações que não se mantêm sob a exigência de uma explicação objetiva e duradoura. A sua escrita, por isso, não tem valor de representação, não está no lugar de nada, nem de ninguém, acentuando apenas o jogo abissal da diferença, a ruptura de um texto sempre divergente; por isso sempre inconcluso, rebelde a qualquer perspectiva de revisão, o que o próprio autor custa a aceitar.
Essa especificidade do texto articula-se com a abordagem da condição de intelectual pequeno-burguês do protagonista, ao mesmo tempo necessário à manutenção da dinâmica das forças capitalistas e por elas desprezado, constituindo-se num passo adiante na perquirição das contradições do país levada a efeito na década de 1930. O assassinato de Julião Tavares, representante do capitalismo triunfante do mundo urbano e rival de Luís da Silva no amor por Marina, é uma saída individual, fechada em si mesma. Levada ao máximo da “deformação expressionista”, conforme observa Antonio Candido, a sondagem psicológica requer do ficcionista a radicalização da técnica do monólogo interior, para ir mais fundo na dialética do que Valentim Facioli chamou de “sentimento de intrusão-rejeição”, experimentado por Luís da Silva como impulso e obstáculo à sua atuação social e política.
Forma de impotência e clausura que Graciliano Ramos expressa no espaço intervalar entre a ficção e a autobiografia, levada às últimas conseqüências em Angústia. E que, até hoje, parece expressar a condição necessária e inelutável para uma arte que, afinal, valha a pena ser feita aqui e agora.